CONTOS DE OUTONO/INVERNO. O TERÇO DE SÃO JOÃO DE DONA MARIQUINHA.

Junho. O vento gelado não era obstáculo para as doze senhoras do grupo do apostolado da oração, com seus gorros e cachecóis de lã. Paradas em frente ao portão da casa 795, da rua das Azaléias. Um perfume bom exalava das flores do pé de manacá. -"Entrem, minhas amigas. Boa noite." Dona Mariquinha recepcionou as amigas da igreja. O terço estava marcado para as oito da noite. Eram as primeiras a chegarem pois queriam os melhores lugares e colocar a fofoca em dia. Faltava quase uma hora para o início. O terço de São João de dona Mariquinha era um acontecimento. Era tradicional. O marido de dona Mariquinha desligou a tevê. Dia de terço é dia de respeito. -"Porquê não faz o terço no dia de Santo Antônio, já que seu esposo se chama Antônio?" Perguntou Leonora. Todo ano, alguém fazia essa pergunta a dona da casa. Toda vez a mesma resposta. -"Pois é. Até que eu fazia o terço no dia de Santo Antônio, em gratidão por ter um marido bom e respeitoso. Não que ele não mereça mais, merece certamente mas mudei a data pois tive complicação no parto. Fiz a novena de São João e correu tudo bem no parto. Nasceu um menino forte. Pusemos o nome de João e o terço passou do dia de Santo Antônio para o dia de São João. Por isso." A mulher deu um grito. -"Joãozinho! Venha aqui, filho!!" O garoto de sete anos veio até a sala. -"Esse é meu João. Todo ano farei o terço, pra São João." As três filhas de dona Mariquinha chegaram. Aparecida, Fátima e Lourdes eram casadas. -"O nome delas em homenagem a Nossa Senhora. As três Marias. Maria Aparecida, Maria de Fátima e Maria de Lourdes." Alguns vizinhos chegaram. A casa toda decorada com bandeirinhas juninas. Um colorido fascinante. As pessoas iam entrando e se cumprimentando. Abraços pra lá e pra cá. Alguns homens conversavam, em volta da fogueira no quintal. A bandeira junina, com as estampas de São João, Santo Antônio e São Pedro amarrada na torre da tevê. Os três filhos de dona Mariquinha chegaram. Paulo, Benedito e Sebastião. Todos com nomes de santo. Todos casados. A criançada correndo no alpendre. Os netos de dona Mariquinha descobriram que tinha paçoquinha, pé de moleque e quebra-queixo numa travessa, na mesa. E a molecada ia para o quintal, escondendo os doces surrupiados. Os dois sofás da sala de estar sem espaço nenhum. Antônio e as filhas dispuseram dezenas de cadeiras no alpendre. Mais vizinhos chegando. Os retratos de família, nas paredes da sala. Os quadros da Santa Ceia. As imagens de santos no aparador. Imagens de devoção de dona Mariquinha. Imagens de São Benedito, São Brás e Santa Luzia. Os sobrinhos chegando. Os abraços calorosos. A mesa com dezenas de travessas cobertas com panos de prato, bordados e pintados por dona Mariquinha. -"Mãe. Não é melhor servir o quentão? Tá muito frio." Perguntou Maria de Lourdes. Dona Mariquinha concordou. O caldeirão de quentão fervia, enchendo a casa com o aroma de gengibre. -"Quem gostar de quentão com pinga, coloca. Temos Jamel, Oncinha e Velho Barreiro." Aconselhou seu Antônio, abraçado a garrafa de Jamel. -"Não chegaram ainda?" Dona Mariquinha foi até o portão. -"Elas vêm, mãe. Vou fazer o leite quente de inverno." Disse Maria Aparecida. -"Sem minhas sobrinhas não tem terço. São puxadoras de terço das boas." Um vozerio. A casa parecia uma feira. Assuntos de política, economia, pandemia, gripe do macaco, dengue, eleição pra presidente, a guerra da Ucrânia, um verdadeiro mercado de peixe. Dez pras oito. As três sobrinhas de