BRINCADEIRAS DE PAPEL

Extraído do livro do autor: "Tute - Brincadeiras de papel"

Chovia muito em uma tarde de um dia qualquer nos dourados anos de uma infância saudável. O menino chega à sua casa todo encharcado, atira a mochila ao solo e, mais que depressa, se despe do uniforme escolar e o joga no tanque sem dó. Livra-se dos tênis junto com as meias sem ao menos desatar os laços dos cadarços e os arremessa a um canto qualquer. Antes de entrar ao banheiro, somente de cuecas, grita para a mãe providenciar uma toalha e roupas secas.

Enquanto se delicia com a água morna caindo sobre o seu tenro corpo, observa as espumas escoando vagarosamente pelo ralo do boxe e imagina qual seria a diversão de hoje, num dia chuvoso. De imediato lhe vem à mente a possibilidade de brincar com barquinhos de papel e soltá-los na enxurrada, antes de realizar a tarefa de casa,

De banho tomado e roupas limpas, arranca folhas do caderno e confecciona vários barquinhos, conforme lhe ensinara o vovô. Uma dobra aqui, outra ali, mais uma lá e está pronta a primeira embarcação. Minutos depois, com a frota em mãos e portando um guarda-chuva, os coloca um a um sobre a enxurrada que desce a ladeira pelo meio-fio da calçada. Cada uma daquelas naus recebe um nome: Vida – Felicidade – Sonho e Esperança. Como um almirante senhor dos sete mares, observa com satisfação os barquinhos de papel navegando, como se navegassem por mares nunca dantes navegados. O menino, sem saber, como um poeta rima o balançar das águas com a brisa leve que embala o ritmo dos barquinhos que seguem adiante, porque navegar é preciso e sonhar é possível, mesmo sobre águas turbulentas. Quando se dá conta do seu feito, percebe que uns se enroscam nos detritos da canaleta, outros seguem adiante para nunca mais voltar.

Outro dia numa tarde qualquer de um verão escaldante daqueles mesmos anos dourados, o calor domina o ambiente e o menino de volta da escola cumpre a rotina. Para não se expor aos raios solares, bola mais uma brincadeira que aprendera com o avô. Folhas de sulfite se transformam em aviõezinhos. Uma dobra aqui, outra ali, mais uma e estão prontas as poderosas aeronaves. Nas asas de cada um do seu brinquedo o menino caprichosamente grafa em letras de forma o mesmo prefixo “B-612”. Da janela do seu quarto lança com maestria cada elemento da esquadrilha que sobe rumo ao céu de brigadeiro. Enquanto alguns alçam voos mais longos levados pela leve brisa e desaparecem por trás dos telhados da vizinhança, o menino imagina que ao menos um terá um destino certo – o asteroide onde habita o Pequeno Príncipe – enquanto outros caem abruptamente sem obter o êxito de planar, muito menos de uma aterrisagem perfeita, frustrando o garoto.

Não passara tanto tempo desde a última brincadeira e uma vez mais a imaginação fértil do menino produz outra maneira de desfrutar do tempo. Com a folha de um jornal confecciona um chapéu de soldado guerreiro, tal qual aprendera com o vovô e de um simples cabo de vassoura faz surgir um garboso cavalo, no qual, todo prosa, cavalga em direção ao quintal cantarolando – "Marcha soldado, cabeça de papel, quem não marchar direito, vai preso no quartel. O quartel pegou fogo, a polícia deu sinal. Acode! Acode! Acode! A bandeira nacional". Em sua inocência se diverte com uma mera brincadeira, ainda não pode entender as implicações políticos e sociais que estariam na mensagem aparentemente inofensiva, ao menos para uma criança. Com todo o tempo a seu dispor, sempre encontra uma diversão para se ocupar. Desta vez outro brinquedo se faz necessário. E ele aproveita os fortes ventos de agosto, de um ano ainda dourado, manipula com precisão a cola, as varetas e o papel de seda que tem à disposição. Como num passe de mágica, faz surgir uma linda pipa colorida, conforme ensinara o vovô. Com maestria coloca o brinquedo no ar, empolgado, pouco a pouco, solta a linha para o papagaio, tal qual Ícaro, as alturas alcançar.

Aproveitando a tarde de um outono luminoso, o petiz tem outra ideia também brilhante, com a tesoura em mãos, recorta a cartolina no formato de um quadrado, dobra as quatro pontas no sentido horário, com uma tachinha prende as abas em uma haste de madeira e tem diante de si um lindocata-vento que, impulsionado pelo sopro da natureza, gira como se vida própria tivesse, que só para quando a brisa se cansar. Então o menino imagina um moinho de vento igual à história confusa contada pelo vovô, do tal de Dom Quixote que luta com os moinhos de vento, que se transformam em gigantes cruéis, e depois, novamente, em moinhos de vento.

O menino cresce e dos primeiros passatempos de papel que aprendera com o seu avô, o adolescente já não tem tempo para manipular brincadeiras como outrora. Agora são atividades distintas que exigem mais seriedade, como escrever cartinhas. Não mais para o Papai Noel, mas bilhetinhos com singelas palavras para a encantadora menina, a mais linda da sala de aula que despertara o interesse e a descoberta do amor. Faltam-lhe palavras para colocar tantas emoções na folha pautada do caderno escolar. Isso o avô não o ensinou. O amor não surge com instruções, nem segue orientações. Simplesmente acontece sem nos avisar, por conta e risco de cada coração.

Adulto, com um livro em mãos, um trecho do texto o faz refletir. Pausa a leitura e viaja no passado, recordando as brincadeiras que o papel lhe proporcionou. Foram barcos, aviões, chapéus, bilhetinhos enamorados e tantas outras diversões. Agora é o livro companheiro que traz estampado nas páginas do papel o poder mágico de viajar por épocas distantes e em locais que nunca imaginou, de conhecer personagens e histórias em profusão. Sábio foi o avô que um legado deixou, o primeiro livro presenteado quando as primeiras letras aprendera, despertando o menino para a leitura, além de tê-lo ensinado as brincadeiras de papel, as quais nunca mais esqueceu.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 14/05/2022
Reeditado em 14/05/2022
Código do texto: T7516074
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