Vai à luta
Transcrição do depoimento de §§§§§ §§§§§§, tomado em 4 de novembro de 2015, nas dependências da Policia Federal no Aeroporto de Guarulhos (SP), quando de sua deportação pelo Departamento de Imigração dos Estados Unidos da América.
Tá bom, tá bom, já entendi, não precisa ficar irritado… Mas me arruma um café, vai? Ficar só na água vai ser foda… Desculpa! Desculpa! Eu não quis ofender… Ah, posso falar palavrão? Ufa, pelo menos isso… Mas me arruma um café, sim, se faz favor… Pô, os caras não tiveram a menor preocupação de me mandar pra cá de um jeito sequer digno… Me meteram no primeiro vôo que saia dos States [sic], e era a porra de um avião de uma companhia de merda, uma lata velha com umas poltronas apertadas, zoadas, até me impressionei de ver que aquela banheira saiu do chão…
Por que me deportaram? Porque eu estava ilegal em Nova York, é claro! Tem outra razão pra eles deportarem gente de lá? E justamente quando as coisas começaram a dar certo… Depois de mais de dois anos de luta… Diabos… Sei que a polícia achou o prédio lá no meio do Bronx, cercaram a porra toda, bloquearam todas as portas e foram de apartamento em apartamento com seus capacetes e coletes à prova de bala, com alguém de terno e gravata gritando bravatas, socavam a porta, quem tá aí, documentos, quem mais, ilegal, pro camburão e já era… Tocaram o terror no prédio todo… O Juanes e alguns dos colombianos disseram que iam pular pro prédio do lado pelo teto, eles são loucos, eu nem tentei… O portuga que morava no apartamento em frente ao meu abriu uma fresta de porta, ouviu o que diziam no corredor e já ia se fechar quando me viu. Só disse: “Agora tu te fodestes…” e fechou a porta pra valer. O palhaço está legal lá, e cagou pra todo o resto do mundo… Os marroquinos e venezuelanos tentavam conversar com os peruanos e somalis, e ninguém entendia porra nenhuma… Eu fiquei tão puto, tão fodido da vida que nem fechei minha porta. Tinha que ser justo agora? Eu tinha conseguido, porra… Eles berraram um pouco comigo, não respondi nada, então só me arrastaram pra fora do prédio e pra dentro do camburão… E aqui estou eu…
Pois é, tinha que ser em Nova York, né? Alguns anos atrás e eu teria ido a Londres ou a San Francisco. Mais tempo ainda pra trás e teria ido a Paris. É nestes lugares onde corre a grana que há espaço pra você ser artista, pra tentar a sorte, aparecer pro mundo e, talvez, ver alguma coisa dar certo. E tinha rolado pra mim… E quem for fazer isso daqui pra frente certamente terá que ir pra Pequim… Bom, eu peguei a oportunidade que apareceu na minha frente. E tinha rolado…
Aqui, no Brasil, eu fazia aquilo que todo músico faz: dava um milhão de aulas por semana, tocava em todas as bandas que podia, gravava com todos que me chamavam, tentava falar com todo mundo que conseguia, gravava vídeos tocando e ensinando, até conseguia me manter de música, mas era sempre apertado, virava e mexia uma conta ficava pra trás, tudo o que eu comprava era de segunda mão… Isso porque estudei bateria a porra da vida inteira, horas e horas e horas em cima do instrumento… E, cara, eu adoro tocar! Não conseguiria viver atrás de uma mesa de terno e gravata nem fodendo! Nem por todo o dinheiro do mundo! Passo muito bem montando instrumento, ensaiando, com música na veia! Bom, uma hora essa vidinha de corda bamba bateu duro, não aguentei mais ter que ficar sempre contando moedinhas, viver com a corda no pescoço o tempo todo, e decidi tentar a sorte.
