Um caso de quê

E foi assim que se deu. O homem chegou e não disse nada. Quieto, todos ficaram. Um gole de cachaça e só. Saiu. Todos de olhos a olhar sabe-se lá pra onde, mas foi. Silêncio todo ambiente. Ninguém falava. Dava pra ouvir inté suspiro de respiração cansada, ou com medo, vai saber, nunca se sabe. Medo é igual Amor, quem sente, sente, e não diz, só sente. Também igual é o medo. Se for homem que sente, aí não diz mesmo. Ah, pois sim, que homem diz que sente medo! Diz não, não que não diz. Pai desde criança ensina filho que não tem que ter medo, medo é coisa de gente fraca, descorajosa; coisa mais besta, isso eu acho, sempre achei, pois sim, sempre que achei coisa mais sem causa, mais que demais de besta achar que homem não sente medo. Hã, vai sim, acreditar nessa besteragem que homem não sente medo. A pois que é sim. Uma coisa sem chão, sem chão, isso que é, acreditar que homem não sente medo. Duvido que Lampião nunca que sentiu medo. Duvido se, quando via a volante, a polícia do sertão, não sentia medo, nem que fosse um de dedinho só. Ah, pois que sim. Eu heim, acreditar numa besteragem desta. Quê não. Não acredito nisso, não. Também não quero pensar que Lampião fosse um cagão, isso não! Que padrinho Cícero me perdoe pensar um troço desses. Nunca. Nunca que pensei nisso. Lampião era homen mais que homem nessas paragens. Ah, pois que era. E Maria Bonita!? Eita, que era valente. Sim, se era. Era tão valente que Lampião com ela não se indispunha. Cabra esperto era Lampião, vai se indispor com a amada? Claro que não! Na vida, primeiro o Amor, depois, e só depois, a coragem. Do medo nem falo nada; o bicho chega e fica, invade, e fica. Intrometido que só, é o medo. O Amor também que é um pouco intrometido, inté que a gente gosta, gosta mesmo que fique, que não vai não. O Amor é aquele trocin, um mexerico, quem nem bicho de pé, que fica atazanando a mente, mas que é bão, ô se é, bão mais que da conta. O medo não! É medonho, pegajento, um negócio mais que de mais de ruim. O medo inté que pode ter alguma coisa de bão, acho que tem. O medo pode fazer que a gente não se arrisque tanto, correr perigo à toa, então, nisso, o medo pode ser um alerta para pessoa não se arriscar, correr perigo. Mas só isso. Só isso de mais nada que o medo pode ter algo de bom. No mais, no maior das veis, o medo estanca a gente, faz a gente ficar presa, sem conseguir dar passo, assim, tipo árvore, grudada na terra. O medo é isso também. Grudar a gente na terra, igualzinho árvore. Troço medonho isso é que é.

O sujeito saiu. Seguido por olhos curiosos, o sujeito seguia à frente. Passos firmes, como quem não quer perder tempo, o sujeito andava tão depressa que atrás um rastilho de poeira levantava, ia ligeiro, com pressa de chegar.

Foi como já se tivesse ido há muito tempo. Não havia viva alma capaz de lembrar. Dos mais velhos vivos, pois muitos já não estavam nesse mundo, dos poucos que restaram, só se ouvia um triste lamento da memória ser tão fraca. Não conseguiam resgatar, mesmo com médio esforço, qualquer mínimo de lembrança. Tudo ficara guardado, não se sabe onde, num canto qualquer da memória que não permitia acesso. Perdido, inacessível, intocável, somente isso se destacava quando se tentava trazer ao presente aqueles fatos.

Por encantamento. Por puro encantamento se sucedeu de acontecer o que não se imaginava possível. Foi inusitado o acontecido, mas fato é, ninguém duvida, que ao subir a ribanceira, sim, ligeiro e decidido por fazer algo sem perda de tempo, sem que nem mesmo a chegada da morte, em pessoa, pudesse fazer que parasse, o homem, decidido a dar pé ao que veio fazer, o homem, inté que nem parecia, melhor, parecia sim, que algo sobrenatural, coisa de outro mundo mesmo, invisivi, mas sentido, o homem seguia firme e decidido. Nem olhava pros lado, não. Seguia firme, decidido, olhar fixo, duro, igual boi brabo, coicento, pula pula, de modo que se pisar no vaqueiro, é morte certa, vaqueiro menos um, outro vencido, porque o boi, boi coicento, quando fixa olho no chão, quase que só de olhar, levanta poeira. E pois é que é, o homem parecia boi brabo, caminha duro e firme, olho duro, fixo, reto na direção do serviço encomendado, ia fazer, pois sim, que ia.

