Causos de Coribe - Vozes e vultos

Causo 9 do meu livro "Casos Inacreditáveis de Coribe".

 

|| O foco ao escrever este causo não é o mistério sobrenatural e sim mostrar um pouco da realidade de quem vive na roça: uma vida tranquila, porém repleta de desafios... ||

 

Salvador, o dono da casa onde aconteceu o causo do lobisomem à prova de balas, precisou ir fazer tratamento de saúde em Goiânia. Para tanto, necessitava de alguém de confiança para cuidar de sua pequena fazenda até ele voltar.

 

Contudo, naquelas proximidades, Salvador não encontrou alguém que pudesse lhe fazer o favor, uma vez que sua casa fica num local distante de vizinhos e, além disso, já estava bem conhecido o caso do lobisomem. Por tais razões, todos que eram convidados se eximiam da tarefa.

 

Mas ainda bem que, distante dali uns quinze quilômetros, num outro povoado, morava seu sobrinho Ilhéus, um rapaz que tinha na época uns dezenove anos de idade e dizia não ter medo de nada.

 

Ao ser convidado para a missão, Ilhéus não hesitou em dizer sim e aceitou imediatamente, visto que se tratava de um de seus tios preferidos e um favorzinho daquele ele faria com enorme prazer.

 

Apesar da discordância de seus pais, que ficaram bastante preocupados com a estadia solitária dele na casa de Salvador, Ilhéus não quis nem saber dos perigos e foi para lá mesmo assim, pois com ele não se via dificuldades. Trata-se de uma pessoa decidida e que não volta atrás no que diz.

 

No dia de ir para sua missão, ele estava na sede de Coribe, razão pela qual pegou um ônibus até a Vila Nova e de lá seguiu a pé para o destino final, fazendo uma caminhada de uns sete quilômetros numa estrada cheia de poeira.

 

Quando chegou no destino, achando que estava tudo bem, Ilhéus foi cumprimentar seus parentes, mas a voz não saiu, uma vez que uma boa quantidade de pó da estrada se instalou em sua garganta, o que gerou um pigarro complicado e muito desagradável. Com a voz falhando, disse ele ao pessoal:

– Caramba, mas que trem infeliz é esse! “Mouuuuço”, esse pigarro nojento atrapalha a gente falar. Como pode um negócio desse!

 

Caro leitor, considere que na palavra “mouuuuço” a letra “u” é pronunciada como se fosse uma só nota com ligadura, ou seja, o som não se reparte. O tempo da pronúncia da referida letra é cerca de quatro vezes maior do que o das outras. Dessa forma, imaginemos um compasso 4x4 e que o “m”, “o” e “ç” sejam semínimas. Nesse caso, o “u” teria a duração de uma semibreve, o que equivale a de duas mínimas...

 

Posto isto, após vários goles de água, até que enfim Ilhéus conseguiu dar bom dia a seus parentes.

 

Notou-se que seu tio Salvador estava preocupado com ele ficar na casa sozinho e o perguntou se queria que alguém fosse chamado para ficar lá também. O rapaz recusou de imediato!

 

Disse que sozinho saberia agir se precisasse e mais alguém lá com ele poderia mais atrapalhá-lo do que ajudá-lo. Disse-lhe Salvador:

– Mas é para você não ficar sozinho moço!

 

Não teve jeito! O rapaz de coragem queria mesmo ter tudo em sua responsabilidade. Ainda disse que, quando o tio chegasse de viagem, iria encontrar tudo como deixou, ou seja, tudo bem zelado, e que se colocasse mais alguém lá poderia desarrumar alguma coisa sem que ele percebesse.

 

Mas o dono da casa estava mesmo preocupado com um possível aparecimento do lobisomem, razão pela qual resolveu contar-lhe o caso para ver se ficaria com medo e, com isso, poderia aceitar a presença, pelo menos à noite, de um outro sobrinho seu, primo de Ilhéus por parte de mãe, que se colocou à disposição. Tratava-se do danado do Itororó!

