"BISMARCK"

BISMARCK

Ele mal sabia do perigo que corria

Sua vida

A rua serpenteava o Morro dos Ingleses, insinuando-se à direita e à esquerda numa descida até encontrar estreitas ruas e escondidas vilas naquele bairro. Pois é, era uma dessas casinhas, junto de tantas outras que formava aquele núcleo comunitário tão disputado e invejado por vizinhos e gentes de outros bairros. Era lá que Giacomo Strada morava.

Admirava-se o seu isolamento, as quaresmeiras em flor, que bucolicamente dispostas davam o tom nostálgico daquelas sossegadas tardes, daguerreotipadas por tantos autores. No entanto, o bairro assumia o seu cosmopolitismo abrigando italianos, espanhóis, portugueses até os nossos irmãos do norte que timidamente foram se instalando, constituindo atualmente o leitmotiv do Bixiga.

Nesse tempo, Bismarck vivia cercado de todo carinho. Visitava indiscriminadamente todos os vizinhos sem o pudor das horas. Eram dados muitos regalos a ele que por sua vez o deixava muito sensibilizado. Livremente se locomovia por toda a vila. Por vezes, tomando seu banho de sol, principalmente quando a Salete se punha a pintar suas unhas nos degraus de entrada da casa. Era o máximo, devagarzinho se achegava e logo lhe fazia festa. Como toda mulher ia atropelando as perguntas sem conhecer as respostas. Mas era muito gostoso ser acarinhado pela moça mais bonita da vila.

Dividia sua morada com o Giacomo, um jovem pintor que buscava o reconhecimento de sua arte. O cheiro da tinta muitas vezes o levara a náuseas, mas suportava porque tinha um exagerado amor pelo artista - era ele quem pagava as contas - embora reprovasse a alquimia celebrada.

Diariamente faziam as refeições juntos. Declinava dos afazeres domésticos dada a sua estirpe, no que foi prontamente aceito pelo Giacomo. Dispunham de uma excelente máquina de lavar e secar roupas. Parecia o YETI todo de branco. Era um horror!

Todos os dias ele preparava suas tintas e separava os pincéis. As telas espalhadas por todos os cantos aguardavam a oportunidade de serem comercializadas, visto que as que estavam nas paredes das cantinas do bairro mal davam para um jantar com a namorada. Lá aquilo era namorada. Era muito mais, era uma amante com dois endereços. O nosso e o dela. Ciumenta de dar porre.

Passava das quatro horas da tarde quando o pintor que se encontrava na janela sensibilizou-se com a beleza da Salete, embora já a tivesse visto em inúmeras ocasiões - o Bismarck não lhe deu a conhecer. Encontrava-se ela numa roda de amigas que aos cochichos confabulavam não sabia o quê. Intrigado, ficou observando-as.

Uma imagem holográfica se formou diante de seus olhos e num impulso passou a desenhá-la numa tela imaginária. Começou pelos longos cabelos negros onde moravam milhares de estrelinhas, as sobrancelhas vigiavam os olhos de avelãs, o exibido nariz indicava uma boca de mulher para ser amada. Os seios pronunciados eram cobiçosos - eram de fome. Aquela pele amendoada e fresca vestia um corpo sensual servido por ancas firmes e bem formadas. Que mulher!

Entregue à fantasia não percebeu que a Nice o estava observando do pátio e, sem mais irrompeu porta adentro proclamando um palavreado de vadia traída. O Bismarck que a tudo assistia tratou de buscar um canto. Tentando explicar o que não podia, Giacomo se entregou à sanha da namorada que retirava ferozmente dos porta-retratos todas as suas fotos e obrigava-o a lhe entregar todos os seus bilhetes. Não confiando na outorga, começou a vasculhar todas as gavetas, os armários e tudo que encontrasse pela frente.

Diante do sarilho armado e não podendo conter o desequilíbrio da namorada, saiu porta fora dizendo essa mulher é louca... é doida varrida.

Espantadas as amigas da Salete se põem a olhar.

- Coitado!

Isto porque, o que ouviram foi metade de uma homilia herege carregada de loucos ciúmes servidos de raiva e ódio.

- Mas por que? Perguntavam-se.

- O que será que ele aprontou. Vai ver que ele é um bruta galinha.

Nisso, ouve-se a enlouquecida dizer, agora é a sua vez Bismarck. Não adianta se esconder que eu te pego miserável. Dito e feito, encurralado e fisgado de supetão é lhe aplicado com muita arte e engenho, tudo o que a sua estirpe merecia, uma policromia de tintas de fazer inveja ao Aldemir Martins.

Agora bichano, vais visitar o seu amigo YETI. Sem perder tempo, abriu a tampa da máquina de lavar roupas e sorrindo não atendeu - se é que houve, o último pedido do infeliz, arremessando-o de pronto lá dentro. Brevemente, vou saber se você realmente tem sete vidas. Posicionou o dial na nas funções “hot cold” e “large” e deu partida.

Qual televisão de cachorro em padaria, o gato rebolava mais que dançarina de rumba e nos volteios seus bigodes eriçados mostravam uma boca despudorada que ninguém jamais pôde compreender.

Esse foi o triste fim de um companheiro inocente que pagou com as sete vidas os desvarios de uma mulher ciumenta. Para assento e conhecimento de todos os interessados, a causa mortis no obituário registrava ataque cardíaco.

Com profundo pesar adeus Bismarck, meu amigo gato.

PAULO COSTA

2007-fevereiro

paulo costa
Enviado por paulo costa em 13/12/2007
Código do texto: T775756
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