AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — DESFILE, COMILANÇA E PORRADAS

Vô Ventura não é lá muito ligado em coisas de religião. Sua espiritualidade se resume a fazer bem às pessoas, ajudá-las quando precisam e se tem os meios a seu alcance, e a seu amor à natureza. Seu conceito de natureza é bem amplo: nele se incluem os seres vivos e não vivos, até as pedras estão ali por sua movimentação lenta ao longo de milênios.

Por isso estranha a comilança das pessoas nas festas religiosas. Por exemplo, depois da temperança gastronômica da quaresma, a comilança da Páscoa. A começar pelo exagero no consumo de chocolates. Sem falar no Natal. O Natal é outra festa da mesa farta, da comilança ativa e passiva.

Nesse domingo tomou um grande susto. Tomava tranquilamente seu frugal café da manhã, sem comilança, com os trinta gramas de proteína sugeridos pela sua nutricionista (ovos, bacon, frutas, castanhas, etc.), quando começa a ouvir um barulhento desfile subindo sua rua. Os gritos eram algo do tipo: mata, esfola, queima logo, enche ele de porrada.

Sendo considerado o chato da rua por suas posições contra o machismo, misoginia, racismo, idadismo, etc., ele imaginou que poderia ser o alvo daquela manifestação. Depois da pandemia, quando ouvia “tudo bem, é só mais um velhinho que se vai”, seu mecanismo de defesa o coloca em alerta (ou luta, ou foge). Levanta-se de sua mesa e corre para o quintal. Qualquer coisa saltaria o muro e fugiria pela rua de trás de sua moradia.

Logo percebeu que o som, antes crescente, agora diminuía. Ou seja, o desfile já passara por sua porta. Arriscou uma olhadela pelo portão da rua e percebeu ser só a exorcização da barbárie humana, uma prévia da malhação do Judas. Mas, após ouvir a notícia da morte de crianças a machadadas, gratuitamente, Vô Ventura teve diminuída sua fé na humanidade. Melhor se precaver.

Passado o susto, mordeu violentamente aquela insossa maçã que a nutricionista fazia questão que constituísse parte de sua dieta.

— Socorro. Detesto maçãs.