Os herdeiros

- Já podemos comemorar? - Sussurrou Yohanna em meu ouvido, enquanto o caixão de Natnael Beca Obi era baixado ao interior do jazigo perpétuo.

- Melhor esperar até que tenham fechado a sepultura - repliquei no mesmo tom. - O velho Natnael era cheio de truques.

- Ainda não inventaram um truque para enganar a morte - replicou Yohanna com um sorriso irônico. - Dessa vez, nos livramos do velho definitivamente.

Eu não estava tão certo assim. Natnael Beca Obi sempre buscara um meio de prolongar sua existência, e intensificara a procura nos últimos anos, quando sua saúde começara a declinar. Nós, seus herdeiros, que ali estávamos no cemitério com um misto de tristeza e alívio, fazíamos planos sobre o que seria feito com a fortuna do velho, devidamente dividida pelos parentes mais próximos. O único filho dele morrera anos atrás, sem deixar descendentes, e a mãe do herdeiro também nos fizera o favor de falecer antes do marido.

- O velho pode ter deixado algum truque na manga para a leitura do testamento - ponderei. - Felizmente, não teremos que esperar muito.

De fato, quando nos reunimos para conhecer a vontade final de Natnael Beca Obi, fomos informados pelo testamenteiro que o velho havia deixado toda a sua fortuna para uma organização sem fins lucrativos, a qual levaria o seu nome.

- Eu não disse que ele queria viver pra sempre? - Cochichei ao ouvido de Yohanna.

- Alguém vai precisar administrar essa instituição - retrucou ela, sem se dar por vencida.

- E qual é o objetivo da tal organização? - Questionou Mekdem, um dos nossos primos, mostrando-se francamente decepcionado.

- Reprodução humana - redarguiu o testamenteiro. - Mais especificamente, clonagem; o senhor Beca Obi deixou material genético suficiente, para que os pesquisadores que serão contratados possam trabalhar na criação de uma cópia genética exata dele.

Olhares confusos cruzaram o ambiente. Aquilo provavelmente levaria anos, e não havia a menor garantia de que desse certo. Talvez fosse melhor, comentaram alguns, questionar a sanidade mental do velho Beca Obi e levar o caso para a justiça arbitrar. Foi então, que Yohanna ergueu a mão.

- "Material genético", não é? - Indagou ao testamenteiro.

- Exato - replicou ele.

- Pois se esse material permitir inseminação artificial, eu me ofereço como voluntária para ter um filho com o DNA do nosso parente - declarou ela, pondo-se de pé.

- E assim, herdar toda a fortuna? - Questionou o primo Mekdem, sobrolhos erguidos.

- Não. Eu seria apenas a preceptora do herdeiro, tendo um cargo e salário para cuidar dele até que atingisse a maioridade, e decidisse o que fazer com o dinheiro.

Diante dos olhares desconfiados que recebeu, acrescentou rapidamente:

- Dele, naturalmente.

Todos concluímos que aquela seria uma maneira menos conflituosa de resolver a questão do que deixar a cargo da justiça, já que tecnicamente cumpria a vontade do falecido; ao menos, em parte. Yohanna, obviamente, era a única que teria motivos para comemorar por antecipação, mas ela também assumiria o encargo mais pesado, qual seja, gerar e cuidar do herdeiro do velho Natnael. Quanto aos demais, teriam que esperar pelo menos dezoito anos para saber se teriam acesso à alguma fatia da herança.

Na saída da reunião, quando entramos no meu carro, ela virou-se para mim e perguntou:

- Você tem interesse em me ajudar a cuidar dessa criança?

Balancei afirmativamente a cabeça.

- Acho que o velho Natnael gostaria de nascer num lar bem estruturado; vamos cuidar disso.

Não era impossível que aquele desfecho não estivesse nos planos do velho, ponderei.

- [20-09-2022]