dona Mariquinha finalmente chegaram. Abraços apertados. Sorrisos. Alívio pra dona da casa. Dirce, Zilda e Nica cumprimentaram a todos. -"Chegaram minhas sobrinhas." Disse a anfitriã, feliz. A máquina de costura serviu de altar, coberta com um lençol branco. Os castiçais de velas. A imagem de São João ao centro, ladeada por Nossa Senhora Aparecida e o Sagrado Coração de Jesus. Um vaso de flores. Mais alguns vizinhos chegando. As noras de dona Mariquinha na cozinha, montando os cachorros quentes. As bacias de alumínio com os sanduíches. Panelas com carne moída e salsicha ao molho. -"Cida, me dá essa receita? O que vai nesse leite?" Maria Aparecida serviu Benedito. -"Vai três litros de leite, duas latas de leite condensado, duas colheres de sopa de amido de milho, dez colheres de chocolate em pó, uma colher de chá de canela em pó, canela em pau, cravos da Índia, uma xícara de chá de café pronto e duas doses de conhaque. Ferve tudo junto. É novidade no terço e convenci a mamãe a fazer." Maria Aparecida deu as costas. Benedito abriu a garrafa de conhaque e despejou no leite. -"Agora vai ficar bom." O rapaz saiu de fininho da cozinha. Dirce fez sinal a suas irmãs e iniciou a reza do terço. O silêncio total se fez. Dona Mariquinha ao lado do marido. As pessoas com os terços, acompanhando. Ave Maria. Pai Nosso. Dona Mariquinha começava a cantar um cântico e as sobrinhas a seguiam. Soldados de Cristo, Vem eu Mostrarei e outros cânticos antigos. A ladainha. Creio. Salve Rainha. A anfitriã foi até a cozinha. A hora da ladainha era o sinal que ela deveria ir pra cozinha. Ela colocou touca e avental. As filhas observando. Dona Mariquinha jogou milho de pipoca na panela de pressão de cinco litros. A manteiga. O fogo aceso. A mulher balançando a panela. Os estouros. O cheiro de pipoca no ar, invadindo a casa e despertando as papilas gustativas da galera, inclusive da criançada. As bacias de alumínio cheias de 🍿 pipoca. Dona Marquinha dosava o sal. Fim do terço. Uma salva de palmas. Vivas a São João. Os panos de prato retirados, revelando uma variedade de bolos apetitosos. Bolos de aipim, pamonha, cenoura com cobertura de chocolate e de baunilha. Cocada, pé de moleque, maçã do amor, amendoim torrado, tudo feito com carinho. Pra quem quisesse, tinha canjica e arroz doce na cozinha. -"Ninguém faz pipoca igual a dona Mariquinha. Até a do cinema fica no chinelo." Elogiou Jonas, vizinho e afilhado de crisma da anfitriã. Quentão sendo servido. Pipoca pra molecada. Os doces . Bolos. O leite quente de inverno fazendo sucesso entre as senhoras do grupo de oração. As senhoras do grupo de oração estavam alegres, algumas até passando a contar piadas. Seu Antônio e os filhos foram para a rua. As caixas de rojões nas mãos. Os fogos coloridos. -"Viva São João." Os aplausos. Gritos. Fim do terço de dona Mariquinha. As despedidas. -"Esse foi o melhor terço da história, sem dúvida." Disse dona Nazaré, líder do grupo do Apostolado da Oração, abraçada a dona Mariquinha. -"Esse leite. Tava batizado, tava irado." A mulher tirou a touca o cachecol e a blusa. -"Deu até calor. Vamos embora, tchurma." Os vizinhos se despedindo. A casa quase vazia. Dona Mariquinha,o esposo e alguns filhos foram até a cozinha. A garrafa de conhaque pela metade. -"Alguém colocou muito conhaque no leite do inverno. Não era pra colocar tanto." Benedito manteve-se calado, no canto da cozinha. Sei Antônio concluiu. -"Você ouviu a sua líder do grupo de oração, vai ter que fazer igual no ano que vem. Caprichar no conhaque." FIM