Causos de Coribe - Nas garras de uma cascavel

Causo 13 do livro Casos Inacreditáveis de Coribe, de Marcos Macedo Barros.

 

|| Causo dedicado a alunos: mesmo com dificuldades financeiras e de transporte, é possível alcançar sucesso nos estudos || 

 

Bahiano Barros tinha 14 anos de idade no ano de 2008 e morava no povoado Ispiau.

 

Vale ressaltar que esse não é o nome oficial de lá. Nas escrituras de terras o chamam de Lagoa do Lucas. Ocorre que, a cerca de 5 km dele, existe um outro povoado chamado Luca, que tem o mesmo nome oficial do Ispiau, onde moram vários tios, primos e amigos do referido rapaz.

 

Feita essa distinção e agora sabendo que são lugares diferentes, apesar de terem oficialmente o mesmo nome, resta dizer que a morada de Bahiano era de difícil acesso, longe de tudo e, consequentemente, da estrada de fora, que liga o povoado do Tingui ao Luca e este à Porteiras. Seguindo nela, chega-se em Feira da Mata.

 

É importante esclarecer que a referida estrada é, de fato, uma estrada! Parece estranho dizer isso, mas é importante, já que naquela região nem toda via não asfaltada é chamada de estrada, pois existem os chamados carreiros e corredores.

 

Após tais esclarecimentos, cumpre dizer que o Ispiau é cortado de fora a fora por um corredor estreito, com alguns pontos intransitáveis por carros, próximos à antiga casa do Bahiano, passando apenas a pé, a cavalo, carro de boi, enfim, conduções que conseguem passar nas grotas.

 

A casa de Bahiano Barros era a última daquele corredor e, após ela, os caminhos eram os carreiros que, a depender do lugar, nem de carro de boi se passava.

 

Na ida para a escola, o garoto andava a pé até a estrada de fora para pegar o ônibus, que primeiro passava pelo Luca. Também poderia ir pelo corredor do Ispiau e pegá-lo numa parada um pouco à frente da de costume, mas o trajeto era maior, o que justificava reduzir a lonjura por aquele caminho estreito.

 

Apesar da distância ser menor pelo referido caminho, não pense que era moleza passar ali. Tinha um riacho no meio do trajeto e logo em seguida vinha uma ladeira escorregadia, com uns 70 graus de inclinação. Não é exagero, pois quase sempre precisava se agarrar em árvores para não escorregar e cair numa profunda grota que aumentava a cada chuva. Era, verdadeiramente, bem estreito e dificultoso aquele carreirinho.

 

Vencendo aquele pedacinho custoso, entrava-se numa manga de capim cheia de “uruvai”, ou seja, orvalho, sereno... O uruvai nada mais é do que as gotas de água sobre as folhas de capim, excelentes para enxarcar a roupa e os sapatos.

 

Como é bom um uruvai quando se está com os pés sujos e de sandália! Significa entrar sujo e sair limpinho!

 

Um lenço era colocado dentro da meia para limpar os sapados ao sair lá fora. Quando ouvia a zoada do ônibus, Bahiano Barros passava pelo estreito colchete, com cuidado para não deixar ali um pedaço da camisa, pois tratava-se de arames farpados mal-ajeitados.

 

Isto posto, quando o tempo estava de chuva e finalmente o garoto pegava o ônibus, sua mãe, lá da casinha velha, longe da estrada de fora, conseguia ouvir baixinho a zoada do “busão” e seu coração parece que partia junto. Ficava aflita e preocupada, pois não se tinha carro ou moto para buscar o menino caso aquele veículo atolasse nas ladeiras do Riachinho.

 

O percurso era de 15 km até a Vila Nova e a estrada, devido às chuvas, estavam péssimas. Em alguns pontos, era até difícil pensar como o ônibus conseguia passar. Além de estreita e escorregadia, muitos buracos profundos existiam em ambos os lados daquela estrada. Não foram poucas as vezes que o transporte escolar ficava atolado nas ladeiras.

 

Nos instantes prévios ao atolamento, gerava-se uma adrenalina bem legal nos garotos, já para as meninas tratava-se de uma terrível situação. Enquanto aqueles aproveitavam a ocasião para demonstrarem coragem, estas ficavam aflitas, sendo que algumas até choravam de medo.

 

Entre muitas ladeiras que faziam o espetáculo acontecer, destaca-se a famosa ladeira do riachinho. O ônibus descia uma pequena ladeirinha e o motorista a aproveitava para pegar o embalo e, assim, facilitar a subida da grandona, que se iniciava logo após o término da menor.

 

Mas durante as chuvas ficava escorregadia igual quiabo e, nas vezes que o ônibus atolava, ia bem até o meio dela. Lá começava a patinar. Ficava paradinho, porém trabalhando forte, com as rodas se movimentando a todo vapor.

