O CONQUISTADOR
Mário era um jovem de 20 anos, considerado até muito pacato e ordeiro, acabou sendo envolvido com a polícia, quando de uma manifestação de estudantes contra o Regime Militar dos anos 60, ao sair de um banco onde fora fazer um depósito para a firma em que trabalhava. Ficou parado e observando a movimentação da moçada, mas não participou de qualquer ato. Só achou engraçado o que faziam na bilheteria do cinema: formaram uma extensa fila em frente à bilheteria, perguntavam o preço da “entrada”, diziam que era caro e retornavam ao fim da mesma, de maneira que a fila andava, porém, ninguém comprava os ingressos.
De repente, surgiu um forte aparato policial, e que fechou o quarteirão, completamente. Ninguém podia entrar ou sair dali. Todos os estabelecimentos trancaram as portas, não dava para escapar, e ele permaneceu parado no mesmo lugar. No entanto, um soldado da cavalaria veio em sua direção, desferindo-lhe potentes cacetadas nas costas, ou onde pegasse.
- Calma, seu guarda! Não vê que não estou participando de nada? – reclamou.
- Não interessa, aqui tudo é meliante! – replicou o militar, exaltado.
- Posso provar que não sou nada disso, pois trabalho, nem estudante eu sou!
- Quer apanhar mais, ou vai calar essa maldita boca, hein?
- Tudo bem, já que se acha muito valente, desça desse cavalo e venha brigar como um homem!
Completamente transtornado, o guarda apitou e surgiram outros colegas. Perseguido, Mário saiu correndo, transpôs a barreira montada numa esquina, e entrou na catedral católica, onde já estavam escondidas várias outras pessoas na mesma situação.
Acabou preso e torturado, depois foi enviado num ônibus urbano para São Paulo, distante mais de 300 km. de sua cidade, em pé e algemado naquela barra superior. Nos dias em que permaneceu no DEIC, ninguém o interrogou, só lhe fizeram ameaças, sendo que , sem maiores explicações, ele foi colocado no mesmo ônibus e levado de volta, junto com muitos outros “baderneiros”. Quando faltavam uns 20 kms. para que chegassem ao destino, chovia muito, e todos foram intimados a descerem do veículo e saírem correndo, sem olhar para trás.
Mário e duas moças se embrenharam num cafezal, aguardaram algum tempo, em seguida, tomaram o rumo de Ribeirão, naquela escuridão e com toda a chuvarada que caía.
No dia seguinte, ao se apresentar no emprego, recebeu a notícia de que estava demitido por justa causa, já que fora “fichado” como “arruaceiro”. Foi então que começou a participar de pequenas “coisas”, como soltar bombas nos banheiros de cinemas, porém, ao ser convidado para participar de casos mais graves, como assalto a bancos, por exemplo, não aceitou.
Foi assim que aceitou se engajar num grupo “revolucionário” que foi enviado para treinamento de guerrilha na região do Rio Araguaia, em Goiás. Ali havia vários homens, de todas as idades e ideologias, alguns até perigosos. O regime era praticamente militar, havia comando e hierarquia semelhantes, embora não dispusessem de armas, nem quartel, todos se viravam no meio do mato, da melhor maneira possível.
Certo dia, não se sabe como, surgiu a noticia de que o exército patrulhava a região, com o objetivo de prender o grupo. Isso gerou certa confusão e muita apreensão, todos ficaram mais atentos, o nervosismo predominava, mas não aconteceu nada nos primeiros quinze dias. Foi num domingo que os “homens” chegaram, quando a maioria foi pega desprevenida. Alguns dormiam, outros nadavam no rio, ou pescavam, dentre esses o jovem Mário. Ele se distanciou cerca de mil metros do acampamento, mata adentro, em busca das traíras de um córrego conhecido.
