A CARROÇA DA BOBAGEM

Bem no comecinho da serra da Canastra, que divide os municípios de Sacramento e Perdizes (MG), havia um grande fazendeiro, cujo nome era Calimério Prata, muito rico e dono de várias propriedades. Ali nasciam os filhos em grande quantidade, pois naquele tempo, anos 1920 a 30, eram concebidos com a finalidade única de prestarem mão de obra barata ao pai. A bem da verdade, custavam pouquíssimo, já que ninguém tinha salário, a não ser os queijos fabricados aos domingos e feriados, que eram vendidos aos "atravessadores" que percorriam as fazendas, e que também compravam rapadura, cachaça, capados gordos, frangos e ovos, café em coco, bezerros e vacas de corte, entre outros produtos.

Ninguém ali se preocupava com o estudo dos filhos, bastava que os rapazes assinassem o nome e aprendessem a fazer contas, enquanto às moças só interessava que bordassem e costurassem, enfim, eram criadas para tomar conta do lar, sendo que, por volta dos quinze/dezesseis anos já estivessem prontas para o casamento "arranjado" com algum filho de outro fazendeiro da região, sem qualquer direito de escolha. Muitas não tinham nem noção do que era sexo, porque aquilo era um tabu, as mães nem tocavam nesse assunto. A única referência era a "monta" entre os animais, curtida com malícia pelos homens, e às escondidas pelas mulheres. Elas imaginavam que, como sempre acontece no reino animal, a fêmea saía correndo com o macho atrás, até pegá-la de jeito. Isso, muitas vezes, prejudicava os relacionamentos conjugais, porque os machos humanos também não tinham experiência nenhuma, mal sabiam que "aquilo" deveria ser um ato de amor. Poucos imaginavam que era necessário um certo tempo de carinhos, antes do ato propriamente dito. Consequência disso é que as esposas abriam as pernas por mera obrigação, não sentiam nenhum prazer durante as relações, enquanto os homens gozavam, guardavam o bichão, viravam de lado e dormiam, satisfeitos.

Bem, acabei fugindo do foco, que era a carroça da bobagem.

Dona Josefa, a matriarca reprodutora dos filhos do Calimério, tinha o hábito de dizer aos filhos ainda pequenos que a carroça da bobagem os levaria, algum dia, para um mundo diferente, onde todos viveriam de maneira completamente oposta à que estavam acostumados. Isso ocorria todos os dias, quando alguém agia fora dos padrões considerados normais, conforme a cartilha do patriarca da família.

Como eu disse, anteriormente, a fazenda produzia quase que de tudo, a não ser o sal e o querosene que utilizavam nas lamparinas à noite, além dos tecidos para as roupas, mesmo assim, as colchas de lã também eram fabricadas nos rústicos teares.

Eram quinze os filhos do casal, uma escadinha que ia dos 06 até 25 anos. O dia começava por volta das duas horas da madrugada, quando alguns dirigiam-se ao engenho, outros tiravam o leite, as mulheres faziam os queijos e tratavam dos pequenos animais, e ainda havia aqueles que seguiam para as lavouras de cana, milho, café, arroz e feijão, etc.

Dois deles, João e Pedro, que tinham idade de 07 e 08 anos, respectivamente, eram os encarregados de buscar os bois de carro no pasto, e que seriam atrelados ao carro para puxar a cana para abastecer o engenho, depois, ao próprio engenho, para moer a cana. Depois disso, um dos meninos subia ao “balancin” para instigar os bois, enquanto o outro os guiava naquela rotina circular que movimentava as moendas.

Certo dia, fazia muito frio, era mês de julho, os dois garotos saíram a pé, quando ainda estava muito escuro, para cumprirem com as suas obrigações cotidianas. Andavam pelos trilhos, tranqüilos, como sempre, em busca dos animais, os quais sempre ficavam nos mesmos lugares. Enquanto isso, conversavam:

- João, quando eu crescer e já for um homem, não quero saber dessa vida desgraçada de roça não, viu? Eu quero é ser padre, sabia? Os padres tem vida boa, só ouvem confissões, rezam missas, fazem batizados e casamentos, e também andam pelas fazendas em busca de

prendas para os leilões, quando comem e bebem tudo do melhor.