 

Itororó foi convidado dias antes a ficar na casa, mas recusou. Disse que sozinho não ficava de jeito nenhum. Entretanto, com outra pessoa, era só Salvador falar que ele iria de imediato.

 

O caso então foi contado a Ilhéus por Salvador e Jequié, aquele senhor que o ajudou no dia do sufoco. No momento da narração do fato, eles estavam na casa do referido senhor que, por sinal, é muito gente boa e brincalhão.

 

Após contar-lhe o caso, Ilhéus não se abalou nem um pouquinho e continuou decidido a encarar a missão sozinho. Ele ainda brincou:

– Se por acaso aparecer alguma livusia lá eu dou uma prosa com ela.

 

Ocorre que, além de possíveis assombrações, existia na casa um cachorro grande e valente e outro pequeno, um foguinho de palha que tinha uma ligeireza danada.

 

Adestrar aqueles cachorros foi a primeira missão do rapaz, já que eles o recebeu com fogo nas ventas. Mas isso não era problema: Ilhéus já estava acostumado com cachorros valentes em seu povoado, pois no tempo em que chegava à noite da escola, dava de cara com vários ao descer a pé o longo corredor até sua casa.

 

De toda forma, precisava tomar cuidado, pois o grandão era perigoso e o pequeno mais ainda, já que causava o alvoroço para a vinda do mais forte, que sempre vinha atrás, fazendo a devida proteção do mais fraco e do terreno.

 

Salvador ordenou a Ilhéus para todos os dias, sempre à tardezinha, amarrar o cachorro maior na corrente, para evitar que saísse à noite atrás de cadelas no cio e se envolvesse em confusão com outros cachorros, o que sempre gerava ferimentos nada bonitos de se ver.

 

Partiram Salvador e sua esposa, a Dona Maria da Vitória, rumo à Goiânia.

 

Iniciou-se para o jovem Ilhéus uma longa jornada de 20 dias ali sozinho.

 

De pouco a pouco, o tranquilo rapaz conseguiu conquistar a confiança daqueles cachorros, mas foi custoso, principalmente no primeiro dia, ocasião em que houve vários rosnados mostrando os dentes.

 

O cachorro maior chamava-se Gustavo, ao passo que o menor tinha o apelido de Pulguinha. A razão do nome Gustavo é simples, já que foi o próprio animal que o escolheu, típico de pessoas e não de animais.

 

Brevemente, eis o motivo pelo qual o cachorro escolheu seu próprio e bonito nome: quando chamado de “Chorrim”, ele nem sequer olhava. Na verdade, quando chamado por qualquer outro nome, ele não atendia. Salvador, com frequência, foi lhe fornecendo vários nomes para testar se algum o agradava. Certo dia, conversando com alguém, impensadamente pronunciou o nome Gustavo, o que fez o cachorro levantar a cabeça e vir até ele sacudindo o rabo. Após alguns testes, notou-se que o animal realmente gostou muito da referida palavra, tornando-se seu nome oficial a partir daquele dia...

 

Dito isto, de vez em quando, Ilhéus ia à noite na casa do Seu Félix do Coribe, um outro tio dele por parte de mãe, irmão de Salvador e pai de Itororó.

 

Seu Félix é morador daquele mesmo povoado, entretanto, sua casa fica um pouco distante da de seu irmão. Quando Ilhéus estava lá, todas as pessoas presentes o admiravam pela coragem, dizendo:

– Eu que não tenho coragem de dormir lá à noite de jeito nenhum. Pode me pagar o que for que eu não vou.

 

Mas o rapaz não era assombrado. Sempre que ia lá à noite, só saia depois das 23h00 e descia o corredor até a casa de Salvador, ao som de corujas e, às vezes, das temidas coans.

 

Em um determinado dia, a esposa de Jequié, a Dona Correntina, pediu ao rapaz umas acerolas. Lá na casa onde ele estava, tinha tantas que uma grande quantidade estava se perdendo todos os dias: o chão ficava sempre forrado de frutas.