Ali, todos tinham o hábito de levar as mochilas com os seus pertences para todos os lados, já que não havia onde guardá-las. Era comum o desaparecimento de objetos e até roupas, pois havia toda espécie de homens naquelas brenhas, inclusive alguns que se aproveitavam da situação para fugir da justiça, entre os guerrilheiros.
Ele começou a ouvir fortes barulhos, ainda que distantes, parecidos com trovões, mas o céu sobre a sua cabeça estava claro e sem nuvens. Apurou os ouvidos e aguardou assim por algum tempo, quando percebeu que eram tiros. Chegou a distinguir gritos apavorados dos feridos, porque os militares atiravam mesmo para matar, e mataram muita gente naquele local. Algumas dezenas, que ficaram espalhados naqueles ermos, expostos aos animais, já que não tiveram o trabalho de enterrar ninguém.
O rapaz era corajoso, mas previdente, sentiu que naquela hora não seria um bom momento para dar uma de herói sem causa. Então, decidiu permanecer escondido por baixo de uma cachoeira. Só voltou ao acampamento bem mais tarde, depois de verificar que os “homens” já tinham ido embora, deixando um rastro de sangue e corpos espalhados, quase todos já mortos, sendo que apenas dois ainda agonizavam, sem qualquer chance de sobrevida, principalmente pela falta de recursos.
Realmente, não havia nada que ele pudesse fazer, mesmo porque, não conhecia na região nenhum posto médico, ou alguém que pudesse cuidar dos moribundos. A única alternativa foi aguardar que os companheiros morressem, dando-lhes água e frutas. Um ainda conseguiu recomendar-lhe que avisasse à sua família sobre o fato, mas o outro só fazia gemer e gritar. Portanto, Mário sentiu-se meio perdido naquele rio desconhecido, só lhe restava procurar um jeito de escapar, e foi o que fez, após enterrar os homens que ainda sofreram durante três dias, sendo que ambos morreram com diferença de poucas horas. Tinha um pouco de dinheiro próprio, além de um tanto que lhes deram os dois companheiros. Pensou em retornar à sua terra, mas primeiro teria que sair daquele local, e não sabia como fazê-lo, porque desconhecia até qual seria a cidade mais próxima, que era Sandolândia, em Goiás, distante alguns quilômetros dali.
Achou uma trilha e foi embora por ela, passou por uma fazenda onde foi mal recebido pelo capataz, mais adiante encontrou um cavaleiro que lhe ensinou o caminho para aquela cidade goiana, e lá chegou quando já era noite alta. Procurou uma pensão para comer e dormir, depois pensaria no que fazer. Foi quando optou por guardar segredo sobre os fatos ocorridos, diria que era mineiro e gostava de vagar sozinho pelos sertões, assim evitaria maiores problemas. Também decidiu que não iria embora para sua terra, no interior de São Paulo, pois temia que estivesse sendo procurado.
Então, foi à rodoviária, embarcou no primeiro ônibus que partia, cujo destino era Porangatu, no mesmo estado, e que fica às margens da BR-153, a Belém/Brasília. Ali conheceu um grupo de rapazes e moças de Goiânia, e seguiu com eles para a Chapada dos Veadeiros, um lugar em que passaria despercebido, segundo imaginava. A moçada ficou hospedada em Colinas do Sul (GO). O objetivo era visitar um grupo descendente dos quilombolas, Mário foi junto com eles, ajudou dentro de suas possibilidades, pois eram estudantes de medicina e odontologia, mas os caminhos eram difíceis e ele pôde carregar instrumentos, pelo menos. Com isso ele comia e dormia gratuitamente, até já se sentia quase um deles.
Mas a missão terminou após três dias, os jovens retornaram à capital, sendo que ele gostou da experiência e preferiu continuar ficando por ali mesmo, pois tinha feito amizade com os “mestiços”, gostava daquela vida ao ar livre, saía com eles para as caçadas e pescarias, só não topava ajudá-los nas lavouras, porque não agüentava aquele trabalho rude.