- Ah, Pedro, mas os padres não podem casar, não podem ter filhos, não podem ser fazendeiros. Ainda pior, é que nem mulher eles podem ter nenhuma, sô! Sei lá, mas o Alcides e o Clarimundo sempre dizem que mulher é a melhor criatura que Deus criou na terra! Deve ser mesmo, porque eles dois vão sempre à cidade, e voltam de lá com caras de safado, você já reparou nisso?

- Eu já escutei uma conversa deles com o Neca e o Toninho, só falam de uma tal morena carinhosa e safada, que serve eles na cama. Dizem que tem muitas outras, também, mas essa uma é a mais gostosa de todas.

- Vou te contar um segredo, mas é um assunto muito perigoso, hein! Outro dia eu vi o papai entrando na casa da Maria do Zezinho, enquanto ele estava na lavoura, capinando o arroz. Desconfiei daquilo e fiquei de “butuca”, foi quando vi os dois deitados na cama, ela com o vestido levantado, o papai com as calças arriadas, e com tudo de fora, sabe? Então, ele pegou o pinto e enfiou no “buraco” dela, depois ficou “pondo e tirando” durante algum tempo, até que os dois gemeram alto, ela foi buscar uma baciinha com água e uma toalha, aí né, lavou os “trem”, se arrumaram, o velho montou no cavalo e foi s’imbora! Nessa hora, véio, eu já estava lá fundo do quintal. Imagine, se ele me pega, hein!

- Nossa, ia ser muito barulho e pancada demais, sô! Você já pensou, João, se o Zezinho fica sabendo de um negócio desses? Sei não, mas acho que é bem capaz de matar um por causa da Maria, pois ele gosta muito dela.

- É verdade, Pedro! O melhor é a gente não tocar mais nesse assunto, senão, vai que alguém escuta, não é? Fica sendo só de nós dois, ta bom?

- Olha lá, que coisa mais estranha, está vendo? O que será aquilo, hein?

- Sei não, mas acho que boa coisa não há de ser, de jeito nenhum! Credo, aquilo está vindo na nossa direção! Melhor a gente se esconder, ou então correr, porque o “trem” vem bufando e soltando fogo. Valei-nos Nossa Senhoooooooooraaaaaaaa!!!

- Sebo nas canelas, que aquilo pode ser a tal carroça da bobagem que a mamãe sempre fala!

De fato, aquele “negócio” era muito estranho e desconhecido para maioria das pessoas que moravam em qualquer fazenda por ali, e, como ainda não houvesse estradas e pontes naqueles ermos, o caminhão do “mascate” tinha que andar era no meio dos pastos mesmo. Devido à precariedade do caminho improvisado, aquele vinha fazendo muito barulho, o que acabou assustando aos garotos.

Amedrontados, eles procuraram um bom esconderijo, havia um “esbarrancado” profundo na beira do córrego, e foi ali que se atiraram, bem no meio de uma moita de espinho agulha.

O maior problema é que ambos ficaram bastante feridos na queda, e não conseguiam sair daquele emaranhado, pois, quanto mais tentavam, mais os espinhos cravavam em suas carnes, e aquilo doía demais! Até que, já preocupados pela demora dos garotos, três das moças saíram à procura deles, gritando por seus nomes.

Foi necessário que buscassem foices e facões, para fazerem uma trilha que lhes permitisse chegar até eles, já com o dia completamente claro. Depois, o assunto tornou-se chacota na família, principalmente, quando todos descobriram qual era o motivo do causo: o primeiro caminhão que viram, e as crianças pensaram que aquilo seria a “carroça da bobagem”, coitados.

Ronaldo Jose
Enviado por Ronaldo Jose em 20/05/2022
Código do texto: T7520296
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