Preto Velho
Antigamente, a presença de curandeiros e benzedores era comum em qualquer comunidade. Havia aqueles que faziam uso de seus conhecimentos religiosos para fazer o bem, amenizando o sofrimento do corpo e, muitas vezes, até curando as suas dores. Entretanto, havia também os que usavam esses domínios para o mal ou até mesmo para se protegerem.
Teobaldo Agripino era um senhor negro, descendente da escravidão, homem de poucas palavras. Andava sempre acompanhado de seu inseparável cão pastor alemão, animal negro de pelo reluzente, muito bonito. Conhecido por todos como Preto Velho, ganhara essa alcunha pelas assombrosas realizações que conseguia através de suas fortes orações, sapiências adquiridas de seu avô materno, feiticeiro da tribo onde vivia, no sul da mãe África. Homem de vida simples, Preto Velho vivia às margens de um pequeno riacho, num rancho de pau a pique coberto com sapê. Amante da natureza, poucas vezes ia ao vilarejo em busca de mantimentos.
Certo dia, enquanto caminhava rumo ao vilarejo com seu fiel escudeiro, o cão negro de pelo reluzente, Preto Velho ouve o tropel de um cavalo que cavalga apressado em sua direção. Era o coronel Coriolano Ferreira, delegado da Vila, famoso por suas abordagens violentas às pessoas que eventualmente levava presas. Acostumado a chefiar com punhos de ferro, o coronel era temido por todos e não era dado a receber um não como resposta às suas vontades. Aproxima-se sorrateiramente do negro Teobaldo e o cumprimenta com imponência. Preto Velho não se deixa intimidar e, respeitosamente, responde ao cumprimento com um leve movimento de cabeça. Ele e seu cão permanecem alertas, esperando a reação do coronel. Com modos grosseiros, o delegado manda que o negro suba em sua garupa, oferecendo-lhe carona até o vilarejo. Num tom mais ameno, Preto Velho dispensa o convite, dizendo que a pé chega mais rápido, preservando, assim, o cavalo de carregar um peso dobrado. O coronel toma aquilo como ofensa e, estalando seu chicote rente ao rosto de Teobaldo, sai em disparada proferindo cobras e lagartos. Mais adiante, longe do negro caminheiro, o coronel diminui o ritmo e, se sentindo ofendido, segue imaginando uma maneira de castigá-lo de algum modo. Enquanto vagueia em seus pensamentos, um par de araras negras passa voando calmamente, num rasante e elegante voo. Surpreso, pensa o coronel: --- Que estranho, nunca tinha visto daquela cor!
A tarde já vinha caindo quando o coronel Coriolano entra no vilarejo e, de longe, avista um cão negro, bem cuidado, postado à frente do armazém da vila, à espera de seu dono. O coronel apeia de seu cavalo e o amarra num varal. Entra no lugar e se depara com o negro, num canto do balcão, degustando uma refrescante bebida. Sem deixar transparecer a sua surpresa, o delegado ficou imaginado como aquele filho da mãe mandingueiro havia chegado ali, primeiro que ele. Com os olhos ardentes de ódio, o delegado manda José Vicente, dono da venda, colocar dois copos de pinga e oferece um ao negro, boquejando que ele é seu convidado. Teobaldo recusa a bebida, dizendo que não consome álcool. Irritado, o coronel saca sua arma e aponta para a cabeça do negro e diz: --- Quero ver se sua mandinga te salva dessa, negro safado! Ou bebe ou morre!!! Sob a mira de um taurus trinta e oito, Preto Velho se vê obrigado a beber aquela pinga, sem dizer uma palavra. Com ar de vitorioso, o coronel atira várias vezes para cima e manda que o negro vá embora! Calado, Teobaldo sai do local e, juntamente com seu cão escudeiro, desaparece na escuridão da noite.
Na manhã seguinte, ainda nos primeiros clarões da aurora, Teobaldo Agripino já está na lida, amolando seu facão duas faces, com corte em ambos os lados. Trabalha a ferramenta com mãos de veludo, pois ela está prestes a realizar um primoroso serviço, sem margem para erros. Refaz a amolação por algumas vezes até o corte ficar tal qual uma navalha. Preto Velho nunca foi simpatizante a vinganças, mas a humilhação que sofrera fere o brio de um homem, não pode passar em branco. Satisfeito, coloca algum alimento no embornal, chama por Tucum, seu cão companheiro e segue rumo ao povoado.
