Coração Alerta
Gisele queria se apaixonar novamente para dar sentido à sua vida. E entrou de cabeça ao identificar em Zurawsky uma espécie de salvador que poderia simplesmente ter chegado de canoa com uma bóia na mão, no mar aberto em que estava sua vida, quando ela, já sem forças, acreditava que iria se afogar. Não podia aceitar que algo bom demais acabasse daquela forma, mas precisava ser prática e entender que aquela sociedade, que denominara amor, havia terminado. “Existe vida após amar demais?”, pensou, já de maiô, diante do abismo, em frente a um mar agitado, que parecia espancar as pedras. “Sim, existe!”. E se atirou.
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Sentada na cozinha de casa, olhando para as paredes de azulejo branco, Gisele sentia-se vazia e chorava muito. Aos prantos, cortava cebolas para parecer que seu choro era apenas biológico e não envolvia sentimentos, mas não conseguia enganar nem a si mesma. Por impulso, resolveu que sairia daquela tortura. Suas lágrimas grossas incontroláveis contrastavam com a linda decoração dos azulejos de sua cozinha. Empurrou a mesa e quis sumir dali.
Era outra mulher. Vestida para matar. Aquela moça toda recatada e comportada usava agora maquiagem de travesti, usava espartilho e minissaia. Gisele se tornara uma predadora. Decidida e independente. Mas no fundo era apenas uma mulher traumatizada, dessas que tem um ar felino e mostram as garras disposta a atacar, mas que em determinado momento de piedade, diminui as garras e deixa a presa ir embora. Assumia uma postura baixa, fazia e dizia o que desse na telha. Mulher impulsiva cansada de toda a sofisticação que forjara para si mesma. Agora mostrava o que achava que era sua verdade e sua personalidade. Definitivamente, não merecia tudo o que Pedro tinha feito.
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Pedro ouvia rock progressivo no último volume em seu mp3 dado por Gisele devido à sua paixão por música. Três anos mais novo que Gisele, Pedro era muito imaturo e infantil. Nada mais era do que um menino mimado que passava horas no banheiro passando gel no cabelo e idolatrando seu penteado moicano que fazia sucesso com as garotas. Pelo menos, fez sucesso com aquela que no futuro, seria sua esposa. Entrou no ônibus. Encontrou um amigo e os dois conversaram banalidades. Nunca saíra nada inteligente da cabeça loira de Pedro. Adorava brincar com os passageiros que por sua vez, adoravam zombar da aparência grunge e moderninha do rapaz. E, como não agüentava zuação, encolhia-se sem graça em seu banco desconfortável. Tinha tudo para ser um bad boy em seu bad-day-hair, mas Pedro era feliz, pois tinha a aparência que pedira a Deus. Estilo. E nada mais importava.
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Eram lindos e jovens. Sabiam que tinham uma vida inteira pela frente. Gisele pegou no pé de seu amado, pois chegara atrasado para a feira literária onde ela iria expor seus poemas de amor. “Onde você estava, Zé Gotinha?” Perguntava ela rindo e zombando do cabelo de seu amado. “Engarrafamento terrível!” Respondia ele. “Sei...sei...” desacreditava ela. Pedro odiava poemas. O que para Gisele era uma livre expressão de sentimentos mais íntimos do ser humano, para Pedro eram apenas fragilidades remexidas em versos abstratos que ninguém entendia. E quando se propunha a entender, falava um monte de bobagens que ela educadamente fingia concordar.