Pra não dizer que não conhecia ninguém em Nova York, eu tinha dado aulas de bateria pra um cara uns anos atrás, o Pedro, e ele foi pra Nova York quando conseguiu uma bolsa pra estudar naquela faculdade de lá… Universidade, é? É, essa aí, essa tal da Colômbia… Columba? Columbia, é, isso mesmo! Ele conseguiu uma bolsa pra estudar línguas, ou literatura, sei lá… Sei que ele e a Emily foram morar lá, e a gente se falava por e-mail. Falei com eles na véspera de sair do Brasil, e disseram que podiam me ajudar, mas não dava pra eu ficar com eles. Como ficavam num apê da faculdade, isso dava um puta rolo… Também disseram que sou louco e que não seria nada fácil… Ainda assim, eles quebraram vários galhos pra mim, me ajudaram a achar um lugar pra ficar, que era até um lugar decente, suficientemente limpo, me arrumaram umas roupas pros dias frios e eu vivia filando uma bóia e uns conhaques na casa deles! Ainda assim, comi o pão que o diabo amassou… Sem contar os dias em que não comi nada!
A primeira coisa que fiz por lá foi arranjar trabalho num restaurante. Mas trabalho de peão, mesmo, limpar chão, por lixo pra fora, carregar caixas… Ficava feliz quando me punham pra lavar louça, trabalho suave… Mas eu não estava lá pra isso! Queria trabalhar com música! E passava os dias levando cartões de visita nas escolas e estúdios, e pedindo indicação de bandas e gravações, e me dispondo a dar aulas… A maior parte das pessoas via meu cartão, dizia “Ah, que legal… E você tem visto? Olha, agora, não estamos precisando, mas qualquer coisa a gente liga…” Mais de uma vez notei que jogaram meu cartão fora…
Tá, eu fui pra lá com uma expectativa muito alta! Achei que ia chegar lá, que iam me ver tocando, “oh, grande batera”, e ia chover trabalho… Virava e mexia eu me pegava pensando, mas que bela cagada que eu fiz… Eu continuava praticando, gastava dinheiro com métodos e com música e alugando salas pra estudar na bateria, pra estar preparado pro grande momento! E o grande momento não aparecia… Eu trabalhava feito um corno no restaurante, mas ainda assim não conseguia ver ninguém tocando, não era chamado pra tocar, nem alunos eu arrumava… E fui desanimando…
Quem me segurou em pé foi a Emily! Quando eu desanimava, ela e o Pedro eram os únicos a quem eu podia recorrer… No geral, uma tarde de papo furado ajudava bastante, mas eu fui desanimando demais… Até que, um domingo, liguei pra eles chorando, era dezembro, um frio de derrubar o cu da bunda, uma bruta fome, a cidade toda enfeitada pro Natal, com luzinhas e renas e pacotes com laços e aquela merda toda esparramados pelas ruas… Ela me fez ir até o apê deles, fez o Pedro comprar uns donuts (eu adoro!) e preparar um chá, me fez sentar no sofá ao lado do aquecedor e eles me ouviram choramingando por umas duas horas… Quando eu já não tinha mais lágrimas nem reclamações, a Emily segurou minhas mãos, me olhou nos olhos e disse: “Você é o cara mais determinado e corajoso que conheço! Todos os dias, lida com um grau de rejeição que a maior parte das pessoas nem sabe que existe. Encara a vida como um trabalhador autônomo, com todos os riscos que isso implica, mais o desrespeito de um monte de gente que acha que você devia arrumar um emprego ‘de verdade’. Tocando, você se dedica, se entrega física e emocionalmente, e ainda oferece sua cara aos tapas de críticos e de todos os que gostam de julgar o que você faz. Ao longo dos anos, viu seus amigos com outras profissões batendo as metas de gente comum, comprando uma casa, um carro, sustentando uma família, enquanto você se dedicava à música. E ainda tem que lidar todo dia com um medo enorme de ter dedicado sua vida a uma ilusão! E nada disso o impede de continuar indo atrás da música. Porque você deseja, acima de tudo, dar todo o seu ser a um momento, tudo apenas por uma melodia, por uma nota, por uma interpretação, tão efêmeros quanto o próprio momento! E você sabe que isso é o mais próximo de Deus que alguém pode chegar, e sabe que se dedicar a isso vale mais do que centenas de vidas comuns!” Então ela se levantou e lembrou do Cazuza: “Olha, vai à luta! O resto, deixa pra lá!”