O sol já estava a pino quando Preto Velho chega ao vilarejo. De propósito, passa em frente à pequena delegacia e segue em direção ao armazém do senhor José Vicente. Ao vê-lo, o delegado esboça um leve sorriso sarcástico e vai ao seu encontro. Teobaldo Agripino entra na venda e pede ao dono um naco de carne seca, uma rapadura e um refrigerante. Paga pelo pedido e se encosta num canto do balcão, tragando tranquilamente sua bebida. Nesse instante, entra o coronel, altivo, imponente, desafiador. Pede por uma pinga e fica ali, provocante: cotovelos no balcão, sentado, próximo ao negro. Então, de repente, Teobaldo Agripino chama pelo proprietário do recinto: --- Senhor José, tem aí um copo duplo, daqueles bem grande? O dono do armazém traz um copo e o coloca no balcão, diante do Preto Velho. O delegado só observa. Teobaldo Agripino pede ao senhor José que encha o copo até a metade e, em seguida: --- O senhor tem pólvora preta? Por favor, coloque um pouco aqui, na bebida! Tem pólvora branca? Coloque outro tanto, sim! Tem alho? Amasse uma cabeça, bem amassada e ponha no copo, por favor! Tem pimenta malagueta? Duas colheres! Pimenta do reino? Ponha também! Agora, complete o copo com pinga até encher, por favor! Sem que o coronel esperasse, num movimento rápido, típico de um jogador de capoeira, Teobaldo Agripino salta para o lado e, surpreso, sem possibilidade de defesa, o delegado se vê com um facão afiado rente ao seu pescoço. Com a mão esquerda, o velho negro retira a arma da cintura do coronel e, com voz pujante, fala firme no pé de seu ouvido: --- Hoje o doutor é meu convidado. As condições são as mesmas, ou bebe, ou morre! Com o cano do revólver, Teobaldo Agripino revira a bebida, misturando bem o conteúdo do copo. Pressiona um pouco mais o facão e um fio de sangue corre pela lâmina, pingando no balcão. Pela primeira vez em sua vida, o coronel sente o temor da morte. Aquele negro ali, em sua frente, mais parecia um leão enfurecido, ávido por sua presa. Uma gota de suor frio escorre por sua testa e, obediente como um menino diante da mãe, vai tomando aquela bebida caudalosa, intragável. Suas entranhas reviravam e um calafrio atormentava sua espinha. Com a vista ofuscada e a voz embaraçada, o coronel começa a grunhir palavras incompreensíveis. Com muita dor na barriga, todo borrado, o coronel sai correndo, tropeçando aqui e ali, em busca de um banheiro. Nesse instante, Preto Velho recolhe as coisas que havia comprado e se dirige rumo à porta. José Vicente lhe faz um alerta, dizendo que tome cuidado, pois o coronel é um homem vingativo! Ele faz um gesto de positivo com a cabeça e toma o rumo de casa. Sabia que naquele dia o coronel não iria procurá-lo, pois estaria muito ocupado tentando limpar o intestino.