Uma coisa que o impressionou bastante foi a maneira como faziam o manejo rotativo das caças e peixes a serem capturados. Havia uma época para emas, outra para javalis, outra para dourados, pintados, surubins, etc., tudo dentro de um esquema bem planejado, respeitando-se os ciclos de reprodução e recria dos animais. Dessa forma, diziam, nunca lhes faltava carne.
Também criavam algumas vacas de leite, cavalos, galinhas e uma cachorrada numerosa, que lhes servia como guardas e ajudantes nas caçadas, quando faziam muito barulho. Plantavam milho, arroz, feijão, mandioca, frutas, algodão, cana de açúcar e abóboras, tudo para consumo próprio da comunidade. Só vendiam o excedente da produção, e compravam apenas sal, querosene, tecidos para as roupas e os remédios básicos. Havia um líder a quem todos obedeciam, e que era o semideus dali, porque tinha poder para punir qualquer elemento do grupo que contrariasse as regras estabelecidas.
Mário era inquieto demais para seguir naquela rotina, e logo tinha arranjado “encrenca” com uma mulata bonita, com quem passava a maior parte do tempo, escondidos nas matas e cavernas. Ela tinha uns quinze anos, corpo escultural, um sorriso lindo, além de um “fogo” sexual incrível, ou seja, juntou-se a fome com a vontade de comer. Se não estivesse prometida pelos pais, desde criança, a um rapaz do quilombo, tudo bem, eles poderiam casar, mas isto era impossível, já que ninguém aceitava tal idéia por ali. A moça foi proibida de continuar aquele “caso” com um branco, e o rapaz foi “convidado” a ir embora imediatamente, sem nenhuma chance de contestar.
Como já tivesse comprado deles um bom cavalo arreado, o jeito foi se mandar de lá o quanto antes, até com certo medo de vingança do seu rival, que havia lhe feito sérias ameaças físicas, inclusive de morte. Pegou a sua velha mochila, montou e partiu sem tempo nem coragem para se despedir da garota, mas levava no peito uma dorzinha que o incomodava sobremaneira. Acabou se perdendo naquela emaranhado de trilhas e passagens estranhas, perambulou o dia inteiro sem encontrar a saída da chapada, entrou por uma mais batida e chegou a um rancho de tropeiros, em ruínas e sem ninguém, porém, havia rastros que o animaram. Logo à frente, já quase noite, percebeu uma luz à distância, estava com muita fome e pensou em arranjar algo com que pudesse mitigá-la. Viu alguns animais, animou-se, porque era um bom sinal de algum morador na região.
Continuou a marcha na direção em que tinha avistado a luz, mas achou melhor não chegar àquela hora da noite, pernoitou à beira de um córrego, onde comeu ingás e tomou muita água para enganar a fome. Quando amanheceu, ele encontrou um ranchinho seguramente habitado, pois havia cães à sua espera, porém, embora chamasse com insistência, ninguém surgia para atendê-lo. Insistiu mais um pouco e após descer do cavalo, notou que era vigiado através de uma janela entreaberta. Foi chegando bem devagar, sempre falando que estava perdido, que tinha fome e precisava comer, enfim, pedia ajuda e que pagaria por ela, mostrando que tinha dinheiro. Depois de algum tempo saiu uma mulher magérrima e com aparência humilde, ele a cumprimentou com um sorriso cativante, daqueles que conquistam qualquer pessoa, mas ela permaneceu do mesmo jeito desconfiado.
- O que o senhor quer, moço?
- Seguinte, senhora, estou perdido na chapada, não sei por onde sair e chegar à Colinas do Sul, nem qualquer outra cidade! Também estou sem comer nada a três dias! - exagerou. – Tem algo que eu possa comer? Estou com muita fome ...
- Tem nada, não, seo moço! O meu marido foi vender e comprar umas coisas na cidade, só vai voltar daqui a uns dois dias.
- Eu pago bem, senhora ...