 

Daí a pouco, o veículo começava a sambar para um lado e para o outro e, bruscamente, batia a traseira na encosta da estrada, que tinha uns três metros de altura...

 

Vou me abster de descrever os momentos prévios ao atolamento, pois o pânico dentro daquela condução era feio.

 

Prezado leitor, expor-lhe-ei apenas um dos diversos casos em que o ônibus atolou na referida ladeira. De toda forma, é interessante reforçar que, conforme esclarecido, outras ladeiras existiam e, com frequência, igualmente faziam o ônibus ficar preso nelas, o que levava a garotada a seguir a pé, seja de volta para a roça ou para a escola.

 

Uma das escolas ficava na Vila Nova, que era exclusivamente para o ensino fundamental II, e a outra ficava na sede de Coribe, atendendo os alunos do ensino médio. Quando o ônibus conseguia chegar na vila tudo estava resolvido, uma vez que dali a Coribe a estrada é asfaltada.

 

Eis, em síntese, as devidas considerações iniciais.

 

Agora, pegando emprestado algumas palavras de Machado de Assis, “vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo”!

 

Naquele dia chuvoso, atolado na ladeira do Riachinho, somente um trator era capaz de arrancar aquele ônibus dali, mas até chegar um poderia levar dias.

 

Com vontade de ir para escola, alguns alunos, inclusive Bahiano Barros, passaram a jogar pedras debaixo das rodas traseiras para dar tração... Não adiantou! Quanto mais o motorista acelerava, mais as rodas afundavam-se.

 

O jeito para os alunos da vila foi seguir a pé, mas não para casa e sim para a escola. Já os de Coribe não viram outra saída senão voltarem caminhando para suas moradas na roça, já que se fossem no mesmo rumo dos demais não teriam condução para levá-los até o destino final.

 

Passo a relatar a respeito dos que foram para a escola, pois Bahiano Barros estava no meio.

 

A bolsa estava pesada devido aos livros, pois eram cinco aulas diferentes por dia, cada uma com 45 minutos de duração, sendo três antes do recreio e duas após. Mas tinha que ir assim mesmo.

 

A caminhada foi longa e ninguém estava com guarda-chuva, razão pela qual, quando vinha uma chuva, todos ficavam ensopados – e os livros também!

 

Partiram rumo à Vila Nova! Não se via ninguém reclamar de nada. Pelo contrário, todos os alunos caminhavam alegremente.

 

Todos tinham seus amigos preferidos e com eles iam trocando ideias. Era muito bom! Se fosse possível voltar naquele tempo... se fosse possível nascer de novo... Certamente, o Bahiano ia querer nascer naquele mesmo lugar e nas mesmas condições!

 

Iam seguindo aquele trajeto sem um tostão furado no bolso, mas com o sorriso na cara, o que era espetacular! Pura alegria de viver! Todos, sem exceção, não reclamavam da vida.

 

A presença de cada colega encorajava os demais, numa espécie de transmissão coletiva de energia positiva, a continuar seguindo a longa jornada debaixo daquela neblina fria.

 

O fato é que estava, de verdade, bastante fria a neblina, mas o Bahiano não se importava com o frio dela. Pelo contrário, sentia um agradável calor, força e vontade de ir para a escola e vencer os estudos para satisfazer os anseios dos pais e de toda a família.

 

Após uma caminhada de mais de uma hora e meia, finalmente os alunos chegaram na Vila Nova. Apesar do atraso, assistiram as aulas que restaram e, às 17h00, quando bateu a sineta, saíram todos alegres como chegaram.

 

Chegava a dar um frio na barriga de vontade de pegar o estradão. Não se via tristeza, apesar das dificuldades!

 

E agora? O que eles fizeram para voltarem para casa? É simples: para que serve as pernas se não for para caminhar?

 

Bahiano, com disposição, deu a largada com os amigos e primos e partiram todos rumo aos povoados daquela região de Coribe. Oh vida boa! Tempo de felicidade! Tempo sem maldades! Tempo em que todos valorizavam cada passo que davam!

 

Naquela época, pouquíssimos pais de família tinham moto. Carro era a coisa mais rara do mundo e mesmo quem tivesse não poderia se arriscar naqueles atoleiros.

 

Por essa razão, alguns poucos pais vieram buscar de moto seus filhos na estrada. Os demais seguiam contentes. Era fácil perceber que muitos não gostavam de serem buscados: queriam mostrar suas forças de ir a pé ou correndo em alguns momentos, apesar de terem almoçado lá pelas dez da manhã e, após essa refeição, não terem comido mais nada...

 

Durante o longo trajeto, o Bahiano, interessado em uma das garotas, espertamente deu causa para ser deixado para trás pelos primos e amigos do Luca, Ispiau e Tingui.