Pior do que ele, eram suas concorrentes de tenda. Sabiam que Gisele era boa no que fazia e por isso despertava inveja nas outras estagiárias que nada tinham a acrescentar naquela exposição. Gisele tinha um currículo invejável. Havia escrito um livro aos 17 anos e seu sonho era ir ao programa do Jô Soares. Um dia realizaria. Enquanto isso, as outras poetisas-múmia entortavam o nariz e reclamavam: “A mesa não é só pra você, queridinha, trate de diminuir isto”. Justo ela que, tímida, escolhera um espaço irrisório, enquanto as outras disponibilizavam exemplares de forma que ocuparam muito mais espaço e ninguém reclamara. Gisele e Pedro: amigos naquela época que já se entendiam com o olhar. Ambos odiavam as pessoas pelo tom de voz: se a pessoa falava muito grosso, concluíam que não prestava; se falava pausadamente ou muito suave, como aquela mulher, era falsa. E quase nunca se enganavam. Depois da grosseria, Gisele, sem dizer uma palavra, recolheu os livros e foi embora sem dar explicações.
Correram livres, segurando, cada um, a aba da sacola que carregava os livros. Pedro de jeans desbotado, camisa listrada, tênis grandes, brinco na orelha esquerda, pulseiras e fone de ouvido. Gisele de vestidinho florido e sapatinho vermelho combinando com a armação de seus óculos. Já saindo da feira, ela parou diante da feira e desferiu o dedo do foda-se para o evento. Depois, passara a tarde ao lado de Pedro e só não viram o pôr-do-sol porque ele teve de buscar sua namorada para sair à noite. Sim, Pedro tinha uma namorada e atrasou-se por causa de Gisele. Ela estava feliz por descobrir que ele a amava, mas ainda não sabia. E, cedo ou tarde, seria dela.
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Andava devagar de propósito, não sabia porquê, mas não queria voltar para casa. Tentaria retardar o quanto pudesse. Sua cabeça doía. Tinha uma ferida e umas gotinhas de sangue desciam discretamente de sua cabeça. Não queria lembrar o que causara aquilo, pois doía mais no coração do que na cabeça. Pedro entrou em um boteco e comprou uma garrafa de refrigerante. A cada gole, tentava se convencer de que era uma dose de felicidade, uma injeção de ânimo. Era muita pretensão tentar ser feliz. O que queria mesmo era sair daquele estágio de tristeza e voltar à normalidade. “Ahhh”, refrescou-se com o líquido, que descia gelado pela garganta. E sentiu prazer em ser mal-educado, e arrotar enquanto passava no meio de duas senhoras.
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Enquanto fitava, com olhar matador, o garçom que paquerava há algum tempo, Gisele bebeu o capuccino de uma tacada só e, tal qual a gata selvagem que precisava ser, passou a língua nos lábios para tentar ser provocante e limpar o bigode que a bebida deixara. “Estupendo!”, exclamou, maliciosa, ao deixar uma nota em cima da mesa e sair decidida, sem esperar pelo troco. Vitoriosa, mas envergonhada, pois algo dentro dela dizia que aquela “femme fatale” não era realmente ela. Resolveu ir ao dentista.
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Pedro se descobriu apaixonado por Gisele quando fumavam um baseado embaixo da cama dela, enquanto seus pais trabalhavam. O intuito dela era atiçar, mas não beijar por maldade. Só que não agüentou estar frente a frente com o hálito de quem amava e resistir. Ela fingiu que não queria, mas ele esmagou sua boca com força até que ela cedesse. Achou que estava irremediavelmente apaixonado e realmente estava. Eram o casal perfeito, daqueles de encher os olhos e causar inveja aos admiradores do gênero comédia romântica americana. Abandonara um namoro de quase dois anos para ficar com Gisele. Descolados, antenados e cruéis, não poupavam ninguém. De quantos gays estavam na fila do cinema à vestimenta da adolescente de chapinha no cabelo que mascava chiclete e mais parecia estar ali para fazer programas do que para esperar o namorado na porta do banheiro do shopping. Eram sarcásticos, mas nem por isso, menos divertidos. Eram feitos um para o outro, pena que não sabiam que toda essa suposta felicidade infinita estava a ponto de acabar.