- Não adianta... eu não sei e nem posso vender nada não, viu? É só ele que pode.
- Olha, eu tenho dinheiro, pago bem por um prato de comida!
- Já disse que não tenho nada, não!
- Nem uma daquelas galinhas ali, a senhora venderia para mim, dona?
- Não, nem sei o quanto vale uma galinha! Só com ele mesmo ... ele quem sabe. Ia era ficar bravo comigo, entende?
Nessa altura, ele já estava rodeado por meia dúzia de crianças curiosas, cuja idade variava entre três e dez anos, aproximadamente. Usavam pouca roupa, tinham os narizes catarrentos, também eram magrelos, a menina mais velha carregava, enganchado no quadril, um menino que parecia ter problemas de locomoção, pois suas perninhas eram muito finas. Ele fez um agrado e lamentou não ter nenhuma bala ali. Resolveu insistir mais um pouco:
- Dona, eu pago dez cruzeiros por uma galinha! Quero só duas ...
- Paga mesmo?
- Sim, e dou mais dez para a senhora fazer as duas para mim, com uma farofa de farinha! Portanto, pago trinta cruzeiros pelas duas galinhas prontas, ta bom?
- Assim pode ser, mas quero o dinheiro na minha mão, agora, certo?
- Tudo bem! Eu espero... eis o dinheiro.
- Meninos, corram atrás e peguem aquelas duas frangas ali!
Foi uma correria geral, até Mário participou, alegremente, imaginando que teria comida por uns dois dias, pelo menos, com o que poderia procurar uma saída com mais tranqüilidade. Quem sabe se aquela mulher não saberia indicar-lhe algum caminho? Pegas as galinhas, esperou debaixo de uma árvore, tranquilamente, até que depois de uma hora e pouco as mesmas lhe foram entregues, e cheiravam otimamente. Comeu uma boa porção e sentiu-se revigorado, mas não obteve nenhuma indicação que pudesse ajudá-lo.
Então, ele saiu e encontrou uma trilha um pouco mais marcada por rastros de gado, e foi seguindo-a, pensando em se deparar com alguma fazenda naquela região. Se havia gado, lógico que haveria dono, pensou. E não estava muito errado, embora demorasse um bom tempo para ter certeza disso, ao chegar às margens de um riacho límpido, onde viu algumas reses que bebiam ali. Aproveitou para descansar e refrescar-se um pouco, já bem animado, apesar de que o sol àquela hora era muito forte, quase insuportável. Ficou duas ou três horas deitado debaixo de uma árvore, enquanto o seu cavalo pastava ali por perto. Quando decidiu seguir em frente já se sentia recuperado.
Logo adiante ouviu latidos de cães, mais um pouco os avistou vindo ao seu encontro, mas não ficou com medo, mesmo porque, não se aproximavam tanto de sua montaria, de maneira que foi possível prosseguir sem maiores problemas. Nessa altura já se sentia transitando por uma quase estrada, a qual adentrou por uma capoeira fechada, cruzou o que era praticamente um rego d’água, e logo avistou a sede de uma fazenda, a pouca distância. Ali foi recepcionado por uma mulher de meia idade, na casa dos quarenta anos, ainda com alguns traços de beleza, mas, um pouco judiada pela falta de maiores cuidados. Esta lhe pareceu muito aflita, talvez um pouco aliviada com a sua chegada, parecendo que precisava muito de alguma ajuda.
- Boa tarde, senhora! – cumprimentou-a
- Boa tarde ...
- Não quero incomodar, o meu nome é Mário, acho que me perdi na chapada e não consigo encontrar a saída daqui, entende? Preciso chegar a alguma cidade!