 

Com ele iam, no total, três meninas, sendo duas irmãs, todas do Tingui. Ele sabia que o pai das irmãs tinha moto e a qualquer momento viria buscá-las, ocasião em que ficaria sozinho com a outra e, assim, poderia tentar conquistá-la.

 

Sabidamente, ele foi caminhando devagar, levando as meninas a andarem a passos lentos também. Dizia que era para não se cansarem e elas deram ouvido para ele.

 

Disse a elas o garoto:

– Devagar também chega e não cansa, né mesmo?

 

Elas concordaram veementemente e ele reforçou sua lábia em seguida:

– Estão vendo eles lá na frente andando rápido? Logo logo eles vão cansar e esperar a gente...

 

As moças então caíram na conversa dele e o grupo foi ficando para trás e se distanciando cada vez mais dos outros colegas... É fácil imaginar o que ele queria!

 

Passada cerca de meia hora, veio o namorado de uma das irmãs na moto do pai delas e levou as duas de uma só vez, ficando o danado do Bahiano na companhia da que restou, conforme havia planejado.

 

Conversa vai, conversa vem, quando perceberam já havia escurecido. Por enquanto, o Bahiano ainda não tinha entrado naquele papo com a menina, aquele específico de conquistas. Estavam conversando outras coisas. Ele tinha a manha para chegar nas meninas, mas sabia respeitar como ninguém a vontade delas.

 

Naquela época, ele ainda não tinha feito a música “olhando pra ela”, mas já sabia que jamais se deve tocar uma mulher se ela não quiser. Além disso, as palavras usadas numa conquista também jamais devem constrangê-la. Ou seja, tudo tem que fluir naturalmente, sem forçação de barra, nem assédio.

 

O plano de Bahiano Barros foi excelente, mas infelizmente ele não controlou bem o tempo e o pai das irmãs mandou buscar com sua moto a garota que ficou para trás antes dele dizer a ela suas pretensões amorosas.

 

Apesar de ser de costume, naquela época, três pessoas andarem numa só moto ao mesmo tempo, incluindo o piloto, a moça foi levada e o Bahiano ficou sozinho e decepcionado, já que havia perdido uma bela oportunidade de conquistá-la.

 

Demorou demais para entrar em assuntos amorosos e ficou se lamentando. Estava passando pelo povoado Riachinho quando o motoqueiro levou a menina que, por sinal, era muito bonita.

 

Seguiu sua jornada naquele breu, sendo ajudado imensamente pelo clarão dos relâmpagos que ocorriam a todo instante.

 

Em quase toda casa próxima da estrada por onde passava tinha cachorros valentes, que faziam questão de atacá-lo indelicadamente, para não dizer ferozmente!

 

Mas o Bahiano é corajoso e não tinha medo deles. Quebrou um pedaço de galho de uma árvore na beira da estrada e ia para cima dos cachorros. Assim foi até chegar naquele colchete estreito no final do carreiro que liga a estrada de fora à sua humilde residência.

 

A partir daquele ponto até sua casa a coisa muda, uma vez que na estrada, obviamente, não tinha mato, nem tocos, nem capim, nem gado, enfim, só atoleiros nos lugares mal cascalhados e ladeiras escorregadias... Isso o leitor sabe, mas, às vezes, o óbvio tem que ser dito!

 

Passou pelo colchete, com cuidado para não rasgar a camisa, e seguiu naquele carreiro, embrulhado pelas folhas de capim. O escuro era total!

 

Após caminhar um pouco naquela manga boa de capim, devido à escuridão, foi parar no meio da boiada de seu pai, conhecido na região toda como Tonim de Zim.

 

Bahiano não sabia que as vacas estavam ali. E o problema é que o rebanho se assustou com sua presença!

 

Levantaram-se todas as vacas, bezerros e o boi marruá. Naquele momento, Bahiano Barros conseguia ouvir até sua própria respiração, já que não moveu um passo sequer, com receio de tropeçar em algum bezerrinho e a vaca o pegar.

 

Como dito, estava relampeando. A ideia dele, então, era aguardar um relâmpago para ver melhor o que tinha a sua volta, o que de fato aconteceu.

 

O garoto se viu literalmente no meio do gado! Para onde olhava, aguardava o clarão do relâmpago e via que as vacas estavam ali, na sua frente. Ele ficou a pensar em como sair dali.

 

Estavam no meio do rebanho muitas vacas paridas e valentes, além do chefe da boiada, um marruá bem grandão e brabo.

 

O jeito foi aguardar vários relâmpagos para clarear o ambiente e ajudá-lo a escolher a melhor direção, ou seja, a que tinha menos gado pela frente. Foi difícil a escolha, mas na direção da cerca de arame que dividia aquela manga de uma capoeira cheia de mato, aparentava que o trajeto estava mais curto.