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No consultório, passou a tecer comentários espirituosos sobre a teoria do caos, e se sentiu a rainha da cultura inútil. Tudo para impressionar o dentista, e provar, a si mesma, que era capaz de conquistar alguém. Só que se esqueceu de um pequeno detalhe: considerava a situação mais humilhante do mundo a de ficar de boca aberta diante de um dentista. Sentia-se vulnerável, principalmente se levasse a sério sua opinião de que a maioria dos médicos e dentistas são atraentes. O dentista, para descontrair, brincava e fazia perguntinhas as quais ela, se pudesse escolher, preferiria estar sepultada a responder, com aquela voz de bêbada de uma pessoa anestesiada. Só que, quando ele, com a mão enluvada, colocou o dedo em sua boca escancarada, sentiu um imenso prazer. Estava excitada. Ele nem era tão bonito assim, já passara dos quarenta –como denunciavam os fios brancos em seu cabelo–, exibia uma aliança grossa na mão esquerda e, o pior, só cumpria seu trabalho. Continuaria então, sem uma aventura de amor. E sem sexo.
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Sim, quando disse que não a queria mais após tê-la desvirginado na lua de mel, Pedro não quisera ser mau caráter, só estava sendo sincero. E percebeu naquela hora que queria ser livre. Nada contra Gisele, mas era jovem demais para ter uma vida a dois. Ele, que dizia ser louco por ela, havia decepcionado a todos, inclusive a si mesmo. Não teria como anular o casamento, já que o ato sexual havia se consumado. A princípio, Gisele achou que se tratava de uma brincadeira e, só percebeu a gravidade, quando Pedro pegou as malas e jogou suas roupas de qualquer jeito. Justo ele, que havia prometido não magoá-la. Gisele sabia que ninguém pode garantir que nunca vai machucar outra pessoa, mas fez questão de esquecer porque queria acreditar no amor de sua vida. Sim, Gisele nunca se amou, só a Pedro. E agora ele saía de sua vida, apressado, e tropeçando no próprio cadarço sem se despedir. Da próxima vez, jurou a si mesma que se envolveria com um saci pererê. Pelo menos, se levasse outro pé no traseiro, faria questão de assistir ao tombo.
A vida de Gisele se dividia em antes, durante e depois de Pedro. Antes eram só sonhos e desejos de encontrar o príncipe encantado. Sentimentos suaves e gestos moderados a procura desse amor. E quando aquele que ela achava que seria seu príncipe chegou, quis bancar a princesinha sem passado e depositar todas as suas fichas em sua volúvel paixão cegada pela afobação de um falso sentimento. Seu trauma era perdê-lo. Mas o problema não era da princesa, sim do príncipe. Gisele se julgava esperta demais. Atiçava Pedro, mostrava o que sentia. Era pós-graduada na escola da vida, mas seu príncipe era apenas um jovem sedutor disposto a amar. Não tinha nem cavalo branco. Não conhecia o amor de verdade, mas Gisele fez com que ele acreditasse que ela poderia ser o amor de verdade de qualquer um. E foi assim até perdê-lo na noite de núpcias.
Fazia pose de vítima sem saber ao certo se era mesmo a desfavorecida e confusa da relação. Extremamente magoada, passava tudo para um papel na idéia romântica de ser descoberta após sua morte. Talvez isso desse sentido a sua vida. E tinha Isabelle, sua melhor amiga, que se propunha a ler seus sentimentos psicografados em caneta de tinta prateada num papel que mais tarde passariam para a frieza do Times New Romam nas caixas de e-mail. Era uma mulher ferida, uma avalanche de sentimentos contraditórios e incontroláveis.