- Muito prazer! O meu nome é Glória, e sou a esposa do proprietário. É difícil mesmo, Mário! Pois, eu mesma moro aqui há alguns anos, já, e ainda não sei direito como andar por esses caminhos esquisitos, viu! Só o meu marido conhece tudo, mas o coitado está passando muito mal, eu não dirijo, nenhum dos empregados também não, e assim, estamos sem jeito de socorrê-lo, porque a cidade mais próxima fica longe demais, e não sei como chegar até lá!
- A senhora acha que o caso dele é tão grave assim?
- Não sei! Mas, parece que sim, pois está vomitando muito, uma gosma estranha e fedorenta, já que não consegue comer nada há mais de três dias. O coitado sente muitas dores no abdome, só faz suar e gemer!
- Bem, se eu puder ajudar, sei dirigir e posso levá-los até a cidade. Seria até bom, porque aprenderia o caminho, não é mesmo?
- Nossa, isto é tudo que estamos precisando, agora! Sente-se naquele banco, enquanto vou lá falar com ele. – disse ela, ainda no alpendre.
Demorou cerca de meia hora lá por dentro, e chegou trazendo as chaves do veículo, dizendo que o mesmo não funcionava a um bom tempo, talvez desse um pouco de trabalho para “pegar”. Dirigiram-se a um tosco galpão de máquinas, onde ele encontrou uma Rural Willys bastante antiga e caindo aos pedaços, mas era o que havia. O marido tinha feito algumas recomendações sobre o funcionamento daquilo. Mário colocou um pouco de gasolina no carburador, ligou a chave, deu três bombadas no acelerador, acionou o contato, o motor de arranque girou bem lentamente, a princípio, depois foi tomando impulso, até que começou a “tossir” e firmou-se, afinal. Deixou a máquina funcionando por algum tempo, para aquecer, levou o carro até os fundos da casa, colocaram um colchão na parte traseira do mesmo, depois foram buscar o enfermo.
Este mal o cumprimentou, resmungava o tempo todo, mas não havia outro jeito melhor, a não ser aceitar a ajuda de um estranho.
O fazendeiro foi acomodado sobre o colchão, claramente enfermo, mas ainda conseguindo ensinar-lhe o caminho, mais parecido com uma “picada” através dos campos e cerrados, e por onde um veículo convencional não conseguiria transitar. Mário seguia guiando com atenção, tendo Glória sentada ao seu lado, calada e parecendo rezar, ou talvez com receio de falar com um estranho, ele percebeu. O homem gemia e até gritava com os solavancos, mas não havia como minorar o problema, sob pena de demorarem além do previsto, umas duas horas.
Finalmente chegaram a uma cidade pequena, Alto Paraíso de Goiás, o doente foi levado à Santa Casa local, onde os médicos, após os primeiros exames, diagnosticaram o problema como sendo apendicite, já bastante agudo, sendo que o paciente deveria ser operado imediatamente. Tinha que ser feito um depósito em dinheiro, como de praxe, então ele assinou um cheque para que a esposa retirasse a quantia no banco, além de mais algum para as despesas dela e do rapaz, com hotel e alimentação.
Nessa altura já era noite, o paciente recebeu os cuidados necessários, enquanto eles ficaram aguardando numa salinha, até que terminassem a cirurgia e viessem dizer-lhes que tudo correra bem. Mas ele teria que ficar internado alguns dias, já que temiam por uma infecção mais perigosa, porque não tinha sido socorrido no início da doença.
Durante o tempo em que ficaram na salinha, Mário e Glória conversaram bastante, ela lhe contou que era mineira de Paracatu, conhecera o marido na grande exposição de Uberaba. Namoraram pouco tempo e se casaram, indo morar naqueles ermos. Disse também que o ciúme dele era doentio, inclusive, sequer lhe permitia visitar nem sua família, já fazia mais de dez anos que não tinha notícias dos seus. Enfim, que ele a mantinha isolada do mundo, naquela fazenda, e que havia feito inúmeras recomendações sobre a sua presença ali, que não permitisse nenhuma aproximação, etc. e tal. Ainda assim, confidenciou que se sentia um pouco mais aliviada, por não terem filhos que pudessem conviver com aquela situação de permanente penitência, queixou-se, um pouco mais confiante.
