Take Five
Misturados aos barulhos do trânsito, ecoando sob as estruturas monstruosas do Minhocão, chegam aos meus ouvidos acordes tocados por um piano. Primeiro inseguros, como se alguém tentasse lembrar de uma harmonia, e em seguida cada vez mais firmes, e a cada a compasso se encaixando mais a um ritmo diferente, de cinco tempos, e afinal surge a melodia de “Take five”, composição de Paul Desmond que ficou famosa pela gravação com o quarteto de Dave Brubeck, em 1959. O baixista na gravação foi Eugene Wright, e o baterista era o grande Joe Morello. Alguma buzina se ergue pra atrapalhar, algum rugido de motor entra na frente do som, como bêbados vestidos de preto falando alto feito um viaduto desmoronando no meio da tarde, no meio da música. Mas o pianista retoma o tema e o show continua.
Levanto a cabeça, ainda incrédulo. Isso deve ser um sonho… Quem toca “Take five”, no meio da rua, no meio da tarde, no meio da semana, no meio da minha ressaca? Nem dormindo debaixo do Minhocão se tem sossego, mais… Bem, o pianista deve ser um vizinho de má sorte, também abençoado com o direito de ser inquilino sob o concreto. Mais ou menos como eu. E também deve ter sido despejado junto com seu instrumento. Ninguém mais quer ter um paquiderme com teclas dentro de casa, não é mais um tipo de móvel que se ostenta na sala de estar. E também deve estar encarando os dias e as noites sobre a calçada, sob o viaduto, duros e frios, acompanhado apenas pelo velho barreiro. Minha bateria, que nunca foi algo pra enfeitar salas, neste momento está empilhada de um lado da minha barraca, uma das estantes de prato segura uma das pontas do encerado gasto que é meu teto.
Tiro a cabeça de cima da bolsa de baquetas, que me serve de travesseiro, me apoio sobre o cotovelo esquerdo e tento identificar de que lado vem o som. Mais ou menos no fim do quarteirão, na mesma calçada debaixo do Minhocão em que passei a morar, perto da esquina com a Rua Marquês de Itú, vejo a pessoa que toca. É um piano de armário bem sujo, maltratado pela rua e pela fuligem, seu fundo é uma das paredes de um conjunto de barracos encostados em uma das colunas do viaduto. Levanto, ignoro a fome no estômago e o gosto de cabo de guarda-chuva na boca, e caminho em sua direção. Hipnotizado pela música, cantarolo a melodia. A pianista veste uma calça de flanela com um padrão xadrez preto e vermelho que deve ter sido um pijama algum dia, e hoje faz um par incongruente com um terno azul escuro que deve ter sido bastante elegante antes de ter desbotado. Completa o conjunto um chapéu coco sobre uma cabeleira ruiva. Terno azul, chapéu coco e cabelos ruivos são boas pistas, e por fim reconheço a pianista: é a Larissa.
No começo de 2019, fiz uma sub pra um amigo num show do quarteto da Larissa no Quina Bar. O repertório era uma coleção de standards, um pouco de Jazz, um pouco de Bossa Nova. Fiz o show tranquilo e feliz, bailando sobre músicas bem conhecidas, tocando com músicos muito bons e liberado pra tocar do meu jeito. Mamão com açúcar. No fim do show, a Larissa me chamou no balcão do bar. O terno azul e o chapéu coco, muito bem cuidados, harmonizavam com os cabelos ruivos e com a identidade meio Thelonious Monk que ela assumia.
“Muito bom som, gostei de ver… Eu já tinha te visto tocar naquele musical… Isso, esse mesmo! Sou amiga do maestro Miguel há muitos anos… Disse que você resolvia bem qualquer situação… Ah, você também curte Cool Jazz?” E surgiu a ideia de montarmos algum projeto juntos. Ela selecionaria o repertório e prepararia os arranjos, e eu me encarregaria de encontrar os outros músicos pra completar o grupo.
“A gente encontra os outros músicos, você vai ver”, disse a Larissa. “Ou eles nos encontram, dá no mesmo”.
Aquela Larissa ali, no Minhocão, está mais velha, mais cansada, mas toca com a altivez dos grandes, resoluta, como se fosse a coisa mais fácil do mundo, indiferente ao caos citadino ao nosso redor. Ela me vê, acena com a sobrancelha e sorri.