E é pois que na casa da ribanceira, causa que um dia caiu telhado de chuva forte, causa que, desde o dia da queda do telhado, a casa, simples que já era, ficou inda mais simples. Casinha miúda, pequena, que quase parecia de brinquedo, de pequena que era, lá na cidade, quer dizer, lá pelas bandas longe da ribanceira, então chamavam de cidade, porque lá ficava a prefeitura e a casa do prefeito, a pois que era a prefeitura e a casa, tudo junto, então assim se falava que a casa parecia de brinquedo de pequena que era. E pois sim, falavam sim, mas, sabiam que não era de brinquedo porque lá mora gente.

Manuel, Maria e seis filhos, vingados, somente quatro, Zito, Núbia, Rosilda e Rosivaldo. Quatro almas boas de pensamento e gosto de ajudar os outros. Herdaram do pai, o gosto pelo trabalho e o cuidado com a roça. Não sabiam fazer outra coisa senão roçar e trabalhar o gado e outras crias. Acordavam cedo, quase junto com o sol, as veis isso até acontecia, mas, acordar com o galo Mimoso e o relincho de Peralta - cavalo forte, manchado de preto, marrom e listras brancas - , isso sim, mais que tudo era normal. Acordar cedo e ir pra lida. Casinha simples que era, mas de boa que lá morava. Casal e quatro filhos vingados de seis. Thomas e Miranda, os dois que não vingaram, foram cedo morar com o Pai, dizia a mãe, toda vez que falavam deles. Derramar lágrimas, até que corria sim. Dona Maria era mulher forte, igual outra Maria, Maria Bonita, mulher de Lampião. Dona Maria, Maria, do Manuel, forte que era, as veis, poucas sim, inté escorria lágrimas, mas logo que secava e ia cuidar da vida, sem lamentos, sem precisão de consolo. Não gostava de consolo; dizia que consolo amolece o brio da gente, deixa a pessoa fraca de ânimo; consolo dá preguiça de viver, e a vida, a vida como ela é, não pode ser levada na moleza, não.

"Quero não, quero não, pai", disse o menino, o menor dos quatro. Zito era assim, pequeno, magrinho, pele quase que marrom, cabelos mirrados, igual cabelo de milho, inté na cor. O menino, igual a todos os meninos, mas, mais esperto, não que se costumava, não havia jeito de costumar, mesmo que pai e mãe mandassem, o menino não costumava, inté que o padre também falasse, desse benção, mas não, não costuma de jeito maneira, o menino não costuma usar calça de perna, calça comprida. Zito, as veis inté que corria quando mãe vinha com calça de perna para levar todos pra igreja. Zito gostava de ir na igreja, mas calça de perna, calça comprida, que havia jeito dele costumar. Não gostava porque prendia perna e não dava pra correr, falava quando alguém perguntava. E pois que é. Não gostava e pronto. Nem pai, nem mãe e padre, cada qual com seu jeito e autoridade, tentavam, mas não conseguiam; Zinho, Zito ou Zitinho não gostava de calça com pernas.

Núbia, a pintadinha, também chamada de joaninha, por causa do bicho das plantação e cheio de manchinha preta pelo corpo. Núbia não tinha manchas pretas, não. Tinha umas pintinhas marronzinhos que se destacam na sua branquinha. Era a caçula de todos, porém, a mais danada. Gostava de correr pelo terreiro atrás do marreco Chicão. Também não dava descanso pro cavalo Listrado. Com listrado gostava de dar voltas longas pelo sítio. Não cansava nunca. Inté esquecia das horas pra comer. Várias veis a mãe precisou sair a procura da menina pra comer alguma coisa, se dependesse de Núbia ela nem comia e Listrado também não. Então, era assim que era, Núbia não dava de parar um tempo que fosse, dava parecer que pra ela o tempo não tinha fim, que depois de acordar, sem comer um tiquinho de pão sequer, ela já que corria pro terreiro e ver o Chicão e Santinha, uma galinha cega que ficou sem zóio quando enfrentou uma cobra pronta pra dar o bote num filhote. Santinha não fez por outra, correu por de cima da peçonhenta e não parava de bicar na cabeça. Ficou cega quando a cobra deu um solavanco e Santinha bateu o zóio no bico do prego, na cerca, mas salvou a cria e a peçonha fugiu pro meio do mato. É sim, Santinha era por demais que corajosa, inté o galo, o galo Tico, penoso que só, penas grandes, brilhantes, inté Tico, não se punha com ela, não. Tico inté que era grande e penoso, mas, com Santinha, não botava banca, pois que não. Rosivaldo, o mais velho dos quatro, e o segundo dos seis, caso dois não tivesse morrido, Rosivaldo falava que Santinha e Núbia eram gemas de alma, brabas que só. Todos riam, menos Núbia, que ralava com Rosivaldo, dizendo que não era galinha, não tinha bico, não tinha penas. Depois sorria, quando escutava que eram gêmeas na braveza, e saia disparada pelo terreiro a procura de Listrado ou de alguma árvore, que pudesse subir.

