Causo 1 do livro "Casos Inacreditáveis de Coribe", de Marcos Macedo.
Causos de Coribe - A encarnação na fazenda Varginha
|| Histórias da vida rural - Este causo aborda um dos maiores mistérios da humanidade: existe encarnação? Entretanto, esse não é o foco... o foco é mostrar um pouco da realidade de como era a vida na zona rural tempos atrás, principalmente em relação a meios de comunicação e de transporte ... ||
A fazenda Varginha está localizada a 50 km da sede do município de Coribe/BA, ao passo que a fazenda Formiga está a cerca de um sexto dessa distância. As duas distam-se aproximadamente 60 km.
Sabe-se que a distância é algo muito relativo, pois depende do meio de condução. Sendo de carro, o distanciamento entre as duas fazendas é pequeno, mas andando a pé ou a cavalo é gigantesco.
Dito isto, em meados de 1950, morava uma família bastante unida em Varginha. O patriota chamava-se Seu Ramalho, a mãe Dona Carinhanha e o filho mais corajoso era Luís Eduardo Magalhães, sendo chamado apenas de Luís.
Luís, um jovem que não tinha medo de nada, enfrentava qualquer trabalho para manter sua família. Trabalhava de foice, machado, enxada, enfim, encarava variados tipos de labor e tinha a fama de ser muito bom de serviço.
Ao se casar, o ilustre trabalhador foi morar na fazenda Formiga, deixando na Varginha seus pais e alguns irmãos mais novos. Acreditem: em termos de sentimentos da mãe pela partida, era como se hoje um filho fosse morar no exterior!
Não é exagero dizer que era até pior do que isso, pois atualmente temos ferramentas de comunicação avançadíssimas, como redes sociais e chamadas de vídeo via WhatsApp, ao passo que, naquela época, para esse caso específico, nem carta via correios seria possível, já que se tratava de fazendas num mesmo município, transitadas quase que totalmente apenas pelos seus próprios moradores a pé, a cavalo ou com carro de boi.
Assim, a comunicação à distância não se dava de outra forma senão através de recados: Fulano, manda um recado para Sicrano... diz a ele que...
Todavia, até isso era difícil naquela época, pois não era fácil encontrar alguém que fosse ao destino da pessoa com a qual se queria mandar o recado. O leitor pode estar pensando no seguinte: não podia ir diretamente, já que tratava-se de uma distância em torno de 60 km?
O fato é que a Dona Carinhanha, devido à idade já avançada, não teria forças para andar a pé uma lonjura dessa. Por outro lado, ir a cavalo bom de pisada seria uma ótima alternativa, se caso os pais de Luís tivessem um. Nem mesmo um que andasse trotando de forma desconfortável eles tinham e, se ela pegasse algum emprestado, certamente chegaria na Formiga com fortes dores na espinhela. Se chegasse!
Mas Luís tinha um cavalo muito bom de pisada, no qual levou sua esposa, a Dona Itaberaba, após o casório. Ocorre que o homem vivia mergulhado em trabalho braçal e dificilmente tinha folga para viajar tamanha distância.
Sendo assim, alguns anos se passaram e Luís já tinha dois de seus dez filhos, época em que, infelizmente, ocorreu a morte de Dona Carinhanha. Seu Ramalho ficou inconformado por ter perdido sua mulher e passou a ter problemas para gerir seus bens, que eram dois leitões, três leitoas, um barrão, uma vaca de leite e uns cinco hectares de terras boas para plantio. Para quem não sabe, barrão é um porco adulto não castrado.
Dessa forma, Ramalho não estava mais aguentando realizar os trabalhos da roça, passando enorme dificuldade para alimentar a si próprio e seus filhos que ainda moravam com ele. E o problema é que estava complicado para Luís ajudá-lo, já que morava distante e, devido ao casamento, tinha obrigações para com sua nova família.
Valendo-se disso, seu vizinho mais próximo, o Seu Brumado, aproveitou a situação e quis comprá-la a troco de uma vaca parida e um bode velho. A vaca já estava tão velha que ficava o tempo todo cabisbaixa, só esperando chegar a hora da morte. O bezerro, na mesma situação, mal conseguia ficar de pé, uma vez que a mãe não tinha mais leite para ele mamar.