 

Ele então manteve o foco e aguardou mais alguns relâmpagos. Sem eles não dava para ver nadinha, já que estava “muito tarde da noite” e, se tinha lua, de nada valia, uma vez que o céu estava com “nuvens escuras de chuva”.

 

Aguardou o momento certo e começou a se mover na direção escolhida e, para seu desprazer, as vacas perceberam sua movimentação e se movimentaram também.

 

Com receio de levar umas pesadas, ou mesmo de ser atropelado por elas, em meio ao estouro da boiada, não viu outra solução senão correr passando por cima de tudo.

 

Saiu atropelando os bezerros, passando por cima das moitas e, após várias trombadas com algumas vacas, por sorte conseguiu vencer o trajeto e se esbarrar na cerca de arame farpado... o rapaz correu perigo demais!

 

O Bahiano subiu na cerca e entrou no meio de grandes pés de picão e mata-pasto, além de enormes garranchos de uma árvore que havia caído naquele local e já estava seca, com galhos pontudos e perigosos.

 

Com muita dificuldade e todo arranhado, passando em cima daqueles galhos e matos, foi beirando a cerca, até saltá-la novamente e voltar ao caminho certo, deixando o gado para trás.

 

Ao andar mais um pouquinho, chegou próximo ao lajeado, nome dado ao riacho que ali passava, porém ainda não tinha descido a ladeira. Estava próximo de uma profunda grota feita pelas enxurradas...

 

Movido pela luz dos relâmpagos, para não cair naquela grota, foi andando bem devagarzinho.

 

Num determinado passo que deu, foi surpreendido pelo bote de uma cascavel! Foi um susto danado! O trem foi feio!

 

Ao ouvir o som do chocalho, Bahiano Barros imediatamente iniciou um grande salto, o que o fez sair da mira da cobra, levando apenas uma chibatada na perna.

 

O problema foi que o carreiro era muito estreito e do lado da grota. Como o espaço estava curtinho demais, com o pulo que deu para fugir daquele bote mortal, ele escorregou e caiu naquela grota. Por sorte, não tinha ali nenhum toco pontudo de madeira...

 

Desceu grota abaixo, escorregando em suas beiradas e derrubando torrão para todo lado. Como conhecia bem aquela área, apesar da escuridão, logo saiu lá na frente, já do ladinho do riacho.

 

Daí em diante, seguiu o restante do caminho rumo à sua casa, sem lanterna sem nada!

 

Dali já dava para ouvir os gritos de sua mãe o chamando, que estava aflita e sem jantar, pois só fazia isso após sua chegada da escola.

 

Ao chegar, ela o acolheu em choros e estava tremendo, perguntando-o o porquê de não ter passado pelo corredor do Ispiau. Incontáveis vezes ele passou pelo referido corredor, sendo sempre atacado por cachorros valentes...

 

Como já estava muito “tarde da noite”, Bahiano foi correndo tomar banho para retirar a lama do corpo, valendo-se da água morna preparada previamente por sua mãe através do aquecimento no fogão a lenha de um litro de água numa escolateira velha.

 

Tal utensílio consistia numa lata de óleo de comida aproveitada especificamente para aquecer água e fazer café. Quando a água estava fervendo, rapidamente teria que ser despejada num volume adequado de água fria, antecipadamente colocado numa bacia que ficava em cima de um tamborete troncho no banheiro.

 

Apenas para esclarecimento, não se tratava exatamente de um banheiro, mas assim poderia ser chamado, ressalvando-se, logicamente, que era desprovido de chuveiro, bem como de pia e de vaso sanitário. Assim, servia apenas para não “banhar no tempo”.

 

De qualquer forma, o procedimento de aquecimento funcionava perfeitamente e, com as mãos, jogava-se aquela água morninha no lombo ...

 

Após o banho, apressadamente o rapaz foi comer feijão e arroz... era apenas o que tinha e estava bom demais! Não reclamava de jeito nenhum, pois o pior seria se não tivesse nada pra comer!

 

É imperioso ressaltar que a pressa para jantar não se justificava tanto pela fome e sim porque precisava ir logo se deitar e se descansar, uma vez que, no dia seguinte, teria que levantar bem cedinho para fazer as atividades escolares e, a partir das 9h00, seguir novamente a pé e sem preguiça a longa jornada até a escola, já que o ônibus encontrava-se atolado...

 

Sobre o personagem desse caso, o Bahiano Barros, como diz a famosa música de Roberto Carlos, revelo que esse cara sou eu...

 

 

Marcos Macedo (Cantor)
Enviado por Marcos Macedo (Cantor) em 11/02/2023
Reeditado em 13/02/2023
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