Como é que se diz no cinema? É turning point, né? É, é isso, esse foi meu turning point. Voltei pra casa ainda triste, dormi mal, passei um dia tristonho mas, no fim da tarde, quando estava indo pro restaurante, cruzei com o Karl Perazzo na rua! Como assim não sabe quem é Karl Perazzo? É um dos percussionista da banda do Santana há muitos anos! Bom, Nova York tem dessas coisas, se você der sorte cruza com um monte de gente… Mas o importante foi que lembrei do que a Emily tinha dito na noite anterior e chamei o Karl, na cara-de-pau mesmo. Disse que era um fã, que gostava da música, ele foi gentil, disse que me daria um autógrafo se a gente achasse uma caneta, aquele papo. Aproveitei uma deixa e disse que também era músico e perguntei se ele tinha uma dica pra alguém que estava tentando. Nesse momento ele parou, ficou sério, me olhou meio de lado, pensou um pouco e disse: “Deixa eu ver suas mãos”. Não entendi nada, mas tirei as luvas e estendi as palmas, já sentindo o frio cortante. Ele pegou meu dedo indicador e apalpou a primeira e a segunda falanges, e também a polpa do polegar. E aí eu captei. É onde ficam os calos de quem toca bateria e percussão, aqui e aqui… Quem toca de verdade tem calos de segurar as baquetas. Quando sentiu os meus, ele ficou satisfeito e até voltou a sorrir: “Vem cá, vou te pagar um café”. Me explicou que em Nova York rola uma panela muito fechada pra se chegar aos grandes músicos e às grandes gigs. E essa panela tem uns dois ou três degraus que é preciso escalar. Mas, pra começar, eu devia falar com quem contratava pra tocar na noite, nas “roubadas”. E disse pra eu ir a um lugar na Rua 52, na quinta de manhã. Lá haveria alguém que me contrataria pra tocar. “Quando chegar, diga que fui eu que te mandei, mas lá eu sou Carlito! E leve 300 dólares. Em dinheiro”.
Agradeci muito, muito mesmo, e comecei a me despedir, explicando que já estava atrasado pro trabalho, e aí ele deu outra dica: “Não trabalhe em restaurantes! Podem até pagar mais ou menos bem, mas você fica preso trabalhando toda noite. Arrume um trabalho durante o dia, algo de meio período, pra ter as noites livres”. Fui até o restaurante só pra pedir a conta.
Pedi os 300 dólares pro Pedro, e ele me emprestou na hora. Não perguntou pra que era, mas eu expliquei mesmo assim, e agradeci muito a Emily. Se não fosse a animada que ela tinha me dado, eu não teria tido a cara-de-pau de parar o Karl Perazzo na rua! Se eles quisessem, eu beijaria os pés dos dois naquele dia!
A quinta-feira foi um dia daqueles, sabe, quando tudo dá certo? Foi um desses. Lá pelas dez da manhã, fui ao tal endereço que o Karl tinha me dado, na Rua 52. Carlito, lá ele é o Carlito! Era uma antiga casa de bailes, parecia que não recebia mais shows, mas o salão estava aberto e cheio de gente. Conforme eu ia entrando, percebia que haviam bem poucos locais ali. A grande maioria era de imigrantes, muitos latinos, mas também bastante gente com cara de ter vindo da África e vários árabes, talvez ilegais. Certamente ilegais. Exatamente como eu. Dava pra notar a desconfiança com que me olhavam conforme eu chegava perto do palco. Lá tinha uma mesa, com um sujeito sentado organizando um monte de papeizinhos, e um outro sujeito ao lado dele, em pé na frente de um microfone, que conversava com outros caras na beirada do palco. Fui chegando perto e um camarada negro, careca, muito forte, entrou no meu caminho, “qual é?” Expliquei que o Carlito tinha me mandado. O camarada disse pra eu esperar, falou pro sujeito do microfone o que eu fazia ali. O sujeito perguntou se eu tinha o dinheiro. Mostrei as notas, e o fortão disse pra eu subir os degraus e falar com o cara na mesa.