Disse aquele homem ao pai de Luís:
– Ramalho, você não tem onde cair morto...vive passando fome... nem forças você possui mais para trabalhar. Para que você quer mais essa terra? Deixa de besteira e me vende essa terra aí. Te dou nela uma vaca parida e um bode bom de cria.
Respondeu-lhe Seu Ramalho:
– E onde vou criar esses animais?
Brumado disse que ele poderia ficar com a morada, que era cercada por um terreiro com uns quarenta metros de largura e uns cinquenta de comprimento. Ali, segundo o vizinho, dava para o viúvo da finada Carinhanha criar todos os animais tranquilamente e ainda teria muita carne para comer quando quisesse levar para a panela algum deles.
Devido à fome que Seu Ramalho e seus filhos estavam passando, ele resolveu fechar o negócio, sem que Luís soubesse do caso. Repito: Luís Eduardo não sabia do que estava se passando com seu pai e da venda da terra.
Seu Brumado, então, enganou o pobre coitado, visto que a pequena fazenda valia muito mais e, como se não bastasse, juntamente com Dona Barreiras, sua mulher, ficou zombando do coitado.
O casal se apossou dos cinco hectares de terra, que se emendaram com as que Dona Barreiras havia recebido de herança, ficando muito feliz com o fechamento daquele verdadeiro calote.
Passaram alguns dias e os dois não paravam de sorrir e zombar do nobre Ramalho, chamando-o de aquele velho besta o tempo todo. Mas essa zombaria não durou muito tempo, pois a vida deles virou uma tormenta.
Um belo dia de manhã, Seu Brumado acordou e percebeu que sua mulher estava estranha: não respondeu suas perguntas e nem lhe deu bom dia. Pensou ele:
– O que será que essa mulher tem mesmo que parou de conversar?
Passaram-se uns quatro dias e Dona Barreiras continuava sem respondê-lo nem cumprimentá-lo. Estava com um comportamento cada dia mais estranho, razão pela qual o marido passou a ficar com medo dela. O jeito foi chamar um experiente homem daquela região: Seu Desidério. Era a pessoa certa, pois sabia lidar como ninguém com coisas estranhas daquela natureza.
O recado foi dado àquele homem, que logo compareceu para examinar a mulher. Sem timidez, ela abriu o verbo para ele e, após algumas conversas estranhas, manifestou-se naquele corpo quem estava ali: a Finada Carinhanha!
Concluíram então que a falecida esposa de Seu Ramalho encarnou-se no corpo da mulher de Seu Brumado. A senhora revelou que só sairia dali quando a venda da terra fosse desfeita.
A forma de falar, tom e timbre de voz eram exatamente os de Dona Carinhanha, não restando dúvidas quanto à encarnação.
A partir daquele momento, ficou clara a indignação que a falecida teve com o trote dado em seu marido e, principalmente, com a zombaria que fizeram dele. Qual a mulher que gosta de ver seu marido ser ridicularizado, não é mesmo?
A negociação extraterrestre foi feita exclusivamente com a presença do Seu Desidério, que figurou como intermediador entre Seu Brumado e a falecida. Impressionantemente, os olhos da mulher reviravam-se, dando voltas que deixava o marido morrendo de medo.
É preciso advertir que nem todo mundo consegue falar com defuntos. Eis aí a importante presença daquele exorcista, já que a finada senhora só se manifestava para ele. Dessa forma, era, efetivamente, o único daquela região capaz de manter um bom diálogo naquela ocasião.
Sem objeções, obviamente, Seu Brumado aceitou desfazer o negócio, implorando para ter sua mulher de volta imediatamente e acabar logo com aquilo.
Já estava à noite e Dona Barreiras, com seu corpo possuído, disse a Seu Desidério:
– Amanhã Luís vai sair da Formiga de manhã e chegará aqui à noite para cuidar da terra. Brumado vai ter que desfazer o negócio e pegar o bode velho e a vaca parida de volta. Não quero nada deles, só o que é meu.
