O AMIGO DOS BICHOS
Eurípedes lutava com dificuldades num pequeno sítio que possuía. Com cerca de quarenta hectares, ali ele criava algumas vacas de leite e tinha uma pequena lavoura de café, de onde tirva o sustento da família, o casal e oito filhos, sendo que a mais velha tinha quinze anos, e os demais formavam uma escadinha. Os mais velhos já estudavam, então não tinham como ajudá-lo na lida, pois entre as idas e vindas, além das quatro horas de aulas, saíam de casa antes das seis e chegavam por volta das quinze horas, já que as peruas que os levava até a escola do vilarejo mais próximo demoravam bastante naquelas estradas de terra.
Assim, ele e Isaura, sua mulher, tinham que trabalhar muito para dar conta de todos os afazeres. E, o que era pior, a renda era pouca, porque as terras eram fracas, as vacas produziam pouco leite, e também a lavoura estava em franca decadência, por falta de adubo e insumos.
- É mulher, tem mais jeito não, viu? Antes, a gente vendia só os bezerros machos e mantinha as fêmeas, mas agora, já estamos vendendo as novilhas também! Não demora muito e nós vamos ter que descartar algumas vacas mais velhas, e não temos mais a reposição delas, sô!
- O que se há de fazer, então, marido? Se a lavourinha ainda ajudasse um pouco que fosse! Só que neste ano não vamos colher nem cinquenta sacos, e retirando o do gasto, podemos vender somente quarenta sacos, e isto não dá nem pro cheiro, né?
- Pois é, Isaura, estamos num beco sem saída. Prá piorar mais ainda, a Julinha termina o ginásio neste ano, e ontem me disse que gostaria de continuar nos estudos. Ela quer se formar para professora, já pensou?
- A nossa filha já tinha me falado sobre isso, até tentei tirar essa idéia da cabeça dela, falei que não temos condições de mantê-la na cidade. Ela está até pensando em arrumar um emprego numa casa de família, onde possa morar e comer, coitada, mas eu sei que você não deixa, né?
- Ora, de jeito nenhum! Não estamos criando uma filha para trabalhar como empregada doméstica para ninguém, não, uai! Sozinha, ela não vai para a cidade, e pronto!
- Tem razão, eu também não concordo. Ou vai todo mundo, ou não vai ninguém, tá certo?
- Bom, minha velha, eu até já pensei em vender isso aqui, sabe? Não vejo nenhuma outra solução, porque, reformar a lavoura custa muito caro, e eu não pretendo me atolar em dívidas de financiamento. Além do mais, também não temos condições de melhorar a produção de leite. Se vendermos bem, quem sabe se não compramos uma casa e montamos um comercinho quarquer, lá em Uberaba, por exemplo?
E assim foi feito, e após algum tempo de muitas dúvidas, decidiram pela mudança. Vender as terras até que não foi tão difícil, pois, apesar de serem fracas, um fazendeiro paulista precisava de uma área para reserva legal, já que tinha adquirido uma grande área de chapadão na região. Acabou pagando um bom preço pela propriedade, o suficiente para tocarem a vida conforme haviam planejado. Quando fizeram a medição, acabou sobrando dois hectares além dos quarenta que constava na escritura de venda, e esta área ele resolveu manter para alguma eventualidade. Optou por um pedaço de mata fechada, cheia de ladeiras e grotões, e que não servia para criar gado, nem plantar qualquer coisa, a não ser bananeiras.
Em Uberaba, montou uma mercearia no mesmo bairro em que morava. Abria muito cedo para vender o pão e o leite, e fechava quando saísse o último cliente, geralmente por volta das oito ou nove horas da noite, sem feriados e nem domingos. Era bom comerciante, sabia conquistar as pessoas com o seu jeito simples e educado, de maneira que conseguiu manter um bom padrão de vida para a família, com todos os filhos na escola.
Após cinco anos, os três mais velhos já tinham concluído o colegial, a Julinha lecionava, o Carlos era contabilista e trabalhava num escritório, só o Orlandinho optou por fazer faculdade de zootecnia. Enquanto isso, os demais seguiam as mesmas pegadas dos irmãos maiores, sendo que todos eram aplicados e faziam a satisfação daqueles pais.
Quando completavam dez anos de estadia na cidade, uma grande rede de supermercados instalou uma filial naquele bairro, e aí o movimento da mercearia caiu assustadoramente, tornando-se impraticável mantê-la aberta.
O jeito foi arranjar uma outra atividade que mantivesse a estabilidade da família, então, ele fechou o estabelecimento e comprou um caminhão 3/4, com o qual passou a vender frutas, legumes e verduras nas periferias da cidade. Algumas coisas ia buscar no Geagesp de Ribeirão Preto, outras adquiria de produtores da região, continuava trabalhando muito, porém, mantinha um nível razoável, que lhe permitia ir formando todos os seus filhos.