 

Ilhéus, bem tranquilo e solitário, foi catando as frutas num momento em que o sol estava se pondo e a luz do dia, lentamente, ia sumindo naquele horizonte sem fim.

 

Naquele momento, alguém o chamou, pronunciando seu nome com todas as letras. Ele olhou na direção de onde veio a voz, mas não viu nada.

 

Continuou sua tarefa, apesar da estranheza daquilo...

 

Ao entrar dentro da casa para tomar um banho, ouviu uma zoada estranha lá fora, detrás da casa. Era algo bem diferente. Parecia uma briga de gato com cachorros uivando, algo absolutamente atípico.

 

Ilhéus até achou que poderia ser um ataque de Gustavo e Pulguinha a algum gato desavisado que passava por ali.

 

Foi verificar e viu que os cachorros estavam bem tranquilos do outro lado, como se não tivessem ouvido nada. Isso o chamou a atenção, já que eles davam conta de tudo que acontecia nos arredores da casa. Eram muito espertos. Latiam qualquer pessoa ou animal estranho que passasse por ali.

 

Ao se dirigir para detrás da casa, no local exato de onde saiu a zoada, nada foi visto.

 

Instantes depois, para sua surpresa, viu a cancela se abrir sozinha!

 

Ilhéus havia conferido a tranca daquela cancela mais cedo para evitar que as vacas saíssem para fora da propriedade. Ele tinha certeza de ter colocado a trava certinho.

 

Sem medo, aproximou-se e, antes de chegar na cerca, viu uma mulher de vestido branco a uns dez metros de distância.

 

O rapaz andou depressa para o rumo da mulher e a viu desaparecer de repente. Apesar do fato de que já era quase à noite, ainda dava para avistar perfeitamente o horizonte.

 

Pensou Ilhéus naquele momento:

– Por que será que esses cachorros espertos não latiram?

 

Eis um mistério!

 

De toda forma, tomou seu banho e se ajeitou para ir levar as acerolas para Dona Correntina, que já estava o esperando, ansiosa para fazer um suco gostoso com aquelas frutas.

 

Ilhéus também não via a hora de chegar lá logo para jantar uma comida quentinha.

 

Entretanto, antes de sair da casa, ouviu novamente alguém o chamar, só que já estava à noite!

 

Não adiantaria nem olhar, uma vez que, com exceção de coisas luminosas, quem está na claridade não vê quem está na escuridão, mas quem está no escuro vê quem está no claro.

 

Ilhéus era, de fato, um rapaz corajoso e não se desesperava à toa. Ele pensou:

– Se for algum defunto querendo se aparecer e quiser ir trocando ideia comigo, está convidado!

 

Sem cisma, ele foi jantar e levar as acerolas e nem fez questão de contar o caso para Jequié e Dona Correntina, que sempre o recebiam com muita atenção e carisma sensacional, contando-lhe piadas que o fazia morrer de rir.

 

Sendo assim, aqueles chamamentos não o abalaram!

 

Saiu de lá bem tarde, próximo da meia-noite. Ao descer o corredor num breu danado, não viu nada, mas sentiu calafrios. Chegando na casa, foi dormir seu sono tranquilo.

 

A estadia do rapaz de Coribe na casa de Salvador foi marcada por fatos estranhos. São mistérios que ele não conseguiu desvendar.

 

Entretanto, dias depois, Ilhéus soube que, coincidência ou não, seu velho amigo Ipirá, irmão de Jaborandi, havia morrido exatamente no primeiro dia em que ouviu vozes e viu vultos.

 

Talvez o defunto estava tentando convidá-lo para ir ao velório!

 

 

 

Marcos Macedo (Cantor)
Enviado por Marcos Macedo (Cantor) em 10/02/2023
Reeditado em 10/02/2023
Código do texto: T7715932
Classificação de conteúdo: seguro