Agora que tudo é mais por demais danoso, disse o Pai, primoroso é necessário nessa vida andar direito. Ter só o que é seu, tomar de outro não presta, se indispõe com Deus e ofende nossos pais. É roubo e feio, isso que é. Pai era homem símbolo de honesto, pobre sim, mas honesto mais que mil homens. Pai era de falar pouco. Gostava de falar não. Só de olhar, o recado chegava e era entendido. Homem nascido pro trabalho. Desde que nasceu que nunca teve dia de descanso, só de domingo, pela manhã, quando ia pra igreja, é que não ia pra roça. Homem temeroso a Deus, tinha, por dentro do chapéu, uma imagem do Menino Deus. Era dedicado por que demais, tinha tanta fé, tanta dedicação, que fez um pequeno altar pra homenagear o Santo. Pai, era assim, simplesmente, era assim, honesto, pouca fala e muita fé; homem bão demais era Pai. Sem desafensa por ninguém, era conhecido pela firmeza no trabalho. Jovem era quando acudiu um homem por demais de ruim e briguento. Sem amigos e sem modos poucos de educação, ninguém que dele gostava. Mas Pai, não. Pai não dava ouvidos pro que falavam. Cada um tem sua cruz, disse Pai, quando Mãe falou do homem. Não falou mais. Pai era assim, pouco fala, e Mãe sabia, Pai não gostava de falar dos outros.

No bar ninguém mais sabia. O homem que subiu a ribeira, ligeiro, passos firmes, ninguém mais que podia dizer donde ele estava. Só sabia que tinha subido a ribeira, olhos firmes, cara mais que de sério que inté seu prefeito que passava com sua comitiva, inté ele, não foi capaz de olhar o homem nos zóio. Tudo no mistério ficou; não tinha mais que ninguém capaz de dizer o paradeiro do sujeito. Quanto mais se especulava, menos, cada vez menos, as pessoas sabiam donde o sujeito estava. Alguém, assim, ignorante no acontecido, assim, língua solta, amigo do falar alheio, alguém, dessa laia de gente que sabe de tudo, menos ficar calado, sabe, então, esse alguém, disse que viu o homem subindo a ribeira. Viu quando ele passou pela casa do prefeito, a maior da região, com varanda grande e rede pra descanso, viu que ele, assim, olhos firmes, quando chegava perto da casa do prefeito, viu que ele, para ver melhor, diminuiu a pressa, diminuiu os passo, quase parou, mas não parou, só diminuiu os passo e olhou pra casa do prefeito. Depois, não vi mais nada, disse Piponho, o velho mais velho da região. Piponho, apelido de Abelardo Juventino Bragantino de São Paulo, era nascido na Paraíba, mas veio para as bandas de Garanhuns, bem pequeno. Era o ano da grande seca. No ano perto dos 1915. Perdeu cinco irmãos, uma cachorra, um papagaio e uma vaquinha, magra, de leite. O pai bebia muito. Não aguentou, morreu de cachaça, tinha trinta e nove anos. A mãe, dona Belarmina Constantina Constãncia Peres, ou, dona Nina, criou Piponho e Rosinha, sozinha. Morreu com cinquenta e seis, quando os filhos já passavam dos dezoito. Piponho era assim, sem mulher e sem filhos. Conhecedor de todos os moradores, sabia de cada qual o quê ninguém queria saber. Não era homem de segredos, isso que nunca, conhecido, à boca pequena, por língua solta, lábio mole, Piponho , mais que ninguém, era mais falado que Zula, a dama dona da casa proibida, e guardiã de secretos segredos.