Não tenho dúvidas: corro até a barraca e puxo o carrinho de bagagem com minha bateria, busco a bolsa de baquetas, agarro a estante de prato e rasgo o encerado que ela segurava, largo os restos do barraco ali, de qualquer jeito, quem se importa? Monto a bateria o mais depressa que posso, alguns moradores de rua já se aglomeram em volta da Larissa, e um deles me ajuda com o instrumento. E ajuda muito bem, com a manha que só tem quem sabe o que está fazendo. Quando me sento no banquinho, tudo em seu lugar, o ouço dizer: “Quebra tudo!” E lembro. É o Marcel, técnico de palco que trabalhava no teatro em que fiz musicais durante alguns anos. Uma barba deste tamanho, o rosto meio inchado, os olhos pequenininhos, as mãos sujas, a roupa rota e gasta. Olho pra ele, e tudo o que posso lhe oferecer como paga é o meu melhor sorriso. Ele responde fazendo positivos com os dois polegares levantados enquanto se afasta.
Ouço o piano e entro na música, acompanhando. Só estamos nós dois aqui, tocando, e o pessoal em volta está se divertindo, então ou haverão solos longos, ou será uma versão curta da música. A Larissa gosta do acompanhamento, sorri mais, me incentiva a colocar mais elementos na música, até que começa seu solo. Ela puxa a frase central da melodia e vai adicionando notas, repete a frase e adiciona mais um floreio, repete de novo e coloca mais um comentário. E entrega o solo, volta ao tema depois de só quatro chorus. Ela é da turma que defende que os solos não podem durar o quanto der na telha do solista. É preciso um limite. Primeiro, porque um limite é um tipo de tônico pra criatividade. Depois, pra que o solista não mostre tudo o que sabe na primeira música. Calma! Ainda tem som pela frente! E, por último, pra não encher o saco do público com tentativas e erros: “toque só os pontos altos!”
Espera! Então agora é minha vez de solar! Me concentro no tema de novo, chega de viajar nas ideias, e aí algo novo surge. Ouço uma melodia que vem se aproximando, propondo algo contra o tema central, uma resposta que vai se construindo, com argumentos que surgem, se contradizem e se completam, um saxofonista aparece no meio dos mendigos e se aproxima, tocando. A calça jeans surrada, a blusa de moletom sem uma camiseta por baixo, chinelos de cores e tamanhos diferentes em cada pé, mas de cabelos longos, um pouco abaixo dos ombros, muito bem cuidados. Parecia que participava de um comercial de xampu protagonizado por um morador de rua. É o Fernando, não dá pra errar.
Precisei fazer cartões de visita em junho ou julho. Quando comecei a carreira de músico profissional, alguém disse que era algo bom pra deixar contatos com as pessoas, possíveis contratantes, eventuais alunos, e perguntei onde se conseguia esse tipo de coisa. Com um designer, foi a resposta. Desde então, sempre tive cartões na carteira. Desta vez, algum colega indicou um sujeito que ele conhecia e que poderia modernizar meu cartão.
Na entrega dos cartões, o designer contou que seu irmão tocava saxofone e me deu o telefone. O Fernando seria taxado de irresponsável em muitos dos lugares que eu frequentava. Mas isso não o incomodaria. “Não tenho paciência pra dar aulas de música e não tenho a menor vontade de tocar o que não gosto”. Seu ideal de vida era ser um virtuose do sax e só tocar música instrumental. Vaidoso, estava sempre preocupado com a clareza de seu som, com a limpeza de seu instrumento e com seus cabelos. Quando entrei na sala de seu apartamento, na Avenida Nova Cantareira, a primeira coisa que vi foi um grande pôster de Stan Getz na parede, logo na frente do banquinho e da estante de partituras. Não tive dúvida nenhuma.
Enquanto toca e anda, o Fernando se aproxima da Larissa até encostar suas costas nas costas dela. A Larissa ri de boca inteira, curte o som, inclui algumas respostas melódicas aos argumentos sonoros do saxofone no que está tocando ao piano. E o som rola, bonito, redondo… Se tivéssemos ensaiado, não sairia tão bem! O Fernando é da outra turma, dos que acham que o músico tem que se entregar ao solo, tem que solar toda vez como se fosse a última (até porque, algum dia, será mesmo!).