Eles gostam de chamar quem é mais novo de “filho”, e acho que isso é bem parecido com a gente chamando todo mundo que é mais velho de “tio” aqui no Brasil. E foi assim que o sujeito começou: “Filho, o negócio é o seguinte: vamos anunciar quem precisa de músicos no microfone daqui a pouco. Se ouvir algo que interessa, se apresente e pode ser que seja contratado. Boa sorte”.
Fiquei ali pelo meio do salão, esperando que a parada começasse, e alguém me cutucou. Era o Juanes, o colombiano que morava no mesmo prédio que eu, lá no Bronx. Eu não falava muito com ele, achava que ele estava metido com os traficantes. Mas ele lembrou de mim, foi legal, puxou conversa, disse que ele e outros dois amigos ali também eram músicos e estavam na mesma onda que eu, procurando gigs, me apresentou os caras. São sujeitos legais, sim, e estavam tentando. Como eu.
O sujeito na frente do microfone começou a falar. Ele chamava alguém do lado do palco, dizia o nome do cara, “esse é Fulano, quer um baixista pra tocar blues e fazer uma sub amanhã e sábado no…” Quem se interessava ia lá falar com o Fulano, e se acertavam. O sujeito no microfone falava inglês com um sotaque latino muito forte, sei lá de onde, e a maior parte das vezes eu não entendia nada… Uma hora, o Juanes me cutucou: “Ô, cabron, você não é brasileiro? O gordito lá no palco quer um baterista pra tocar samba”. Eu não tinha entendido mesmo, devo essa pro Juanes. Fui lá, falei com o sujeito, que era um brasileiro mesmo, paraibano, que foi com a minha cara e me contratou. Falando baixinho, fez a pergunta perigosa: “Tu tá legal aqui, meu rei? Tá, é só pra eu saber! Se baixar polícia na casa, tem uma rota de fuga”.
Voltei pra perto do Juanes todo feliz. Dois deles tinham acabado de fechar trabalho também e me chamaram pra voltar pro Bronx com eles. Perguntei se eles viviam só de música, e eles riram de mim. Disseram que faziam trabalhos braçais conforme aparecia a chance. Trabalhos de encanador, de elétrica, pequenos reparos, qualquer coisa, principalmente ali na vizinhança, onde ninguém se importava muito se você tinha visto ou não. “E aí, como é que eu entro nesses esquemas?” Me levaram até o apartamento do Ali, um iraniano que morava em Nova York já há uns vinte anos e nunca nem olhou pra um funcionário da imigração. O apartamento era uma bagunça, cheio de restos de materiais de construção, fios desencapados, ferramentas, latas de tinta, dava pra esconder um cadáver ali no meio! Ele usava um turbante e perguntou o que eu sabia fazer além de batucar as coisas, e a primeira coisa que me veio na cabeça foi dizer que eu pintava paredes. Já tinha pintado um ou dois apês em que morei em São Paulo, dava até pra dizer que tinha experiência. E o tal Ali disse que tinha uma casa pra pintar já na segunda e que eu estava no trabalho.
