o menino que escrevia no coração
E foi assim. Sem modos finos e nem desculpas sinceras. O fulano, o sujeito enxerido que só, sem convite e sem deferença distribuída a quem se gosta ou espera, o sujeito, o fulano, o mequetrefe, bisonho mesmo, parvo de ideias e sem ideais, o sujeito chegou. Ninguém, nem mesmo o cachorro, o Magricela, o costela solta, nem mesmo o mais morto que vivo do cachorro, nem mesmo ele, em toda sua dignidade canina, se deu o trabalho, o mínimo que seja, de levantar a cabeça; não. E sem falar do gato Montanha, montanha de pelo, isso é que é, o Montanha, como todo gato que sabe ser quem é, quer dizer, esnobe, senhor de si e dos outros, o Montanha, não menos que ninguém, com desprezo, deu um desleixado Miau, ronronou e sem modéstia, porque gato não tem modéstia, sem modéstia, o Montanha, esnobe, levantou-se, atravessou a sala, saiu, ninguém sabe, ninguém viu, respondeu Laurinha, quando alguém perguntou pelo Montanha. Laurinha, a pimenta em forma de gente. Ah, Laurinha, suspira Silvia, a tia rechonchuda e pele rosada. Laurinha, a pimenta, adora Silvia, a tia que brinca e faz guloseimas sem que Rute, a mãe de Laurinha, e irmã de Silvia, veja, pois, temerosa de a filha não se alimentar direito, pega no pé da irmã. Mas, o fato mesmo, o ocorrido, o inesperado fato, quer dizer, a chegada do fulano, do mequetrefe, do bisonho, a chegada deste sem cerimônia e sem boas vindas, o fato é que a chegada do mequetrefe, sem que alguém soubesse o motivo e tamanha desfaçatez, o fulano chegou. Haviam dez anos desde a última vez que o mequetrefe foi visto. Correu à língua solta que o sujeito teria fugido. A fuga, segundo as autoridades, de um lado, e as línguas soltas, de outro, dera -se em razão de no dia anterior o fulano ter sido visto na casa do Clodoaldo, o moreno briguento da vila e famoso por não respeitar filha e esposa de ninguém, ou seja, o sujeito era isento de consideração e respeito por toda região, o sujeito era um desqualificado, nas palavras do padre, do delegado, do juiz, do cartorário, enfim, por todos. Ocorre que no dia seguinte à visita do fulano ao Clodoaldo, esse aparece morto. Claro que todos pensaram no fulano, afinal, um dia antes, a noitinha, noite de chuva, ela foi visto em casa do falecido. Suspeito por suspeito, Clodoaldo era o mais qualificado, afinal, e ninguém discordava, nem ele próprio, o de cujus fora visitado por ele. O que ninguém sabia, ou fingiam não saber, talvez por aversão ao fulano, ou complacência com Justino. Epaminondas Galdério Virgulino Mota Mordaz de Arroyo Rocha Justino Peralta, era filho de outro Justino, na verdade Justinos, pois, da família, houve quem fora Juiz, deputado, Padre, ator, atriz, alguns estelionatários, outros aplicadores em jogos de azar, ou seja, a família, eclética, na fé e na ética, dispunha de farto prestígio na sociedade. Como disse certa vez uma parente antropóloga, de prestígio acadêmico, professora de universidade batizada do com nome do primeiro Justino, do patriarca, do fundador, por assim dizer, do vilarejo, que se tornou vila, bairro, cidade. A antropóloga costumava dizer que Medalhão, titulo de belíssimo conto de Machado de Assis, acerca da necessidade de se construir "redes" de contato e prestígio, era o que sua família soube construir com maestria e insuperável talento. Fato concreto, a aparição de Justino à casa de Clodoaldo, ao contrário da do mequetrefe, do fulano, não suscitou maior interesse de se apurar as circunstâncias da visita, tampouco, possível relação com o ocorrido. Tudo ficou como se tal fato nunca tivesse acontecido. Silêncio fúnebre. Não, não havia disposição em se mexer nessa eventualidade, nas palavras do Dr. Delegado que, a despeito de qualquer manual de investigação, que manda apurar tudo que possa se relacionar com um crime, o dr. delegado, sem qualquer constrangimento, sem o menor rubor, ignorando eventuais questionamentos, sem incômodo algum, e à despeito do mais comezinho resquício do bom direito, não se dispôs considerar as circunstâncias da visita de Justino ao já falecido Clodoaldo. Fato é, Clodoaldo já era morto. O fulano, o enxerido, o parvo, voltou à cidade, que dela se ausentara havia dez anos. Sem dizer palavra, o enxerido, chegou. Atraiu as atenções, novas e velhas, e, sem dizer absolutamente nada, chegou e sentou. Sentou, e assim ficou, sem se dirigir a quem quer que fosse, assim ficou, ficou até o dia dar seus primeiros sinais de vida. O Sabiá deu seu matinal bom dia. O cachorro latiu como se respondesse ao sabiá. O gato, o gato nem deu as caras. Laurinha, a pimenta em forma de gente, como se não houvesse amanhã, correu ao quintal e deu bom dia ao cavalo marrom, mas que atendia por Vermelho. Tudo igual como deve ser, nas palavras de Dona Zefa, a avó octogenária. Enfim, mais um dia, depois do outro, nada mais que um repetir de fatos e lembranças. Nas palavras de Nelsinho, o menino que cresceu e viu o tempo passar e registrou nos cadernos o que não queria deixar se perder no tempo