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“Gisa, a ficha caiu. Desculpe-me, não quero isso pra mim”. Gisele paralisada com a lingerie cor de vinho presenteada pelo amado e batom borrado de tórridos beijos, olhou para Pedro num misto de descrença e pavor. Soltou uma risadinha nervosa e disse: “Pedro, isso são horas pra brincar desse jeito?”. Não era brincadeira. Pedro com um olhar assustado reafirmava que era jovem e que não podia mais se envolver. “Estou sendo sincero com você, Gisa”. Pedro se deparara com uma mulher seminua e transtornada em sua frente que lhe atirou um gatinho de madeira que fazia parte da decoração da casa de praia. O gatinho acertou em cheio na cabeça dele, mas ele nem se importava. Queria mesmo era sair dali. E já ia saindo, com um galo na cabeça. Gisele sentiu-se culpada e num misto de piedade e paixão, foi acolher seu marido para ver se ele tinha se ferido. Obsessão. Pedro esquivou-se dela e correu porta do quarto a fora. Gisele jogada no chão implorava para que ele não a abandonasse. Em vão. Chorava, chorava e chorava. Lágrimas grossas. Foi o primeiro passo de sua degradação como mulher. Ouviu quando, esquecendo de amarrar o cadarço, Pedro caiu escada abaixo. Pensou em rir, mas não conseguia. Gisele nunca se amara. Só soube o que era amor de verdade quando o conheceu. Ele, nem isso.
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As pessoas reagem de diversas maneiras a uma decepção. Umas se tornam suicidas, outras são só lamentações e outras são fortes adeptas do lema: Decepção não mata, ensina a viver. E nesse quadro, Pedro achava que se encontrava, mas, do seu ponto de vista, Gisele tinha mesmo se tornado uma “piranha”. Não se culpava de nada. Tinha sido franco e tinha consideração por ela. Consideração não é amor. Sentia que se levasse a mentira adiante, se tornaria um canalha, um mau caráter. E isso jamais. Já em casa, comendo pizza, bebendo pepsi com cachaça e assistindo a um programa de comédia sem ao menos soltar uma risada, a campainha tocou. Não queria atender e sua única companhia era seu cachorro Jimmy Hendrix. O cachorro não poderia atender, claro. Então, levantou-se, escondeu os restos de pizza e roupa suja espalhadas pela casa a fim de que o visitante inesperado não sentisse pena nem repulsa pela sua casa que nada mais era do que um reflexo de sua vida e seus sentimentos: uma bagunça. Abriu a porta e deparou-se com senhoras pseudo-simpáticas. “Testemunhas de Jeová”. “Foda-se”. Antes de fechar a porta, percebeu que Jimmy Hendrix havia fugido. Soltou um palavrão para as idosas assustadas com a hostilidade do jovem rapaz e saiu para procurar seu cão temendo que fosse roubado por ser de raça. Mesmo sem saber qual era a raça. Assim era Pedro. Não se dava conta das coisas que o rodeavam, das pessoas que o rodeavam, dos sentimentos que o rodeavam. Chorou feito criança.
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Resolveu que ia ter uma história de amor com o dentista. Acreditou no seu poder de sedução e na sua nova fase (de um eufemismo peculiar): mulher volúvel, e ligou para o dentista. Mandou flores apesar de ter se sentindo envergonhada por isso e marcou encontro com ele na praia. A mesma praia em frente a sua casa onde passara sua inesquecível noite de núpcias. Gisele estava provocante, de vestido preto meio transparente, sentada no balanço onde ela empurrava levemente seu amor à espera da chegada do pôr-do-sol. Queria que desse certo agora. Queria que seu encontro fosse perfeito. Ignorava o fato de que com toda a ventania da praia seu penteado pudesse se desfazer. Olhou mais uma vez o cartãozinho do consultório para não esquecer o nome do dentista.
Arnaldo era já um homem maduro. E, embora tivesse prometido a seus estagiários e sua secretária que não seria capaz de trair sua mulher e que nem pensava em ir ao encontro, ele foi. Confessou que cartõezinhos de duplo sentido eram o que o atraíam e por isso, suas promessas viraram ao avesso.
Quando Arnaldo chegou sem aquele jaleco branco, deixara de ser um grisalho charmoso e se tornara um velho de 80 anos. Gisele sentia-se patética e não parava de olhar pro colete de lã azul marinho de seu novo par. Ria por dentro. Risadas gostosas mesclando com aquela paisagem linda. Déja vu. Era de Pedro que ela se lembrava. Seus pensamentos eram involuntários. Resolveu aceitar o pedido do dentista para jantar. Queria sair dali, pois estava decepcionada ao constatar que não era indiferente ao local que passara os finais de tarde com seu ex-marido.
