" HORÁCIO E ZÉ MOTTA"
HORÁCIO E ZÉ MOTTA
Engraçado!
Imaginem se dois manequins de vitrine pudessem falar.
Imaginemos que sim!
Lá estavam Horácio e Zé Motta num aquário de patricinhos. Sua morada situava-se no número 811 de uma elegante rua, de um nobre bairro da cidade. Para que não sofressem tanto com o calor reinante, dispunham de uma concha suspensa revestida de um toldo listrado que era suportada por dois braços dourados. Tudo muito chic!
As floreiras cheias de petúnias, bétulas e narcisos constituíam o agradável jardim. A um canto uma gárgula despejava um constante correr d’água e um caminho de pedras monoliticas completava o foro externo. Tudo muito repousante.
O interior do mostrador, de restrito tamanho era ambientado por uma cômoda bombê e duas cadeiras de braços Luiz XIV. Um centauro em bronze era exibido na mesma direção do espelho D. João V e um tapete Tabriz cuidava do aconchego de nossos personagens. A privacidade dos manecos era defendida por um biombo de seis folhas, forrado de veludo verde escuro. A velada iluminação era dada por um abajur pedestal, encimado por uma cúpula de pergaminho.Tudo muito elegante.
Em cena o Zé Motta muito galhofeiro diz ao Horácio:
- Orra meu, em que chiquê da porra vim parar. Fui criado em São Miguel Paulista e agora tô no bairro dos grã-finos. Lá estava descalço, de calção e sem camisa. Na realidade, nu mesmo. Aqui pareço um camelô enfeitado.
Hei! Veja só aquela gostosona.
Acomodado na cadeira da direita do “seu Luiz xisivê” - segundo sua tropeçada leitura-comenta:
Bacana, acho que vou gostar daqui.
Horácio, comedido e muito educado aprecia o mobiliário, examinando detidamente cada peça, sem tocá-las. Avalia o bom gosto e equilíbrio da decoração.
Satisfeito, e com um ar estudado recomenda ao Zé Motta modos, pois agora são entidades notoriamente públicas e por isso devem se comportar como tal. E, para tanto...
- Nada de ficar coçando o saco.
- Nada de ficar tirando caca do nariz.
- Nada de ficar com a fralda da camisa para fora das calças, parecendo um Zé Badolas.
- Nada de ficar sassaricando na boca com aquele chupado palito de mesa de bilhar.
Colocado à esquerda e de pernas cruzadas demonstrava a descontraída elegância daquele que sabe ser elegante sem precisar consultar o manual da Gloria Kalil.
Nesse instante, entra a Mara, vitrinista da bunda mais colossal dos Jardins para verificar se tudo estava corretamente disposto. Ajeita a franja do tapete, dá um toque na écharpe do Horácio, centraliza o centauro e bufa ao ver o Zé Motta com a braguilha da calça aberta - será que alguém percebeu?
- Hum! Zé Motta exclama. Gostei! Tem suavidade nas mãos. Bem que podia ficar mais um pouco me arrumando.
A repreensão de Horácio foi imediata.
- Você não tem compostura! A moça cuida do seu oficio, não da sua idiota masturbação mental.
Até que um jovem casal chega e comenta o arranjo e o bom gosto dos costumes expostos. Lá no canto baixo da vitrine, um pequeno placar denunciava a grife.
- E, cadê o preço! Pergunta o rapaz.
- Meu bem, loja de grife não mostra.
O segurança estacado à porta se antecipa na recepção da socialite que desembarca de um carro de luxo.
- Boa Tarde, cumprimenta e acompanha até a porta.
No interior do magasin Dora se apressa em recepcionar a Sra. Moraes e seu poodle todo frescalhado.
- A Molica já chegou, indaga.
- Ainda não Sra. Moraes.
- Então me mostre algumas peças.
- Enquanto ia depondo abotoaduras, prendedores de gravata, calçadeiras, alguns mocassins Dora comenta que Pati tivera que alugar um caminhão para carregar o bolo da Natercia de sete andares, coberto com flores de açúcar e de porcelana italiana. Soube também que a terrine de foie gras foi de pato e francês.
Atentos, Horácio e Zé Motta se entreolharam.
- Nisso, abre-se a porta e Molica toda festiva diz um olá para todos e beija a amiga. Trajando um costume creme que realçava sua pele morena, também denunciava cobiçosos seios que Zé Motta estático como estava imaginava como tomá-los, tocá-los e sugá-los como neném grande.
- Que tesão! Em São Miguel não tem mulher assim. Em compensação tem a Durvalina boa de cama e a Odete que faz uma... e não tem dor de cabeça na hora de agasalhar.
- Imóvel, Horácio mantêm o aplomb, não aceita a locução chula do colega. Prefere lembrar aquele lindo veleiro que Maurice Ronet conduzia em “O Sol Por Testemunha”. Pena que ele acaba sendo assassinado pelo Alain Delon. A sensualidade da Marie Laforêt e a beleza da Romy Schneider deixava-o vagar em atitudes bovaristas. Que pena não ter vida para poder amar, viajar, conhecer pessoas, se encantar, mas sou matéria inanimada. Que droga!
A tarde corria, o sol abrandado se punha quase escondido à espera da noite, senhora dos sonhos, sacerdotisa do amor impossível trocado nas mesas de bar por sonhos e quimeras mil.
As luzes se acendem, as pessoas se despedem, a penumbra se instala na longa tristeza que é ser manequim.
PAULO COSTA
2007-fevereiro