A BARGANHA

Nas andanças que André fez por este "Brasilzão" tão bonito, trabalhando como agente de cobranças para um escritório de São Paulo, se por um lado ele viu coisas interessantes, também passou por alguns sufocos memoráveis.

Certa vez, ele estava numa cidade bem ao extremo norte do Tocantins, região conhecida como "bico do papagaio", com a finalidade de receber um cheque sem fundos de uma firma de grande porte, e que ocupava praticamente um quarteirão inteiro, comercializando desde uma agulha até veículos e máquinas agrícolas. Porém, o proprietário dessa empresa tinha fama de "bagre ensaboado", pois não gostava nem um pouco de pagar as suas contas sem dar muito trabalho. Assim sendo, André

já estava orientado a não levar um novo cheque, a ordem era cheque visado, ou depósito em conta corrente da agência, naquele tempo (1987), ainda engatinhava esta prática de se depositar "on-line" numa cidade para ser creditado em outra.

Como só havia ônibus para o seu próximo destino na manhã do dia seguinte, o rapaz, antes de qualquer coisa, tratou de garantir a hospedagem num hotel, sendo que lá deixou a sua bagagem, dirigindo-se ao "cliente" em seguida, visando o recebimento. Até que foi fácil o entendimento sobre o pagamento da conta, acrescida de juros e correção monetária, além das despesas de viagem. O comerciante emitiu um novo cheque, pedindo-lhe que o levasse para ser depositado em São Paulo, ele disse que as instruções recebidas eram para que recebesse o montante apenas em cheque visado, ou depósito em conta do favorecido. Discutiram o assunto durante algum tempo, o homem chegou a telefonar ao seu fornecedor, este não concordou com a proposta feita, e ficou nisso a conversa entre as partes.

Então, André saiu do estabelecimento e foi ao banco, com o objetivo de visar o cheque, quando o gerente lhe disse que tinha fundos, mas que não podia visá-lo naquele momento, porque a outra pessoa que assinava com ele não estava presente, por motivo de viagem. Sugeriu que o mesmo fosse depositado diretamente na conta do favorecido, sendo que isto foi feito. Resolvida a questão, e como não viajaria mais naquele mesmo dia, o rapaz dirigiu-se ao hotel, onde jantou e recolheu-se ao quarto, já era quase noite e estava lendo, quando ouviu uma conversa pouco amistosa.

- João, onde é que está hospedado um tal de André não sei das quantas, um rapaz que veio de São Paulo?

- Ora, seu Carlos! Ele chegou da rua, pegou as malas e já foi embora, não sei para onde, né!

- Tudo bem, meu caro, mas você já me conhece há bastante tempo, portanto, sabe do que sou capaz, se descobrir que você me mentiu, hein!

- Imagine! O que eu ganharia mentindo ao senhor em favor de alguém que nunca vi na minha vida?

- Por enquanto, não tenho motivos para duvidar disto, mas se cuide, tá bom?

- Fique tranquilo, pois o rapaz já deve estar bem longe daqui, viu?

- Ainda bem, pois ele me fez uma grande afronta, e eu, no mínimo, mandaria que a rapaziada lhe fizesse uns "carinhos", para que aprenda a me respeitar!

- Claro, eu sei disto muito bem!

O homem saiu bufando do hotel, em seguida o proprietário chamou André no quarto:

- Moço, você tem que ir embora daqui o quanto antes, se não quiser se dar muito mal! O seu Carlos não está com boas intenções, não, viu?

- Eu ouvi toda a conversa, mas como é que vou embora, João, se só tem ônibus amanhã cedo, hein?

- Isto não sei, só sei que você tem que ir para algum lugar, de preferência para bem longe daqui, pois ele vai mandar a "turma" dele te procurar por toda

esta região. Vamos fazer o seguinte: posso te ajudar, embora correndo um perigo enorme para nós dois. Você entra no porta malas do meu carro, nós saimos escondidos e te deixo lá na beira da rodovia principal, aquela que vai para Tocantinópolis, a BR-230. Lá, você pega um ônibus para qualquer lugar, mesmo que não seja o seu destino, tá certo?

- Se não existe outra alternativa, fazer-se o quê, não é mesmo?

- Então, vamos embora logo!

E assim foi feito, logo apareceu um ônibus que ia para Luzinópolis, onde pernoitou e ficou sabendo que haveria um outro na manhã seguinte para aquela que precisava realmente ir. Quase não dormiu naquela noite, tamanho foi o seu susto.

Passado pouco tempo, outra situação embaraçosa. Desta feita, no Vale do Jequitinhonha, nas Minas Gerais, uma região onde as condições de transporte eram precaríssimas. André estava na cidade de Rio do Prado e precisava dirigir-se à Almenara. Só havia uma linha de ônibus que fazia o percurso, e era através de uma estrada de terra, a não ser que desse uma grande volta, passando por Ponto dos Volantes. O rapaz decidiu ganhar tempo, pois aquela seria a sua penúltima cobrança, antes de retornar para casa no próximo fim de semana, depois, só mais uma em Rubim. Pegou um õnibus já bastante acabado, sendo que este ia praticamente se arrastando o tempo todo, por aquela estrada arenosa. Havia trechos em que os passageiros tiveram que empurrá-lo, porque não tinha forças para superar os obstáculos, e aquilo nem foi tão complicado, assim. O mais difícil foram as ocasiões em que os pneus furaram, umas duas ou três vezes em pouco mais de cinquenta quilômetros rodados em quatro horas, aproximadamente.