Sabe, eu sou bom no que faço! Estudei bateria a vida inteira, passo horas e horas e mais horas praticando, e tenho a vantagem de ser um músico brasileiro. Já que não tem tanto trabalho assim por aqui, o ideal é que a gente aprenda a tocar todos os estilos. E eu fui atrás de tudo, tenho tudo na mão, do pagode à bossa nova, do punk ao jazz, e o axé, o baião, o reggae e tudo o que aparecer eu toco! Banda de baile dá a maior cancha! Depois do show de samba, o gordinho paraibano me chamou pra fazer uns bailes. Mais importante do que isso, falou bem de mim lá, na Rua 52. E começou a pintar um monte de trabalhos! Eu fazia samba num dia da semana, com o gordinho; tocava cúmbia com o Juanes e os amigos colombianos dele noutro dia; entrei numa banda de rock que fazia shows nos clubes de motoqueiros em Nova Jersey aos domingos; e ainda encarava bailes de terceira idade, de salsa, de foxtrot, de tudo o que aparecesse. A gente é ensinado a pensar que os grandes músicos fazem só música instrumental, tocam jazz, essas coisas. Olha, é lá mesmo que se acham os grandes. Mas todo mundo tem boleto pra pagar, inclusive os grandes, e a música instrumental não dá dinheiro. Então todo mundo tem que fazer esses shows de tudo o que aparece.
Demorei mais de mês pra ir na casa da Emily e do Pedro de novo. Mas, quando fui, levei presentes e comprei um vinho fino… Ah, sim, eles mereciam! Chamei os dois pra ver os shows mais legais que eu fazia. Os bailes de cúmbia com o Juanes não dava pra encarar, que estes rolavam na quebrada de Nova York, no Harlem… Mas os shows de bailes e de rock, chamava sempre. Eles iam sempre que podiam. Aí sim…
Mas a grana ainda não chegava… Pra comprar os presentes e o vinho que levei pra eles, me apertei por dois meses. Sim, claro, eles mereciam! Mas não parei de fazer os trabalhos braçais com o Ali. Várias vezes fui pintar alguma parede de noite virada. Pensa daí: muito trabalho, muita noite sem dormir, e volto a ter um padrão de vida parecido com o que tinha no Brasil… Funciona, mas cansa, e dá uma certa frustração, vai… Mas e aí, onde você pode ir que seja mais que Nova York? Me passou pela cabeça que era isso o que faltava: eu precisava subir uns degraus e entrar na panela das grandes gigs! O negócio é que eu não sabia com quem falar pra entrar numa dessas grandes gigs. E foi aí que dei outra trombada na sorte. E dessa vez foi a sorte grande.
Fui fazer uma gig de rock no Brooklyn, substituindo o batera de uma banda independente. O moleque rolou de uma escada andando de skate e torceu o pé na semana em que os caras iam tocar num festival. Como era um trabalho autoral e não dava tempo de ensaiar direito, canetei tudo e fiz o show todo lendo as partituras. Nesse dia, a banda que fechou o festival era uma que estava mandando bem na cena alternativa de Nova York, a Secret Someones. E o batera da banda é um tal Zach Jones. Ele também é produtor e parceiro de um estúdio importante, ali no Brooklyn mesmo, onde rolam umas gravações de peso. Quando descobri que ele estava lá, armei um plano. Depois de tocar, dei um jeito de chegar perto do cara e entrar em alguma conversa dele. Foi aí que a sorte se mostrou! Ele lembrou que eu era o cara que tinha tocado o show inteiro lendo partituras e me elogiou. Obrigado, qué isso, nada de mais, e a conversa rolou. E chegou uma hora em que perguntei se ele não dava aulas. Aulas regulares, não, ele disse, mas dava masterclasses. E disse o preço. Diabos, eu ia passar apertado uns três meses pra pagar aquilo… Mas fechei na hora! Meu plano tinha dado certo!