Por volta das dez horas da noite, bastante cansados e com fome, dirigiram-se a um hotel considerado de médio porte, só havia um apartamento grande com duas camas, disponível, Mário até solicitou que a dona o ajudasse a encontrar um outro local, já que não conhecia nada por ali. Bem que ela tentou, mas não conseguiu nenhuma vaga, nem em pensões familiares.
Na primeira noite ele topou dormir no veículo, tomaria as refeições e banhos no hotel, mas foi uma opção horrível, mesmo porque era inverno, fazia muito frio, levantou-se mais cansado do que ao deitar, e ela percebeu, logo cedo, enquanto tomavam o café. O dia transcorreu sem maiores detalhes, o marido de Glória passava bem melhor, após a cirurgia, mas logo souberam que ficaria internado por uns dez dias, no mínimo, devido ao perigo de uma infecção, já que demorou muito para ser socorrido.
À noite, após o banho, umas cervejas e o jantar, eles ficaram conversando um pouco mais ali no refeitório do hotel, depois foram assistir à TV na sala, e, quando o rapaz já se dispunha a dormir de novo na rural, ela tomou uma atitude inusitada. Pegou-o pela mão e dirigiram-se ao quarto, dizendo-lhe que poderia dormir ali, só que como amigos, sem qualquer envolvimento, cada um numa cama. Ele concordou e pretendia cumprir o acordo, deitou-se na sua, porém, não conseguiu dormir logo, apesar do cansaço, porque a tinha visto de camisola, e aquilo o encheu de desejos por ela. Todavia, tinha prometido e ficaria na sua, se ela não o chamasse baixinho:
- Mário, você já dormiu? Eu não estou conseguindo...
- Pois é, eu também estava pensando, viu! Pensei em ir embora daqui, o quanto antes, mas não consigo conceber a idéia de deixá-la sozinha numa situação dessas!
- Olha, eu já percebi que você está preocupado comigo, até gosto disso, mas também sei que não posso, nem devo, pedir-lhe que fique! Se ficar, será ótimo, pois já confio muito em você, que tem demonstrado amizade e respeito por mim! Porém, sinto que já fez muito, e sou muito grata por tudo, não tenho nem o direito de pedir-lhe mais nada, só agradecer pela sua ajuda incondicional, sem pedir nada em troca!
- Que isso, imagine! A gente sempre depende de alguém, ora! Posso esperar o tempo necessário, até que seu marido fique bem e possamos retornar à fazenda de vocês. Aí então, eu pego o meu cavalo, já conheço pelo menos uma saída da chapada, posso chegar até aqui de novo, e voltar à minha cidade. Não tenho pressa, não.
- Ai, que bom! Você tem pensamentos nobres, eu nem tanto, porque tive uma idéia meio maluca, sabe? Fugir dele, para bem longe daqui... não sei se terei outra oportunidade tão boa, entende?
- Realmente, mas para onde você iria? Na sua cidade não dá, porque seria o primeiro lugar em que ele iria procurá-la, não acha?
- Com toda certeza, sim! Lógico que tal hipótese está completamente descartada. Puxa, como a tentação é grande!
- Bem, o mais importante, a meu ver, é que ele foi socorrido e operado, você terá que ficar algum tempo na cidade, não sei onde, talvez neste mesmo hotel, né? Voltar à fazenda, pelo menos antes de quinze a vinte dias, sinceramente, acho quase impossível. Vocês têm alguém lá, de confiança, que dê conta do recado direitinho, durante a ausência?
- Temos, sim! O João ... ele conhece todo o serviço e é muito honesto.
- Então, tudo bem! Um peso a menos para se preocupar, melhor assim!
- Lógico! Estou meio insegura, sem coragem, mas, que dá muita vontade, isto dá!