Até que a viagem estava sendo divertida, os passageiros, em sua maioria, eram acostumados com tais tipo de problemas divertidos, mas, ajudavam ao motorista, faziam piadas, cantavam, contavam causos divertidos, porém, tudo aquilo era bobagem, perto do que ocorreu a seguir, quando a "carroça" parou de vez, com o motor soltando fumaça.

- Gente, não tem mais jeito, não! O motor do "carro" acabou de fundir! - informou o motorista.

- E agora, seo moço, como vamos fazer, aqui, neste fim de mundo, se nem água temos? - perguntou uma senhora já bastante idosa.

- Sei não, só sei que vamos depender muito de sorte, porque, se não passar alguém que possa levar um recado à garagem, para que nos enviem socorro, estamos é "fodidos" e mal pagos, sem dúvida nenhuma! - disse o motorista

Pior mesmo é que não passou ninguém, num intervalo de três horas, a não ser cavaleiros e uns poucos tratores, que nada podiam fazer, naquelas circunstâncias.

Sem água, nem comida, todos ficaram à mercê de um milagre, já que naquela época (1987) ainda não havia nem celulares para se pedir socorro.

- Motorista, estamos muito longe de algum "trem", onde a gente possa comer alguma coisa, pelo menos? - perguntou André.

- Até que não, "ali bem pertinho tem uma", que fica na beira dum "corgo", lá é parada nossa, quem quiser pode até comer e beber cerveja e guaraná, só que nada é gelado!

- Nessas alturas, meu caro, a gente bebe qualquer coisa, até mesmo veneno, né? - disse um dos passageiros.

O resultado é que quatro passageiros mais corajosos sairam do "atoleiro" seco da areia, e começaram a seguir em frente, até a dita "vendinha", à pé. Lá chegando, beberam e comeram o que havia, principalmente queijos e guaraná sem gelo. A cerveja, eles compraram e colocaram com engradado e tudo dentro do "corgo", para esfriar pelo menos um pouco. Enquanto isto, munidos de varas, tentavam pescar, sem sucesso nenhum, já que a água do pequeno rio estava bastante baixa, além de

muito limpa, devido à grande seca daquele ano.

De repente, não se sabe de onde, surgiu um daqueles caboclinhos da região, sentou-se num barranco perto de André, e ficou ali calado, observando-o atentamente.

Para quem não conhece, esses "capiaus", que são pessoas bem baixinhas e gordinhas, vivem em ranchos na beira dos leitos d'água, geralmente sozinhas, e elas fazem "ponto" nas vendinhas, e também nas margens das estradas. Geralmente, não trabalham, sobrevivem do que por alí é conhecido como "catiras", ou seja, trocam de tudo por qualquer coisa. Por exemplo, dez galinhas por um porco, um porco engordado com abóbaras e mandiocas alheias por farinha, cachaça, arroz, ou feijão, um bezerro por um cavalo "pangaré", cabras por galinhas, enfim, tudo é moeda corrente, pois dinheiro nem conhecem direito. Então, preocupado e incomodado, o rapaz resolveu puxar conversa com o dito cujo.

- Amigo, tudo bem com você?

- Uai sô, nas medidas de Deus Pai e Nossinhora, nóis vai vivenu, né?

- Nesse "riuzin" daqui não dá peixe, não?

- Só diveiz inquanu dá umas coisinhas miudas, mais é perciso cevá, sinão, pega nada não, cumpade!

- Como assim, meu parceiro?

- Perciza ingambelá us bichin, mais eis tão veiacu por dimais da conta, ara!

- Já entendi, vocês fazem mandingas para pescar, estou certo?

- Maomenos anssim! Nóis cunhesse as manha dus pêxe, indeci geito concê tá fazenu, vai pegá é coiisa ninhuma, não, viu?

- Você chegou aqui, não deu nenhum palpite, só ficou observando, totalmente calado. Por quê fez isto?

- É que o apressado come crú, né?

- Não entendi ...

- Eu tô interessado nus seus ósculu! Qué fazê uma berganha cumigu?

- Suponhamos que sim, mas em troca do quê, por exemplo?

- Bão, eu sei que não te interessa trocá por ninhum bichu, pruquê vancê vevi na cidade, némemu?

- Sim, com certeza! Estou na região a trabalho, o ônibus quebrou e vim parar aqui, infelizmente!

- Quem sabe, se num podi sê introca dessa faca aqui, hein?

- Muito bonita, mas não me interessa, não, xará!

- Dinhêru num tenhu nem um tustão furado, mais gostei duseu ósculo.

- Então, sem chances, meu caro! Não quero faca, não quero bicho, só me interessa dinheiro vivinho, aqui, na minha mão! Pagou, levou ...

Aquele óculos de sol foi comprado em Ponta Porã, ou melhor, na divisa com o Paraguai, custara bem pouco, mas era bastante vistoso. Só que o "sujeitinho" não desistiu, e perseguiu no seu objetivo de consumo em todos os lugares, até que André, com medo daquela insistência, acabou por aceitar a troca por um par de tênis usados, apesar de saber que ele nunca usaria aquilo.

Ronaldo Jose
Enviado por Ronaldo Jose em 20/05/2022
Código do texto: T7520292
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