No dia marcado, fui ao estúdio. O Zach foi legal, entra, senta, quer um café, e vamos pra sala. Ele disse pra eu sentar e tocar o que eu já sabia, pra ele ter uma ideia do meu nível. Mandei o meu melhor samba-jazz, uma parada de Edison Machado que demorei anos pra pegar… Quando terminei, o Zach estava de olhos arregalados, com uma cara de “eita, porra…” E me perguntou o que afinal eu queria com ele, já que estudar bateria eu não precisava. Claro, nessa hora a gente dá aquela desconversada, não, peralá, que isso, até que ele pediu licença um minuto e saiu da sala. Voltou em dez minutos com um senhor meio grisalho e pediu pra eu tocar a parada do Edison Machado de novo. O grisalho disse que se chamava Mike e queria que eu gravasse um som instrumental pra ele semana que vem. E disse pra eu botar preço.
Passei a frequentar o estúdio no Brooklyn. Sempre tinha alguma coisinha pra gravar, alguma bossa, alguma coisa com sabor brasileiro, virava e mexia aparecia um show mais elegante, de jazz, de blues, em eventos, até precisei comprar um terno mais bonitão. Claro, a Emily e o Pedro ajudaram de novo, desta vez pra achar um terno e três camisas decentes. Eu sou péssimo em combinar roupa! Aliás, o Pedro fez o que meu pai nunca conseguiu fazer comigo: me ensinou a dar nó de gravata!
Cheguei no estúdio um dia, pelo começo da tarde. Tinha feito um show na noite anterior, pintado um cômodo com o Ali pela manhã, e tinham dito que rolaria uma gravação hoje, que era bom que eu acompanhasse, e ia lá pensando em quando apareceria uma gig que ia me tirar dessa trabalheira toda, e que eu poderia voltar a gastar meus dias estudando bateria… O Zach e o Mike estavam na técnica do estúdio B. Quando repararam que eu tinha chegado, me chamaram. O Mike mostrou um e-mail que tinha acabado de receber, de uma tal Helen. É a produtora do Sting, explicou. Li o e-mail: ela perguntava se ele não podia indicar um baterista pra fazer um teste e entrar na banda do Sting, e até perguntava se o Zach não estava disponível. A inveja picou ardida no meu peito, mas eu já fui levantando e dizendo parabéns pro Zach. Os dois disseram que eu não estava entendendo. Como assim? O Zach disse: “Você é muito mais baterista que eu! Quero que faça a audição”.
O que é que se diz diante de um negócio desses? É o Sting, cara! É o topo de uma carreira! Se entrar na banda do Sting, cê tá feito pro resto da vida! Minha primeira reação foi amarelar… Não, não dou conta… Mas o que aconteceu com o Vinnie Colaiuta? Nem tenho equipamento pra isso… E o Zach jogou na minha cara: “Aí, cê quer fazer a audição ou o quê?”
Calei a boca. Que diabos estou fazendo? Claro que eu quero fazer a audição! Respirei fundo. Não sou muito bom com essas coisas… Parar, pensar, respirar, isso é complicado pra mim… Olhei pros dois e perguntei quando e onde.
Quatro músicas: “If I ever lose my faith in you”, “Englishman in New York”, “All this time”, “Message in a bottle”. E só. Eu adoro The Police, ouvi a vida inteira, uma das minhas bandas em São Paulo era um cover de Police, e a gente tirava tudo, nota por nota (até as erradas)! E eu adoro a carreira solo do Sting, conheço todas estas faixas de dentro pra fora. Ainda assim, passei uma semana ouvindo, tocando, praticando. Até o dia da audição, eu parecia um moleque inseguro.
Foi no Avatar Studios, no meio da Hell’s Kitchen, que agora virou área nobre de Nova York. Nas HQs do Demolidor era a maior bocada… Mas agora virou coisa fina. Era o maior estúdio em que já entrei… Sem sacanagem, dá pra gravar uma orquestra lá dentro! Quando cheguei na porta e disse quem eu era, chamaram a Helen, a produtora, que me recebeu, pediu pra um roadie carregar minha bolsa de pratos e me levou até um camarim. Água, vinho, whisky de primeira, uns quitutes, a poltrona mais confortável em que já pus a bunda. A Helen saiu e, enquanto esperava ali, o Dominic Miller entrou no camarim! Cara, o Dominic Miller! Ele me viu, disse oi, e aí, ah, você é o baterista que veio pra audição, legal, te vejo no estúdio. E saiu comendo alguma coisa.