- Agora, vamos descansar, afinal hoje foi um dia muito difícil, nós precisamos repor as energias, pensarmos mais sobre o assunto, você pode decidir tudo amanhã!
- Você tem toda razão, mas estou muito ansiosa, não consigo pensar noutra coisa!
- Eu entendo, só que não devemos, nem precisamos, tomar atitudes precipitadas.
- Você é um anjo, Mário! Tão jovem, eu poderia ser até a sua mãe, e é você quem me ajuda deste jeito, inclusive com conselhos tão maduros!
- A diferença, Glória, é que estou mais acostumado a tomar decisões sobre a minha vida, não tenho pai, só mãe, e faço tudo que puder para não deixá-la muito preocupada comigo... nada além do estritamente necessário, o que já é difícil demais, coitada! Você não, quem decide a sua vida é o seu marido, você apenas cumpre, nada além!
- É verdade... nunca tomo uma atitude, mesmo! Tenho muitas vontades, e pouca coragem, por isso sofro tanto assim!
- Isto é bobagem, sabe? A gente tem que ser dono do próprio nariz, viu! A vida é nossa, ninguém tem o direito de mandar em nós, pelo menos, em nossos sentimentos...
- Se eu escapar daqui, Mário, antes de tudo eu quero tomar conta de mim mesma, estudei um pouco, sei que não sou nenhuma nulidade como pessoa. Só preciso um pouco mais de coragem, de decisão, atitude, liberdade, isso é tudo que sonho para mim!
- Se eu puder ser-lhe útil, pode contar comigo, hein!
- Jura? Você me ajudaria, de verdade?
- Já disse que sim, mas agora procure dormir um pouco, amanhã nós decidimos o que fazer, tudo bem?
- Ta bom, mas você merece um beijo! – disse ela, levantando-se e indo até a cama dele.
- Calma, eu não sou santo, Glória!
- Quem disse que eu gosto de algum santo, Marinho? Você é muito lindo, rapaz!
Rolaram beijos, abraços, a principio meio tímidos, depois mais quentes, daí a carinhos audaciosos foi uma questão de tempo. Em seguida aconteceu o inevitável, apesar da diferença de idades entre eles, uma coisa considerada sem nenhuma importância naquela hora. Ou melhor, ninguém sequer se lembrou disso, lógico. Eram apenas um casal esfomeado e carente daquilo, não houve promessas nem juras, somente deixaram que fluísse o instinto, e tudo foi perfeito demais para ambos. Depois, já relaxados, dormiram até a manhã seguinte.
Quando acordaram, a decisão dela já estava madura, iria embora dali naquele mesmo dia, com ou sem a ajuda de Mário, mas o fato é que a noitada sexual com o rapaz tinha servido para alertar todos os seus sentidos de mulher, já que pela primeira vez estava se sentindo plenamente feminina.
- Meu amigo, eu vou aproveitar esta oportunidade, viu? Ela é única, e não haverá nenhuma outra melhor! Meu marido que se dane, eu já cumpri com a minha obrigação ao socorrê-lo, mas nem por isso, sei que não haverá algum reconhecimento da parte dele, portanto, vou embora daqui sem nenhuma dor de consciência, me entende?
- Sim, claro! Quando iremos? Antes, preciso voltar à fazenda, por causa do cavalo, ele é o meu único patrimônio e posso vendê-lo para fazer um caixa, pois não tenho mais nada de valor...
- Certo, mas eu compro o seu cavalo e o deixo de lembrança. Ontem, ao retirar o dinheiro no banco, parece que eu já sabia, algo me dizia que precisava um pouco mais, então, saquei o bastante para viver tranqüila durante um certo tempo. Tenho o suficiente para viver alguns meses sem maiores preocupações, até que me arranje.
- OK, vamos nessa! Para onde pretende ir?
- Qualquer lugar, desde que seja para bem longe daqui! De preferência, alguma cidade de médio porte, onde eu possa passar despercebida.