O jantar estava perfeito e Arnaldo era agradabilíssimo. O problema era com ela mesmo. Dispersa, impaciente e grossa. Fazendo o dentista passar vergonha e ficar acuado. Estava um pouco bêbada. Cuspiu vinho e falou bobagens. Gisele não queria estar ali com Arnaldo e sim com Pedro. E, enquanto degustavam a lagosta, começou a sentir coceiras e ficar vermelha. Era alérgica, mas não sabia. Correu para o banheiro e chorou desesperadamente. Molhava os braços e o rosto sem perceber que molhava todo o seu vestido. Para que foi inventar de comer lagosta? Apenas para mostrar sofisticação? Nunca fôra sofisticada quando estava com Pedro, mas agora queria se tornar outra pessoa. Queria apagar todo o resquício de sentimento e de convívio com Pedro. Jogou-se no chão do banheiro. A gerência estava a par do que estava acontecendo e, Arnaldo, constrangido, teve que acompanhar Gisele com o vestido pingando pelo restaurante sendo carregada por garçons, pois por causa da coceira, não conseguia nem andar. Seu vestido que era um pouco transparente estava encharcado e, mais uma vez, ela sentia-se uma idiota. Vinha na lembrança aquela cena em que também estava seminua quando quem ela mais amava detonou sua vida. Desmaiou.
Gisele acordou já medicada no hospital. Pediu desculpas e estava totalmente envergonhada. Arnaldo, um gentleman, a levou para casa sem dizer uma única palavra. Ele nunca mais tentaria cometer adultério e ela nunca mais voltaria ao consultório dele. Chegou em casa cansada e resolveu agir por impulso. Ligou para Pedro e disse que iria se matar, mas caiu na caixa postal. Não era chantagem. Não tinha nada a perder. Sempre fora exagerada. Enquanto esperava uma posição de seu ex-marido para saber como ele se sentiria com a bomba que ela acabara de lançar sobre a responsabilidade dele, entrou no “Messenger” e foi falar com uma amiga. E obteve a sincera resposta: “Gisa, você é egocêntrica porque:
1)sufoca
2)sabe que é complicada, mas diz que vale todo o trabalho que dá
3)tenta conquistar um homem só para se sentir desejada
4)quando consegue sair com ele, não o suporta mais
5)ameaça se matar sem se importar com quem a ama de verdade, só para se livrar da dor
6)vai ficar com raiva do que escrevi, mas é pura verdade (risos)...!!!”.
Embora não admitisse nem para si, Gisele concordava com a amiga, mas não queria acreditar em tudo o que acabara de ler a seu respeito. Agora, sentia vergonha. Não saberia como olhar para Pedro depois daquele vexame e de uma série de trapalhadas que fez, porque acreditava lutar por ele, sem pensar que nunca perdemos o que nos é de verdade, principalmente quando se trata de sentimentos.
Estava arrependida, principalmente depois de ter conhecido Zurawsky. Achava engraçada a maneira como fôra patética: era muito vaidosa para se matar; ainda mais da forma trágica que tinha planejado. E, afinal das contas, amores sempre vêm e vão como aves de verão, outono, inverno e primavera.
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Vida recomeçada, voltou ao trabalho do qual, meses anteriores, quase fôra despedida por conta da depressão que se instalara nela. Aparentemente estava linda e simpaticíssima como naturalmente era, mas no fundo ainda não estava totalmente recuperada. Estava num hotel e passaria um final de semana lá. Sua chefe mau-humorada, que prendia o porteiro a algemas em seu escritório para satisfazer suas fantasias sadomasoquistas, pedira a Gisele que fosse cobrir um congresso internacional de Ciências Moleculares na grande São Paulo e como não podia recusar, ela foi ao congresso, mesmo não gostando de servir como imprensa. Por que escolhera a profissão de Jornalismo? Assim não teria que servir como Relações Públicas e nem aturar Pedro em suas aulas de Roteiros de Cinema, porém, sabia que seu prestígio profissional estava decaindo e não hesitou em abrir um sorriso de aceitação para sua chefe que não retribuiu o sorriso.