Daí ele entrou. O Sting. A Helen nos apresentou, ele apertou minha mão. Ele apertou minha mão, cara, falou comigo, olhou nos meus olhos, falou comigo como se eu fosse da estatura dele! Perguntou algumas coisas, de onde eu vim, se eu conhecia fulano no Brasil, pegou um salgadinho, bebeu um pouco de água. E aí, vamos tocar?
Entramos naquela sala. Até o ar parecia diferente! O Dominic dedilhava alguma coisa na guitarra, os outros membros da banda estavam por ali. Se controla, cara, presta atenção no que cê tá fazendo, eu ficava dizendo pra mim mesmo. Me concentrei em ajeitar a bateria pra tocar. O Sting pegou o baixo e ficou parado, olhando eu me preparar, numa boa, sem pressa. Quando terminei e olhei pra ele com aquela cara de agora sim, ele endireitou o corpo e disse: “Message in a bottle”. O Dominic disparou a música de pronto, e rápido, bem mais rápido que a versão original. Puta merda, tá muito rápido, tá rápido demais! Se concentra, se concentra! E pá! Ataquei no lugar certo! Nesse momento, tudo se encaixou perfeitamente. Coração e mente se entenderam e se conectaram à música, e toquei a versão mais veloz de “Message in a bottle” que já toquei na vida com uma tranquilidade que não sei nem explicar. Um passeio eterno voando por sobre um oceano infinito, um vento azul e um aconchego alaranjado, tudo resolvido em cinco minutos… Assim que a música acabou, ouvi o Dominic dizer “uau”, mais pra si que pros outros. Mas o Sting ouviu e sorriu discretamente. E já mandou: “If I ever lose my faith in you”. Essa é uma caminhada compassada, daquelas que só fazemos enquanto pensamos, e o clima é o de uma oração. É o que essa música é, na verdade, uma oração. Foi o Téo que me explicou, ainda lá em São Paulo. Ao longo da música, conforme o groove se assentava e compassava a caminhada, reparei em todos na sala balançando. Isso!
Terminada a música, o Sting colocou o baixo num suporte e disse: “Não preciso ouvir mais nada. Ele é o cara”.
A Helen chegou do meu lado aplaudindo baixinho, elegantemente, e pediu pra que eu a acompanhasse ao escritório. O Sting já estava indo pra lá, me deu parabéns no corredor, disse que fazia tempo que não ouvia alguém mandando tão bem, e que queria muito que eu entrasse pra banda. “A Helen cuida da papelada toda”. Quando nos sentamos em volta de uma mesa de escritório, ela assumiu seu papel de gestora e falou das condições contratuais, da questão das gravações, das turnês e perguntou sobre meu visto.
Sabe quando o moleque é pego no meio da traquinagem? Foi assim que me senti. Esfreguei as mãos, olhei pro chão e falei baixinho: “Não tenho visto pra estar nos Estados Unidos”.
Os dois se entreolharam, riram, o Sting cantarolou “I’m an alien, I’m a legal alien…”, e a Helen disse: “Relaxa! Esse é um probleminha burocrático besta, isso se resolve! A partir de agora, sua maior preocupação é ser o baterista que toca com o Sting”.
Saí do estúdio radiante. O fim da tarde era maravilhoso, afinal entendi o que querem dizer com “outono em Nova York”, a brisa fria bailava as folhas pela calçada, o tráfego parecia música de elevador, o Central Park era a coisa mais linda. Fui pra casa pensando nas coisas que faria na manhã seguinte, pensando em como contar a novidade pra Emily, pro Pedro, pro Zach, pro Mike, pro Juanes… Chegando perto de casa, eu andava tão feliz e distraído que nem reparei na movimentação de carros de polícia pelo bairro.
À Paulo Zinner
São Paulo, outubro de 2021.