O rancho de Teobaldo Agripino não oferecia muita segurança, mas ele estava sob a proteção das entidades que o acompanhava. Depois de realizar alguns rituais, faz uma benzeção em todo o lugar: rancho; terreiro; cerca... tudo ao seu redor. A noite chega sem nenhum contratempo, mas ainda na madrugada, Preto Velho é despertado pelo ladrar de seu cão, acusando algum perigo. Se levanta e sai para o terreiro. O dia amanhece quando, em vigília, Teobaldo ainda caminha próximo à cerca, para lá e para cá. De repente, um grito do coronel ecoa no espaço, proclamando voz de prisão ao negro mandingueiro. O delegado havia recrutado seus soldados e mais uma meia dúzia de homens do vilarejo e cercara o lugar para a captura do meliante. Sem dar ouvidos, Teobaldo segue na sua guarda, rente à cerca, para lá e para cá. Diante da resistência, o coronel ordena que atirem. Uma saraivada de balas é lançada em direção ao negro e ele continuava ali, como se nada estivesse acontecendo. A balas ricocheteavam, mas não atingiam o Preto Velho. Os estampidos dos tiros eram ensurdecedores. Uma pausa no tiroteio, e o negro continuava sereno, para lá e para cá. O coronel não acreditava no que estava acontecendo. Nunca havia errado um tiro naquela distância. Algo estava errado! Subitamente, o negro entra para o rancho! Nova ordem e o tiroteio recomeça. Dessa vez, as paredes são atingidas e se pode ver a poeira levantando. O fogo cessa novamente e o silêncio reina por alguns instantes. Inesperadamente, a porta do rancho se abre e o negro cão, com um embornal no pescoço, sai em disparada, passando por todos, numa corrida desenfreada, ganha o mato e desaparece. Os homens do coronel se entreolham, sem entender. Será que o negro tomou a forma de um cão e fugiu? Um assombro toma conta de todos. Sem ver movimento no rancho, o delegado, obcecado pela captura do negro, vivo ou morto, manda um de seus soldados se aproximar do local. O soldado se esgueira pelo mato e chega até a cerca e volta correndo, assustado. Apavorado, relata ao delegado: --- Coronel, tem uma carreira de balas rente à cerca! Por isso o Preto Velho não era atingido! Possesso, o coronel Coriolano fica pensativo: --- Agora tudo se explica: as araras negras; o cão protetor... e agora essas balas. O velho era mesmo um feiticeiro! Inconformado, decide invadir o rancho. O medo paira no ar e, para encorajar a sua equipe, o coronel toma a dianteira, de arma em punho e é seguido por todos. Com um pontapé, derruba a porta e invade o lugar, atirando sem direção. Para surpresa de todos, o velho não está ali e não há mais nada no lugar, senão um fogão improvisado com algumas pedras, uma cama de jirau, um velho baú com algumas roupas e poucos utensílios de cozinha. Encabulados, todos voltam para o povoado.
Quando a tranquilidade impera novamente, o cão negro reaparece, entra no rancho e late por três vezes. Nesse instante, o baú se move e a tampa de um alçapão é aberta. Teobaldo Agripino surge. O tempo todo ele estava ali, escondido para reaparecer no momento oportuno. Passa a mão na cabeça do animal, num gesto de agradecimento. Apressado, prepara um pouco de alimento com a carne seca, farinha e a rapadura que tinha guardados. A briga ainda não tinha acabado e precisava abandonar o lugar sem deixar rastros. No fundo do quintal, à beira do riacho, retira uma canoa que trazia camuflada sob uns arbustos. Antes de embarcar, pega um pedaço de cordão, produz alguns nós frouxos e o abençoa, fazendo mais uma oração, proferindo palavras num dialeto estranho. Já é quase metade do dia quando, juntamente com seu cão escudeiro, entra na canoa e joga o cordão na margem do riacho. Assustadoramente, o barbante salta por três vezes e se estica fortemente, apertando os nós. Vagarosamente, a canoa desce o rio, se deixando levar pela força das águas.
Enquanto isso, no vilarejo, os homens estão reunidos no armazém de José Vicente, bebendo e comentando a façanha do Preto Velho. Inconformado, o delegado ainda profere alguns xingamentos, deixando transparecer a sua raiva. De repente, engasga com a bebida e não consegue respirar. Com o rosto avermelhado, a pressão alterada, o coronel se debate, buscando o ar, que não encontra. Aos poucos, vai perdendo as forças, arqueia as pernas, desaba no chão e aquieta, sem vida. Ao meio dia, o sino da capela do vilarejo anuncia a morte de seu mais ilustre cidadão! O passamento desta vida para o outro plano é sempre triste, entretanto, neste dia, no vilarejo, ninguém chorou!
Longe dali, o ocaso vem trazendo a escuridão da noite. No alto da copa de um velho pé de angico, os mais novos moradores do lugar, um casal de araras negras, se deleita com os encantos do entardecer. É dali que, felizes, a partir de agora, as araras saúdam as pompas do arrebol. Completando esse ambiente bucólico, no remanso das águas do riacho, uma canoa segue a vontade da corrente, levando consigo duas almas inquietas, sofridas, que buscam uma nova vida, um novo mundo onde reina a paz e a liberdade.