No hotel em que a hospedava e abrigava o evento, procurava a figura de Pedro por todos os lugares e traços de centenas de homens que se encontravam naquele internato de Biologia. De repente, como algo sobrenatural, bateu os olhos em Zurawsky. Encantou-se na hora. Encantamento à primeira vista. Amor não. Não se sentia preparada para amar e andava meio desacreditada nesse sentimento. Mas, por um segundo, queria ao menos conhecer o homem capaz de fazê-la instantaneamente esquecer de seu ex-marido. Queria saber quem era o homem que fez despertar nela um sentimento súbito e estranho. Estranho pra melhor, claro. Decidiu que teria que conhecê-lo. Aproximou-se e perguntou seu nome. Afinal, o que tinha a perder? E, era da imprensa, logo, pretextos para puxar assunto não faltavam. Apaixonou-se pela simplicidade da resposta: “Zurawsky Schwartz”. Gisele arregalou os olhos sem entender. E ele logo explicou. “Não se espante. Nem eu sei a origem desse nome. Não tenho nem certeza de como se pronuncia isso”. Leve risada de ambos e Gisele falou: “Nossa. E que tipo de nome é esse? Grego?”. Leve risada novamente. “Acredito que seja polonês ou russo. Mas de qualquer forma, nasci na Suíça e moro em Cuba”. Mais risada. “Então, senhor mapa-múndi, prazer!”. E Zurawsky retificou: “Prazer não. Satisfação. O prazer vem depois” Risada acentuada. Gisele não perdeu tempo e disse “Prazer, então”. Zurawsky ficou surpreendido, mas não menos encantado. Ficou sem palavras. Nunca esperaria uma resposta daquelas. E, ela completou: “O gato comeu sua língua? Ou suas línguas?”.E, finalizando, Zurawsky disse: “Não se preocupe, se ele comeu uma língua, ainda me sobraram algumas. Se preciso, falo até mandarim, mas não deixo de me comunicar com você”.
A conversa foi se estendendo e conversaram sobre tudo. De gostos musicais à visão política. Gisele era fã de Elis Regina e Zurawsky só ouvia hinos de países. Ela o achou brega e estranho e ele a achou preconceituosa, mas os dois estavam adorando um ao outro. Depois ele disse que a história dos hinos era mentira e que ele tocava saxofone numa banda de jazz. Os dois riram muito. Gisele apreciava um homem que a fazia rir e isso era um ponto forte de Pedro, mas sem saber o motivo ela não pensara em Pedro durante a conversa toda. Estava totalmente envolvida com seu novo e exótico amor. Zurawsky fazia a linha “pré-coroa bem-sucedido” Regulava entre 38 e 40, médico infectologista, muito branco, esbelto, cabelos loiros e pêlos de barba prestes a nascer, mas que nunca nasciam. Era a contradição em pessoa, pois andava em ternos de grife e defendia idéias de Che Guevara. Sem contar nos seus discursos contra exploração do proletariado baseados em algum desses filósofos revolucionários que defendiam também os negros. Morava em Cuba por considerar a Suíça sofisticada demais para conseguir viver lá sem se sentir culpado.Gisele pegava-se estabelecendo diferenças entre as idéias de seu futuro grande amor e a futilidade de seu ex-marido. Na teoria, ela achou Zurawsky lindo, inteligente e engajado. Na prática, era muito fácil alguém de família rica largar tudo para se engajar em causas sociais. Queria ver se precisasse trabalhar todos os dias, sustentar família, e passasse dificuldades financeiras, teria a mesma opinião. Mas preferiu não emitir essa opinião. Guardaria para a primeira briga.