Os dois homens concordaram veementemente. Aliás, não tinham nem como discordarem das ordens de uma livusia! Disse ainda Dona Carinhanha, com palavras dirigidas a Seu Brumado:
– Amanhã à noite, quando Luís chegar, eu saio do corpo da sua mulher e você nunca mais vai dar calote em ninguém.
Enquanto isso, o filho dela, em sua humilde casa na fazenda Formiga, moveu alguns passos em direção à candeia para apagá-la, pois Dona Itaberaba já tinha ido se deitar e o chamado para fazer o mesmo. Os filhos já estavam dormindo.
No exato momento em que puxou o ar para soprar a candeia, uma voz o chamou lá fora:
– Luís, vem aqui!
Ele se lembrou da mãe imediatamente. Ficou parado e quieto, na expectativa de ouvir o chamamento mais uma vez, pois não estava totalmente convencido de que alguém o havia chamado.
Sentou-se. Aguardou uns cinco minutos e ajoelhou-se para a pequena estátua de Nossa Senhora. Rezou o Pai Nosso e a Ave Maria por três vez e, antes de dizer a última palavra da última rodada de oração, sua mulher o chamou:
– Luís, o que foi mesmo? Venha dormir logo!
Luís obedeceu e foi se deitar. Dona Itaberaba logo dormiu, mas ele não! Ficou pensativo:
– O que foi aquilo? Será que foi minha mãe me chamando?
Homem de muita coragem como era ele, não hesitou em ir lá fora. E foi!
Segundo o que disse o maior contador de casos de Coribe/BA, o qual contou e vivenciou o presente causo, posso dizer que a ida lá fora foi mais agradável do que se possa imaginar.
Diferentemente da tratativa com o zombador de Seu Ramalho, aqui o trato foi delicado. Afinal de contas, tratava-se de mãe e filho, motivo pelo qual a conversa é diferente.
Luís Eduardo, ao sair lá fora, para todo lado que olhava via o rosto de sua mãe e o restante do corpo dela ficava mergulhado na escuridão daquela noite sem lua.
Ele, então, passou a mão sobre os olhos e os fecharam por uns dez segundos. Ao abri-los novamente, viu sua mãe em sua frente, a uns três metros de distância, com o mesmo vestido que usava quando eles se viram pela última vez.
Luís não disse nada, só ficou olhando. Após alguns instantes, Dona Carinhanha deu-lhe o recado, ou melhor, a ordem insuscetível de recusa:
– Luís, você vai cuidar do seu pai porque ele foi judiado pelo vizinho lá e foi enganado por ele. Você vai mudar para lá e cuidar da terra do seu pai. Ramalho e meus filhos que estão lá com ele precisam de você para zelar deles. Amanhã você vai para lá de manhã e quando você chegar lá eu vou sair do corpo da mulher de Brumado.
Luís Eduardo tentou se eximir da missão e disse:
– Mas eu já tenho minhas coisas aqui na Formiga mãe... fica ruim de eu largar tudo aqui e me mudar para lá.
Ela lhe disse:
– Você não tem escolha. Faz o que estou te mandando!
Logo em seguida, Dona Carinhanha desapareceu-se e tudo foi feito conforme ela ordenou, ou seja, seu filho obediente mudou-se para Varginha. Primeiro ele foi sozinho a cavalo resolver o problema entre a falecida e seu Brumado; depois voltou e levou de carro de boi suas coisinhas e sua família que acabara de constituir.
Ao chegar lá no entardecer, quando Luís cruzou a porteira do terreiro de Brumado, tudo voltou ao normal e eles puderam tratar o caso de homem para homem, sem qualquer interferência da finada Carinhanha, que naquele instante saiu do corpo de Dona Barreiras, conforme havia prometido.
Seu Brumado ficou tão aliviado e feliz que foi com Luís na casa de Seu Ramalho. Chegando lá, o tratou com enorme delicadeza. Só faltou colocá-lo no colo!
O casal, então, devolveu a terra para Seu Ramalho, que passou a ser zelada pelo nobre Luís Eduardo Magalhães.
Ocorreu, assim, o distrato do injusto contrato verbal entre Brumado e Ramalho.
Após aquele dia, não houve mais relatos de aparição da Dona Carinhanha.