Estamos ali, nos maravilhando, nos divertindo, quando um som, um grito sussurrado, uma nota aguda e suave, macia e cortante, entra no meio do solo do Fernando e começa uma conversa, uma discussão, aquela argumentação que só o trompete consegue realizar junto com o saxofone. Um som tão bonito que eu quase nem acredito! Um som que entra no meio do solo do Fernando como um gato folgado, que chega fazendo manha, pedindo carinho, e logo toma seu lugar no sofá, te empurra pra fora. A Jéssica é a única pessoa que eu conheço que toca trompete desse jeito.
Eu dava aulas já há alguns anos em uma escola de música grande, que ficava em uma casa antiga e espaçosa no Alto do Ipiranga, pertinho do museu. Os donos da escola eram os dois lados da moeda, um de formação clássica, o outro de formação popular, e queriam disponibilizar cursos de todos os instrumentos, da flauta doce à tuba, do pandeiro aos tímpanos. As salas de aula de bateria e percussão ficavam na edícula da casa, meio escondidas, no fim do terreno. Era dezembro, e eu esperava a chegada de um aluno dentro da sala de aula, com o ar-condicionado ligado na posição “Quebec”, sentado no banquinho da bateria e lendo alguma coisa. E a porta se abriu. Não era o aluno que eu esperava. Era uma moça, muito bonita, de olhos amendoados e cabelos encaracolados e verdes, com um trompete nas mãos. Não teve oi, boa tarde, dá licença, nada disso. Ela entrou, me olhou e começou a tocar “Chetty’s lullaby”, composição de Chet Baker de 1962. Tocou bonito, com uma segurança impressionante e, com esse mesmo tipo de atitude que a fez entrar na sala, tomou seu lugar na banda. Terminou de tocar e disse: “Eu sou a princesa do cool e quero entrar no projeto que você está montando com a Larissa”. Quem sou eu pra discutir?
Então estava quase tudo pronto! No finzinho de fevereiro, sentamos todos juntos na sala do apartamento da Larissa, no Planalto Paulista, em frente ao seu piano de armário, polido e brilhante, uma jóia! Ela nos mostrou algumas partes dos arranjos, tocou alguma coisa, tomamos uns vinhos, conversamos sobre o que mais incluir no repertório, contamos histórias, falamos besteiras, rimos, escolhemos um estúdio onde seria bom de ensaiar, acertamos agendas. “Falta só um baixista, hein?”
E veio a pandemia de COVID-19.
Primeiro, simplesmente paramos de tocar, de ensaiar, de dar aulas. Os bares fecharam as portas, os eventos pararam, as escolas suspenderam todas as atividades. Daí eu e todos os meus amigos da noite, músicos, garçons, técnicos, cozinheiros, agentes, pensamos em meios pra nos manter, com a esperança de que esse aranzel durasse dois meses, três, no máximo. Consegui segurar as pontas por três meses. Três meses e meio… E comecei a receber notícias das escolas e bares falindo. Senti a água batendo na bunda e precisei me mexer. Tentei dar aulas via internet, mas eu tinha perdido o compasso, não tinha um lugar onde dar aula de bateria no prédio em que morava. Logo, os alunos começaram a desaparecer, também com suas rendas apertadas. Tentei outras coisas, tentei prestar serviço de manutenção de baterias, tentei arranjar gravações, tentei trabalhos de transcrição, tentei aprender outra coisa pra fazer, tentei fazer entregas pelo bairro, tentei fazer brigadeiros pra vender nos semáforos… Os boletos não paravam de acumular. Comecei a vender as coisas. Primeiro, o carro. Depois, a televisão. Daí o computador, algumas roupas, alguns livros, alguns pratos, os blocos sonoros, meu bongô, a poltrona, o sofá, a máquina de lavar roupas, o microondas, a cama, a geladeira… Não consegui vender a bateria, só de pensar em vende-la me vinham lágrimas aos olhos. Logo cortaram a internet, o celular virou um videogame que recebe chamadas, passei a comer pão com queijo todo dia, até o gato fugiu de casa… Me desesperei e já não sabia mais o que fazer. E nem tinha mais o que fazer. O senhorio não quis saber dos meus argumentos, dos meus pedidos por piedade, e ameaçou chamar a polícia. Fui pra rua empurrando o carrinho de bagagem com a bateria, um cobertor, uma mochila com o que sobrou das roupas e um exemplar de O velho e o mar, de Hemingway, que escapou da venda por acaso. Ou por afeto, não sei. Passei dois dias e duas noites desgraçados, chorando de desespero, morrendo de medo de estar na rua, de ser assaltado, espancado, queimado, preso… Demorei a pedir ajuda a quem já morava na rua. O tempo, o desespero e a fome me fizeram engolir o orgulho e o medo. Meus almoços passaram a ser batalhas diárias. Meus jantares são dois copos de cachaça barata. Quando consigo.