Estavam tão envolvidos que durante o evento todo procuravam acalento no olhar do outro. Não agüentavam mais os cientistas debatendo vários assuntos chatos e inúteis. O simples final de semana parecia uma eternidade perante todos aqueles doutores e estudiosos, mas Gisele não sairia daquela eternidade por nada no mundo. Por uma única pessoa, estava disposta a passar a vida inteira naquele evento chato. Quando um jornalista mauricinho pediu informações sobre um dado estatístico da Suíça, recorreu ao seu afeto sem pestanejar. Zurawsky viu a chance de fugir do evento e dar uma espairecida nos braços de Gisele. Disse que precisava subir ao seu quarto para pegar as informações em uma pasta. Pediu que Gisele o acompanhasse. De porta aberta, no quarto em que estava hospedado ao lado de outro palestrante, abriu o armário e pegou os folders, que caíram no chão. Quando, simultaneamente, agacharam para pegá-los, as bocas se atraíram em poucos segundos. Olhos nos olhos. Ele a beijou com fúria, ela apenas estranhou o mau hálito.”Colonizados por europeus, dá-se um desconto”, justificou a si mesma. Cambaleando, ele fechou a porta e a imprensou na parede. Ela de tailleur arriado e ele de calças abaixadas, loucos e jovens, jogando o peso das cinturas sem esperar nem se importar com o outro. Ele balbuciou algumas palavras num dialeto suíço que para ela eram apenas gemidos de prazer. “Definitivamente, sou uma piranha” pensou ela dando um breve sorriso.
Depois da tórrida cena excitante, foram olhar a cidade de cima, no alto de 20 andares do hotel. Ele falava de como nunca tinha visto São Paulo daquele ângulo e que, apesar da fama do Rio de Janeiro, São Paulo sim era uma cidade maravilhosa. Ela sentia que ele também estava envolvido, mas hesitava em fazer juras de amor, pois sabia que Zurawsky iria embora assim que o congresso terminasse. Voltaram para a palestra. Gisele já estava com as informações para o jornalista mauricinho. Estava desconcertada pela demora, mas estava extremamente feliz. Nunca estivera tão feliz e realizada em toda a sua vida. Realizada como ser humano. Realizada como mulher.
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A solidão fez com que Pedro pensasse que talvez a loucura de Gisele fosse um mal necessário. Não acreditou muito quando ouviu na sua caixa postal a ameaça de suicídio e resolveu partir pra outra. Agora precisava de uma mulher, mesmo que só por uma noite. Mesmo sabendo que ao término dessa noite voltaria a ficar só e continuaria vazio por dentro. Naquele momento, Pedro percebia que Gisele era realmente o amor de sua vida e que toda sua falta de maturidade foi a causa de todo o seu sofrimento. E agora estava sozinho. Sem ao menos Jimmy Hendrix para consolá-lo. Não achara o cachorro desde o Halloween. Chorou mais uma vez, mas disfarçou quando seu amigo da faculdade chegou com uma agenda de telefones e algumas fotos de mulheres para apresentar a ele. O amigo tinha a melhor das intenções, mas Pedro não estava entusiasmado com aquilo. Procurava outra coisa. Procurava mais. Procurava Gisele. Falaria com Gisele.
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Marcaram encontro de madrugada. Gisele pediu para que Zurawsky aparecesse após a colega de quarto dormir. Ela daria um toque no telefone de seu quarto. O combinado era ficarem apenas abraçados a noite toda, quietos debaixo dos lençóis e não trepar novamente. Ele, de pijama, chegou ao quarto e ela, que esperava pelo olho mágico, sussurrou que ele entrasse e fosse direto para debaixo das cobertas. Se fosse visto saindo do quarto em que estava hospedada, seria despedida. Não poderiam conversar muito, com o risco de sua assistente, que dormia na cama ao lado, acordar. Ficaram alguns minutos só se reconhecendo por toques, beijos, cheiros.
