Coisas do além
Coisas do além (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
A vaidade vai além do normal, pois pessoas gostam de estar mais lindas, com o rosto sem rugas, sobrancelhas cortadas e ajustadas para o auge da moda. Enfim, a academia de fisio educadora é mais bem frequentada e acaso não supere, uma boa cirurgia plástica resolve os problemas.
Assim, Nicole se preparava para a vida. Funcionária da grande empresa, com cargo de chefia, dedicava-se profundamente à profissão e contava os minutos finais do longo dia de expediente. Às cinco horas da tarde, mais precisamente às dezessete horas, ela saia às pressas. Com passadas longas, rapidamente abria o portão da linda e perfumada casa. A linda cadelinha, já sentindo o cheiro da dona, logo dava os primeiros latidos e Nicole respondia com frases carinhosas. Abria vagarosamente a porta e logo sentava-se ao macio e charmoso sofá da sala. Separada do esposo pelo motivo de traição por parte dele, a jovem de apenas vinte e cinco anos de idade distribuía charme, educação, respeito e vaidade para os delírios masculinos. Muitos admiradores, porém, ela se resumia no trabalho, na frequência à academia e nas caminhadas com “Tota”, a cadelinha ganha de presente da afilhada. “Tota” veio de Portugal e tinha o grande amor pela dona.
Após o lanche da tarde, dela e de Tota, apressadamente a coleirinha era posta no pescoço do animal. Nicole, por sua vez, vestia-se a blusa branca, bem leve, a calça de moletom ou o short, trocava os sapatos de salto pelo tênis macio. O boné de cor neutra era posto sobre a cabeça e os cabelos eram presos pela armação comprada em loja de bijuterias. Assim, saiam as duas pelas as ruas da cidade indo em direção à praça central, que circundava a antiga igreja da cidade.
Dava várias voltas e até fazia algumas corridas pela calçada da praça. Ouvia o cântico dos pássaros e via os voos rasantes das andorinhas. Era outono e o inverno se aproximava. O Senhor Antônio, viúvo recentemente, sempre estava sentado no banco da praça. Era leitor assíduo e não deixava o livro, o jornal ou a revista para trás. Já finalizando a caminhada, Nicole se aproximava do amigo e sentava-se perto dele. Ele, muito gentil, dava o famoso dedo de prosa com a linda jovem. Ela sorria e se despedia dele com o pequeno beijinho da testa dele. Saia apressadamente e se dirigia à casa dos pais. Lá, deixava a cadelinha e ligeiramente já estava na academia de ginástica. Permanecia por lá por volta de uma hora e meia. Aproveitando o embalo dos exercícios, ao término das aulas, ela se dirigia novamente à casa da mãe. Sempre correndo, em pouco tempo, já estava em casa. Tomava banho e se alimentava com produtos naturais, pois queria estar sempre esbelta e preservar o lindo corpo.
Não gostava de assistir televisão. Preferia uma boa leitura e tendo os escritores clássicos como inspiração. Ficava por ali um bom tempo. Quando o sono já lhe batia, ela se dirigia para o quarto. Olhava as mensagens no celular. Respondia algumas e logo se esticava na cama macia. O quarto era todo decorado. Os móveis combinavam com a aparência tão elegante quanto a ela.
Em uma determinada noite, já cansada e cheia de problemas para serem resolvidos, ela fez o mesmo processo como se fazia nos dias. Porém, como estava muito cansada, leu alguns artigos e ficou matutando sobre a crônica escrita de coisas do além. Na dita crônica, falava-se em fantasmas, vozes do além, correntes que se arrastavam abaixo do assoalho da fazenda, mulher de branco que se caminhava na longa estrada, perto da Mata do Calunga, luzes vistas no espaço celeste, enfim, um conjunto de coisas fora deste mundo. Ela sorria e às vezes se arrepiava. Chegou o momento em que os cabelos se arrepiaram. Assim, cochilou um pouco. Antes, porém, quis retocar a maquiagem.
Já estando cansada da labuta diária, como forma de aliviar o stress, ela despenteou os cabelos. Com as mãos unidas à cabeça, ela espetou os cabelos e eles ficaram volumosos. Pegou o batom na cor vermelha e passou por diversas vezes nos carnudos lábios. Não se achando bom, resolveu passar o batom também algumas partes do rosto. Achando aquilo engraçado, pegou o estojo de maquiagem e fez artes no rosto, na testa, no nariz e em outras partes do angelical rosto. Sorria muito e conversa consigo mesma, tendo à frente o grande espelho do quarto. Tirou fotos usando o celular. Sorria. Fez vídeo, dançou e até ameaçou fazer transmissão ao vivo para algumas amigas da rede social, mas não o fez.
Por algum tempo, ela brincou consigo mesma. Esqueceu a família, o namorado, os problemas profissionais e a vida lá fora. Dentro de si, ela era a jovem Nicole, um ser humano como todos os seres humanos, que tem prazer, felicidade, brincadeira, amor e diversão. Brincou por muito tempo até que o sono lhe furtou. Do jeito que estava, ficou ali, encostada na cabeceira da cama nova, que comprou há duas semanas, cochilando. O cansaço era enorme, que mal deu-lhe tempo para desmanchar a maquiagem.
O tempo foi passando. Lá fora, ouvia-se o barulho forte do vento a soprar, pois a forte tempestade jorrava ventos fortes e longos trovões pela noite. O ar condensado do vento entrava pelas frestas das janelas e produzia uivos fortes, aqueles semelhantes a filmes de terror. De vez em quando, as luzes piscavam e voltavam após o grande relâmpago acompanhado de longo trovão.
Ela não se importava com os estrondos da tempestade. O sono profundo era acompanhado de variações no rosto angelical. Ora franzia a testa, ora sorria, ora fechava a boca, ora abria... No verdadeiro sono profundo, sonhava com algo, algo diferente, algo que somente passava pela mente. Estaria sonhando algo de amor ou talvez algo de terror. Não se sabe, mas o momento foi tão delicado que ao som do estrondo do trovão e o feixe de luz desprendida pelo raio, a cadelinha ficou com medo e logo pulou em cima da jovem, que assustada acordou e rapidamente olhou para o espelho e viu a sinistra criatura ali, bem a sua frente. Uma jovem toda descabelada, com manchas de sangue pelo rosto, que na verdade era a coleção de batom passada no rosto, os dentes vermelhos da cor do batom, toda feia. Os olhos pintados de várias cores, enfim todas as características de um fantasma refletidas no espelho.
Assustada, ela começou a gritar e dizendo que havia fantasma no quarto. Saiu correndo e foi logo parar na rua. Ficou toda molhada até que se deu por si e a memória voltando, lembrou-se que havia feito várias pinturas no rosto.
No outro dia, contou para as amigas e, infelizmente, ficou resfriada por dois dias.