Faltavam apenas os dois mais novos, alguns já tinham profissões definidas, não dependiam mais dele, já podia se dar ao luxo de descansar mais, principamente nos fins de semana. Haviam se passado vinte anos desde que deixaram o sítio para viver na cidade, ele já estava com mais de 60 anos, se sentia muito feliz e realizado. No entanto, parece que por um capricho do destino, Isaura foi diagnosticada com um câncer, sendo que os médicos não lhes deram nenhuma esperança de sobrevivência. De fato, ela faleceu dentro de pouco tempo, e ele se viu sozinho.
Foi então que resolveu retornar ao seu pedacinho de chão, abriu uma pequena clareira na mata, onde mandou construir uma casinha simples, com quarto, cozinha e banheiro, além de uma grande varanda aberta. Ali passava a maior parte dos seus dias, isolado do mundo e convivendo com a plena natureza, observando as plantas e os bichos. Ia à Uberaba uma vez por mês para rever os filhos e netos, fazer compras e receber a sua aposentadoria. Tinha como companheiros apenas três cachorros, dois gatos e o papagaio Pinduca, além de criar pequenos animais, como galinhas e frangos, sempre havia um porco na engorda. Também cultivava uma pequena horta de subsistência, com plantio de couves, alfaces, vagem, giló, quiabo, cenoura, berinjela e tomate, principalmente, tudo para o seu próprio consumo. Tinha somente um rádio que o mantinha em contato com o mundo lá fora.
Numa dessa vezes em que foi à cidade, resolveu comprar alguns bebedouros e mel para os beija flores que o visitavam constantemente, e aquilo foi apenas o início, porque aos poucos ele foi ampliando uma criação bem maior de pássaros silvestres, fornecendo-lhes uma grande variedade de alimentos. Já tinha um casal de canários da terra presos numa gaiola, um dia abriu as portas e permitiu que voassem, eles voltavam à noite para dormir e comer, o macho cantava ao romper do dia, logo procriaram numa casinha de joão de barro que ele tinha colocado na varanda, e outros surgiram, póis havia muita fartura de comida ali.
Dali em diante outros tipos de pássaros chegaram: os pintasilgos, curiós, azulões, sabiás, sanhaços, garrinchas, e até jacus, inhambus, rolinhas e juritis, siriemas, tucanos, maritacas e periquitos, e aquilo formava uma companhia certa, e um lindo concerto musical durante praticamente todo o dia.
Também os mamíferos foram se aproximando: os macacos, quatis e outros animais que moravam ao redor e dentro da mata Aí Eurípedes decidiu cercar uma área com tela, porque era inevitável que também surgissem os lobos e oncinhas, as lontras e raposas, de olhos nas galinhas do terreiro. Já era difícil evitar os gaviões que vinham em busca dos pintinhos, ele os defendia dos intrusos soltando foguetes para assustá-los, e assim conseguia que alguns chegassem a sobreviver. Porém, o homem tinha pena deles, pois a rede alimentar andava meio escassa, então, também começou a colocar comida do lado de fora do cercado, e isto fez com que numerosos bichos ficassem por perto. Com o tempo, a maioria já nem ligava mais com a sua presença, e parece que alguns até gostavam dela, e vinham lhe roçar nas pernas, bem mansos. Conversava com todos, deu-lhes nomes: um casal de pássaros pretos eram Pena Branca e Xavantinho; os beija-flores eram Tonico, Tinoco, Pedro Bento, Zé da Estrada, Cascatinha e Inhana; as pombas eram Sergio Reis e Vanusa; havia também Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, Tornado, enfim, uma enorme lista de nomes de artistas, principalmente. Com isso conseguia passar os dias tranquilo, naquele ambiente muito calmo.
Saía pouco de casa, somente nos fins de semana, quando ia jogar truco com os poucos amigos que ainda continuavam na luta pela sobrevivência cada vez mais difícil, mas ainda teimavam em tirar o sustento da terra, já velhos e e cansados, com os filhos distantes, trabalhando nas cidades ou nas grandes plantações de milho e soja da vizinhança.
Considerava-se feliz e realizado, apesar de isolado daquele jeito, pois todos os filhos estavam formados, cada um cuidando da sua família, e bem, sem maiores problemas. Grande parte já era casada, ele tinha muitos netos, só sentia uma tremenda falta da companheira de quase quarenta anos, mas era uma saudade boa, porque sempre viveram em plena harmonia. Para amenizar um pouco essa perda, acabou colocando o nome dela em sua gata favorita: Isaurinha.