Descompromissado, disse que queria levá-la com ele. Ela não acreditava mais. Com Pedro, ela sempre modulou o tom de voz, as opiniões, os gestos, mas com Zurawsky ela poderia ser ela mesma sem correr o risco de ser julgada a qualquer momento. E não queria outra coisa. Poderia ficar horas ali conversando com seu “polonês-russo-cubano-suíço” novo amor. No entanto, com a maestria dos experientes, Zurawsky tapou sua boca e fez sexo com ela com o corpo protegido apenas pelo cobertor. O trauma de seu histórico seminua tinha sido superado. Agora ela estava feliz e mordendo o travesseiro, controlando-se para não gemer e acordar sua assistente.
No dia seguinte, disfarçou com maquiagem os olhos inchados e os chupões no pescoço. Já Zurawsky parecia ter levado uma surra. Término do evento. Não o acompanhou até o aeroporto porque ele iria de táxi acompanhado por outros cientistas e palestrantes. Ele ainda pediu para que o esperasse. Desiludida, Gisele disse que não iria. “A vida é assim mesmo, Sr. Mapa-múndi, cada um segue seu rumo”, advertiu. Quando ele visivelmente triste virou as costas, ela o chamou. E sorriu como agradecimento. Lágrimas na alma.
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De alma lavada, se livrou de todas as roupas de mulher oferecida, de todos os acessórios e de todas as idéias loucas que passavam pela sua cabeça assim que havia terminado com Pedro. Estava renovada, não precisava mais se auto-afirmar. Era a Gisele de sempre, ou melhor, uma nova Gisele. Uma mulher que se conhecia, que se amava, que sabia que dependia dela mesmo para encontrar a felicidade. Planejou uma prova de amor. Romântica, só sabia amar assim, dedicando-se até a exaustão. Exagerada e Intensa. Comprou um maiô e decidiu que atravessaria o país a nado para ir ao encontro de seu amado. Agüentaria nadar até Cuba? Não sabia. Era péssima em Geografia. E deveria estar preparada para morrer, se preciso. Morreria como uma heroína romântica. A mesma de seus poemas que tanto gostava de escrever. Quem sabe não fariam uma homenagem a ela no Programa do Jô Soares depois de morta? Nada mais a prendia naquele lugar. Iria em busca da felicidade. Antes de vestir o maiô, passou numa papelaria e comprou papel contact para revestir o mapa-múndi que levaria consigo.
Chegou em casa e encontrou Pedro, que a visitava com o intuito de renascer todo o amor que ele tinha e pedir perdão a quem ele sempre soube que era o amor de sua vida. Quando ela o encontrou, o tratou com tanta cordialidade que até o feriu. Ao servir biscoitos recheados e uma xícara de café-com-leite, Gisele falou de seus planos loucos de amor, de sair do país e que estava perdidamente apaixonada. Conversavam como velhos amigos que foram um dia. E essa era a prova da qual ela precisava. Não sentia ódio nem rancor por Pedro. E ele, abismado com tanta civilidade e simpatia de sua ex-mulher, desistiu de dizer o motivo da visita. Desistiu porque viu que Gisele estava feliz e, pior, sabia que ela estava feliz sem ele. Sentiu-se culpado, mas desta vez, não sabia se iria superar. Foi embora. Gisele sabia que ele queria reatar o relacionamento, porém, era tarde demais: ela se apaixonou perdidamente por um cara. Pouco tempo depois, foi rejeitada. Quando ele quis voltar atrás, era tarde. É a lei do retorno: Pedro não fôra legal com Gisele e alguém não seria com ele. Simples assim. Pedro precisava amadurecer e aprender a dar valor às pessoas. Acabara de descobrir o que era amar. Ficaria feliz mais tarde quando encontrasse Jimmy Hendrix de volta cavando um buraco em frente à porta da cozinha.
Após a conversa com Pedro, Gisele seguiu seu plano à risca. Já diante do abismo, em frente a um mar revolto que parecia espancar as pedras, em posição de mergulho, questionou-se: “Existe vida após amar demais?”. Fechou os olhos e concluiu. “Sim, existe!”. E se atirou, em posição de mergulho. Zurawsky a esperava, sem saber se um dia ela iria chegar...
FIM