O PACIENTE QUE QUERIA SER ATEU

Nesses meus dez anos de atendimento psicanalítico, já tive pacientes com diversas queixas e traumas, mas um em especial me chamou a atenção pela sua peculiaridade. O paciente, do qual a ética não me deixa revelar o nome, procurou-me há alguns meses com a seguinte frase: “Eu quero ser ateu”.

Confesso que quando ouvi essa frase, fiquei surpreendido, foi algo realmente inusitado. Vou mostrar como se deu as nossas sessões, condensarei nesses poucos diálogos todo o conteúdo que tratamos durante os meses que se seguiram:

No dia 14 de maio deste mesmo ano, o paciente me procurou, iniciando-se assim a terapia:

— Bom dia, eu tenho uma questão e gostaria que você me ajudasse. — Falou ele.

— Por favor, sente-se. — Indiquei a ele o divã.

Ele sentou-se e permaneceu momentaneamente em silêncio.

— Gostaria que trouxesse luz para a minha dúvida, Deus existe ou não? — o paciente questionou.

— O que você pensa a respeito da existência, ou não, de Deus?

— Na verdade, queria não acreditar, eu quero ser ateu. Mas são tantas pessoas dizendo que Deus é real, e tantas outras dizendo que não.

— O que te levou a querer ser ateu?

— Na verdade, foi por frustrações.

— Você se frustrou com Deus?

— Não necessariamente com Deus, mas com a ideia que meus pais fizeram dele, da ideia que me fizeram digerir.

— Qual ideia foi essa?

O paciente ficou pensativo, procurando traçar uma linha coesa de raciocínio.

— Desde pequeno, meus pais diziam que o homem nasce condenado, mas que Deus o liberta. Eu não entendia isso quando era criança, eu não sabia o que me condenava. Eu não havia feito nada de errado. Por que seria eu um condenado? Por que precisaria eu ser liberto? Como eu disse, eu não entendia.

“Conforme eu fui crescendo, essa crença foi me aprisionando mais. Estranho dizer isso, era para eu ser liberto conforme eu ia me aprofundando na religião, porém isso gerava um efeito contrário, eu me sentia preso”.

O paciente se calou, ficou considerando as próprias afirmações.

— Você disse que quanto mais se aprofundava na religião, mais você se sentia preso. Poderia me dizer que maneira se dava esse aprisionamento? — indaguei.

— Minha prisão era o medo. — Ele falou.

— Medo de quê?

— Da condenação que tanto me falavam, da qual eu fui supostamente liberto. Todos no meu círculo de relacionamento me falavam: “Não faça isso que é pecado, e pecador vai para o Inferno”, ou coisas como “Se você continuar com essas atitudes vai desagradar a Deus, e quem desagrada a Deus vai para o lago de fogo”. Eu me sentia pressionado a viver restrito ao que as pessoas diziam ser o certo. E o que agradava a Deus.

— E o que você pensava a respeito dessas alegações?

— Pensava que Deus, mesmo tendo tanto amor, como dizia a igreja, igualmente tinha ódio. Eu vivia dividido entre o ódio e o amor de Deus.

— E o que te motivou a buscar o ateísmo?

— Foi um encontro que tive com um ateu. Não sei exatamente como chegamos ao ponto da religião, e nem me lembro muito o conteúdo daquilo que ele me falou, no entanto, uma coisa que ele me disse me marcou muito. Ele falou o seguinte: “Entre escolher o Céu ou o Inferno, eu prefiro fazer meu próprio caminho”. Eu vi naquele homem uma leveza sem igual. Ele vivia por suas escolhas, não pelas escolhas que a igreja ou as pessoas faziam por ele. Ele fazia seu próprio caminho.

— Então, você quer ser ateu porque quer ser dono do seu destino, das suas escolhas e das suas consequências; sem o peso de ir para o Inferno, você quer ser livre para viver sua vida. Estou correto na minha observação? Gostaria de mudar alguma coisa ou acrescentar?

— Não! É exatamente isso. Eu gostaria de ser livre de verdade.

— O que te impede de ser ateu? Já que é isso que você busca.

— O mesmo medo que me motivou a querer buscar o ateísmo. Ainda tenho medo de tudo ser verdade e eu estar de fato sendo condenado ao Inferno; e as pessoas que me alertaram estarem certas.

— Imagine que as pessoas nunca te disseram sobre o Céu e o Inferno, e nunca foi apresentado uma religião a você. O que você pensaria a respeito de Deus?

— Que ele tem coisas mais importantes que fazer do que ficar condenando as pessoas ao Inferno. Que as próprias pessoas transformam suas vidas em um lugar ruim para viver.

— Ou um lugar bom, dependendo das escolhas. — Eu acrescentei.

— Ou um lugar bom, dependendo das escolhas. — Ele repetiu.

Ele refletiu longamente, permiti o silêncio, para que ele tirasse suas próprias conclusões.

— Afinal, Deus existe ou não? A religião está certa?

— Se uma pessoa te levantasse essas questões, o que você responderia?

— Que Deus é real, mas que talvez a religião tenha mentido para nós.

— Você acredita no que diz?

— De certa forma, acredito. O mundo funciona em uma engrenagem perfeita, acredito que exista algo que nos liga através de uma teia invisível, porém acessível a todos, não apenas aos religiosos. O que você me diz? — perguntou meu paciente.

— Deus é o que você acredita que ele é. — Fui sucinto.

— Sim, Deus é aquilo que acredito que ele seja.

*****

Tentei resumir ao máximo, sem perder a essência, os meus diálogos com o meu paciente. Claro que para chegarmos juntos a essa conclusão muitas conversas foram necessárias, muitas crenças foram quebradas e muitas barreiras foram postas por terra. Devo destacar que eu pedi a permissão do meu paciente para escrever esse pequeno relato e sujeitei esse texto a ele.

Se eu trouxe esse caso à tona, é porque em algum momento eu também me deparei com essas questões. Nasci em um berço religioso, entretanto, com o passar dos anos, eu fui observando a religião e fiz um acordo interno comigo mesmo: eu iria acreditar no Deus que transcende toda religiosidade.

A verdade, ao menos para mim, a religião monopolizou a fé, Deus é para todos e todos fluem de Deus. Estamos unidos por essa conexão intangível que denominamos Espiritualidade.

Felipe Pereira dos Santos
Enviado por Felipe Pereira dos Santos em 20/10/2022
Código do texto: T7632000
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