Nessas horas é que percebemos o que realmente importa. Quando as coisas estão simplesmente à mão, não damos atenção, não parece importante, está ali, peguei, usei e pronto, acabou, não penso mais no assunto. Mesmo em se tratando de algo essencial. Se está fácil de alcançar, não damos o devido valor. E dá pra aplicar isso a qualquer coisa ou ideia, e até às pessoas. Se tem água na torneira, ninguém se importa com o ciclo de chuvas; se temos algum conforto, nem nos passa pela cabeça que a vida é dura; se estamos namorando a “pessoa errada”, dá pra passar sem “todo o amor que houver nessa vida”; se há música, o silêncio é quase um devaneio; se há uma relativa democracia, ninguém dá bola pro fascista falando asneiras nos programas humorísticos da TV. Neste exato momento, o que mais faz falta é um contrabaixo.
Enquanto a Jéssica sola e o Fernando vai comentando a melodia, a Larissa tenta completar as lacunas graves da música. O piano faz isso muito bem, e ela sabe muito bem o que está fazendo, mas o timbre grave do contrabaixo ajuda a preencher, a dar corpo, é a sustança da música. Quando não há um contraponto grave, tudo parece meio nas nuvens, meio solto, meio avoado.
O Marcel se mexe ao meu lado. Traz um banco de madeira, alto, gasto, respingado de tinta de várias cores, meio manco, e o coloca perto de mim. Volta ali atrás, a algum lugar onde não alcanço com a vista, e vem de novo, ajudando alguém a trazer um grande contrabaixo acústico. Mas onde o cara guarda um trambolho desse tamanho na rua e a gente não vê? O baixista se ajeita, o Marcel ajuda o cara a se acertar com banco e instrumento e se afasta, de novo fazendo positivo com os dois polegares. Daí vejo o baixista, um sujeito magrelo, mais pra alto, óculos de aros finos, e com uma barba imensa, branca, chegando no meio da barriga. De jeito nenhum que aquela barba cresceu só durante a pandemia, não é possível… Meu Deus, ele deve ser o pai do Leland Sklar!
Ele ataca e, como se fosse mágica, a música fica cheia, bonita, rechonchuda! Mas ele é incrível! Que tremendo baixista! Não sei quem é, nunca o tinha visto antes, mas que som que ele tira do contrabaixo! A Jéssica e o Fernando até param por dois compassos pra ouvir o novo amigo. Se perguntam quem é, dão de ombros, nunca viram o sujeito antes, e continuam tocando. A Larissa está impressionada, se vira pra ver o novo integrante do nosso projeto de Cool Jazz. Pela cara dela, entendo que também não sabe quem é. Mas ela olha pra mim e posso ler seus lábios: “Agora sim! Estamos completos!”
Em volta de nós, os habitantes das ruas se divertem, dançam, curtem a música, gritam e aplaudem a cada frase, a cada solo, a cada melodia. O Marcel, sentado numa caixa de feira de plástico, estala os dedos e bate o pé no chão, no ritmo. Uma prostituta divide a caixa com ele, maravilhada, dizendo que não sabia que uma música podia ser tão bonita, e seu cigarro vai se consumindo sem que ela o fume. Distante um quarteirão de nós, um policial fala alguma coisa no rádio da viatura, enquanto outros dois olham o grupo, meio pensando em ordens, meio curtindo a música.
A noite mal-dormida, a ressaca, a fome e a abstinência certamente mandarão um boleto daqui a pouco, na forma de uma bruta dor de cabeça. Um boleto que também vai levar um calote meu. Nem sei se terei algo pro almoço hoje, ou se terei minhas duas doses de cachaça pro jantar, não faço a menor ideia de como será minha noite ou o amanhã. Neste momento, absolutamente não importa.
São Paulo, setembro de 2021.