Apois que era sim. Ninguém que duvidava, não. Nem de lasqueio que alguém, inda que besta da vida, sem um nada de juízo, um nada mesmo, cabeça oca, de vento, como se diz de gente sem miolo, apois, sim, que alguém, fosse capaz, corajoso, macho mesmo, de dizer, desconfiar, maldizer, da fé de Rosilda. Apois que não. Rosilda era quase que santa. Alma limpa, limpinha mesmo, que mesmo nói, nói que mora nessas região de terra seca, poerenta, pegajenta, nói que tinha a pele, assim, meio vermelha, cor da terra, Rosilda, ah, Rosilda, não. Rosilda era assim, quase santa mesmo. Falava bem baixinho, quase um canto, uma oração. Quando falava, a voz de Rosilda, suave, leve, as veis que confundia com a brisa que as veis vinha da serra. Rosilda era sim, quase santa, quase porque nunca que feis milagre, quer dizer, que nunca ninguém falou, que viu, que viu ela fazer milagre. Mas corria nas região, um falatório, um rebuliço de diz que me diz, assim, sem comprovação, sem, como diz um doutor advogado, sem materialidade, que prova, que dá cabo que Rosilda feis milagre. Também nunca que disseram que não, que não feis milagre. Inté o padre, Padre Bento do Espírito Santo, nunca que disse que não feis milagre. Só falava que "das coisas de Deus, o mió, é não duvidar" E assim é que é. Rosilda, quase santa, é a doçura que Deus mandou. Não tem voz pra nada, quer dizer, voz pra dar bronca, pra ralar com a gente, não, isso Rosilda não tem. É engraçado que quando Rosilda está perto, Lindalva, vizinha do sítio, começa a falar tão alto que inté os gado ficam esquisitos. Parece que eles entendem que a voz alta de Lindalva é tão ranhida, ardita, que inté eles começa a mugir. Parece que fazem isso para Lindalva ficar quieta, calada. Quando Rosilda fala, eles fica, quietos, não houve um pio, quer dizer, um mugido, mugidinho mesmo, não.

Chovia muito. Ao contrário dos meses anteriores, meses secos, sem uma gota de chuva, aquela tarde, diferente das outras, estava com as nuvens carregadas e escuras. E foi nesse clima de uma tarde cinzenta, tarde visitada por uma torrencial chuva, chuva a meses esperada e pedida nas rezas e orações, chuva salvadora da pouca lavoura espalhada nos pequenos terreiros dos pequenos quintais dos pequenos sítios, quintais, lugar de vivências de gente e bichos, que, naquela tarde, diferente de tantas outras monótonas e iguais outras tardes, por muitos anos, que, sob torrencial chuva, pedida por rezas e orações, que naquela tarde, bem ao longe, mas não tão longe, ao derredor, onde, sabia-se, o prefeito mantinha um casebre para ocasiões não públicas e, menos ainda, publicáveis no jornal local. Naquela tarde, tarde escura e chuvosa, bem ao longe, mas não tão longe, ouviu-se um estampido, alto e agudo, tão alto e agudo que, mesmo sob torrencial chuva e esparsos trovões não impediram , não foram capazes de evitar o som agudo e alto do estampido.

Pois que foi assim sim. Daquela tarde por diante, por mais que as autoridades perguntassem, bisbilhotassem, não se achou vivaalma capaz de dizer se viu ou se deixou de ver essa coisa medonha que foi encontrar retrato do sr.prefeito e dona Zula, sim, dona Zula, há muito falada dona da casa proibida, ambos abraçados numa festa que não sabe de quem. Todavia, Piponho, o mais bem que demais sabedor da vida alheia, disse às autoridades que na tarde da torrencial chuva, tarde escura, viu o sr. prefeito e dona Zula a sairem pela estrada da ribeira. Por certo ou por mentiroso, nunca se poderá afirmar, mas o que se sabe é que Zito virou um homem de respeito e admiração desde que se tornou prefeito da cidade. Na ocupação de deputado, tem feito muitos projetos que ajudam a cidade e seus habitantes terem uma vida melhor. Núbia, a menina travessa, viaja pelo mundo e tem muitos amigos. Rosilda saiu do covento e hoje trabalha num vilarejo no remoto canto de um país na America do Sul; diz que servir ao senhor, támbém é servir ao próximo. Rosivaldo, o mais velho dos quatro que sobreviveram, dos seis, que mãe e pai tiveram, lida com a roça e o gado, nas horas vagas, horas do corpo acalmar, como diz, conta histórias.