- Ribeirão Preto, talvez, quem sabe? Se bem que ele poderia desconfiar, se souber que sou de lá, mas acho pouco provável, porque menti ao preencher a ficha no hotel, dizendo que sou goiano, de Santa Helena.
- Está vendo? Tudo está a nosso favor, meu jovem! Antes, passarei pelo hospital, para ver como ele está passando. Então, poderemos partir sem remorsos, ta bom? Direi que você precisa pegar o cavalo, e que voltaremos à fazenda, mas isso não é verdade, claro, só para despistar, mesmo.
- O que faremos com o veículo, Glória?
- Iremos com ele até Uruaçu, nesta mesma noite, onde o deixaremos em frente à casa de um amigo dele, com as chaves, o qual se encarregará de devolvê-lo ao meu marido. Nós pegaremos um ônibus para Goiânia, de lá iremos para Ribeirão Preto, ninguém saberá de nada, porque não deixaremos pistas. Perfeito?
- Sim, lá em minha cidade a gente consegue um emprego para você! Já tenho até uma idéia...
- Jura? Pode me dizer do que se trata, menino?
- Claro, tenho um amigo que é gerente de um hotel! Considere-se pelo menos uma recepcionista, com lugar para dormir e tudo o mais, viu? Não é nada maravilhoso, mas servirá até você se ajeitar melhor, pelo menos.
- Sem dúvida, mas gosto muito da idéia! Sua namorada é que não vai gostar, com certeza...
- Não tenho ninguém, creia! A última me deixou há pouco mais de três meses, quando fui preso e fichado como “inimigo” do regime! Não me amava, certamente...
- Oba, melhor para mim! Gostei muito do que aconteceu na noite passada, pois fazia uns dez anos que eu não transava com tamanha vontade! Quero repetir tudo, e espero que você também me queira, nem que seja só para isto, ou até que arranje alguém mais jovem, para se casar, lógico! Topa? Não vai ficar com vergonha da coroa?
- Claro que não, ora! Muito pelo contrário, adorei, porque foi a melhor noitada da minha vida, até agora!
- Oh, meu lindinho, querido! Prometo que serão muitas outras, ainda melhores, certo?
- Puxa vida, isto seria maravilhoso! Só um detalhe: sem compromissos, hein! Seremos livres. Qualquer um poderá decidir o seu próprio futuro. Se você arranjar alguém mais compatível, tudo bem; idem comigo!
Naquele terceiro dia, ele preferiu não encarar o marido dela, para não sentir qualquer tipo de remorso pelo que fariam dali a pouco. Deixou-a livre para agir, sem interferir em suas decisões. Almoçaram no hotel e ela disse a todos que retornariam à fazenda naquela mesma tarde. Fechou a conta, prometendo que voltariam em três dias, e então ela foi de novo ao hospital, despediu-se dele com normalidade, apesar da ansiedade que sentia, mas as suas expectativas de futuro não deixavam transparecer os seus sentimentos, já que a decisão estava tomada.
Pegaram a estrada por volta de seis horas da tarde, já meio escuro, com destino a Uruaçu, às margens da Belém-Brasília, um percurso de cento e poucos quilômetros, e de onde seguiriam de ônibus até Goiânia, ainda naquela mesma noite, após deixarem a rural em frente à casa do amigo do marido dela. Eram nove da noite, quando o fizeram, com destino a capital goiana, depois para Ribeirão Preto, onde chegaram na manhã seguinte, sem qualquer tipo de problema. Ele a levou para o hotel onde o amigo trabalhava, pediu ajuda e foi atendido, sem problemas. Só então foi ao encontro de sua mãe e irmãos. No dia seguinte saiu à procura de emprego, era bem relacionado, conseguiu um como vendedor numa garagem de carros usados. Então, alugou uma casinha para ele e Glória, onde viveram intensamente, sempre muito felizes. Até quando, não sei...