O INGÊNUO CAÇADOR
Antigamente, nos cafundós do triângulo mineiro, quando as famílias dos fazendeiros ainda moravam nas propriedades, ainda havia muita ingenuidade por parte de alguns personagens considerados extravagantes, ou meio malucos, se preferem assim. Hoje em dia, no meio rural quase não há mais ninguém, já que a maioria das terras pertencem aos grandes produtores, com máquinas que substituiram o homem no campo. Restam poucos dos antigos moradores, que sempre tem um "causo" engraçado para nos contar.
Do Ambrósio eu me lembro bem. Era um dos muitos irmãos meio atrapalhados, como o Zé Gundim e a Terezinha, que não enjeitava qualquer "parada", em se tratando de sexo. Embora fosse casada e nem tão bonita assim, era o ponto de "referência" de todos os homens e moleques da região, pois dizia que o marido não era muito "competente" e aceitava a situação, o que ficou comprovado mais tarde, conforme alegou, para justificar a sua vingança contra a mulher.
Ele deixou crescer os cabelos "black power", passou a usar um roupão à moda dos beatos, e transformou-se num travecão. Ainda é vivo, já bastante idoso(a), e perambula pelas ruas da pequena cidade, ainda tentando que alguém o aceite como "servidor". Prefiro não mencionar o seu nome, por causa dos filhos (dizem que um deles é meu irmão), mas é um dos mais talentosos contadores de causos que conheço, apesar de semi analfabeto.
Bem, mas vamos ao assunto a que nos propomos: as caçadas do Ambrósio.
Este tinha umas idéias mirabolantes, e as colocava em prática em suas investidas.
Certa vez em que decidiu caçar emas nos chapadões, ele ficou vários dias espreitando aquelas aves em suas andanças pelos cerrados, e constatou que elas, nas horas mais quentes do dia, se abrigavam sob os arbustos, sempre em numerosos grupos. Foi então que teve uma idéia "luminosa", visando capturar alguma delas.
Começou a jogar alimentos na redondeza, que era para cevar as bichonas, enquanto cavava uma profunda trincheira, sendo que removeu toda a terra que retirava do buraco num balaio, depositando-a a uma certa distância, longe dali, porque as danadas eram ariscas, e poderiam nem chegar perto. Então, concentrou os alimentos em volta desse buraco durante um longo tempo, até que se acostumassem. Depois de alguns dias, cobriu-o com galhos e ramos, continuou cevando, até que sentiu firmeza para colocar em prática o seu plano.
Num domingo, logo cedinho, Ambrósio prendeu a cachorrinha que o acompanhava onde quer que fosse, para não atrapalhar em sua empreitada, abasteceu o embornal com queijo e rapadura, uma cabaça d’água, e foi esperar dentro do fosso. Aguardou durante horas a fio, mas permaneceu atento ao movimento das emas, escondido sob as ramagens.
Quando os animais se aproximaram para comer, ele visou a maior de todas e atracou-se em uma de suas pernas, segurando-a firmemente, ao que a ave, assustada, saiu em desabalada carreira, arrastando-o pelos campos.
Considerava o enorme trabalho que tivera naquela empreitada, e isto lhe dava coragem e força para não soltá-la, e acabou muito machucado, por causa das trombadas que levara nas árvores do cerrado, cupins e espinhos, muito comuns naquela região.
O fato é que chegou na fazenda todo ensangüentado e contundido, claro que sem conseguir qualquer êxito naquela caçada.
De outra feita, muniu-se de um enxadão e um facão, com o objetivo de caçar tatus nos arredores, outra coisa que gostava bastante. A cachorrinha “Merenda” descobria os buracos que aqueles bichos cavam no chão, e ele chegava ao local, examinava as possibilidades de haver algum ali dentro. Quando achava que sim, cavava até encontrar o pequeno animal, que pegava e ia prendendo dentro de um saco de aniagem, aos montes. Depois, matava cada um com uma porretada na cabeça, limpava e temperava, cozinhava a carne durante horas, guardando tudo numa grande lata com manteiga de porco, para ir comendo aos poucos, ou com mandioca, ou arroz, além de grandes goles de cachaça.
Só que naquele dia os bichinhos pareciam em greve, porque não encontraram nada. Pensou que estivessem na época de “vadiagem”, quando formam grandes grupos, entram nas malocas mais profundas, e ali copulam, inclusive, machos com machos, dizem., pois eu nunca vi.
Então, ele decidiu procurá-los nos buracos de cupins, aqueles montes de terra existentes em abundância no meio das pastagens degradadas. Foi andando e olhando com atenção, até que Merenda descobriu alguma coisa num deles, onde ficou latindo com insistência.
Ambrósio chegou correndo, e afoito, viu que dentro do buraco havia um rabo, que ele pensou ser de tatu, o qual pegou e puxou com força, quando retirou dali uma enorme cobra das mais venenosas. Ainda tentou se desvencilhar do ofídio com rapidez, mas a danada se contorceu e pegou o dedão de sua mão, mordendo-o. Apavorado, e sabendo que aquilo era morte certa e sofrida, o rapaz retirou o facão da cintura, colocou o dedo ofendido em cima de um tronco caído, decepando-o com um certeiro golpe.
Ficou estendido no chão, esvaindo-se em sangue, sem conseguir estancar a hemorragia, até que perdeu os sentidos, tamanha era a dor e o medo.
Percebendo o sofrimento de seu dono, a cachorrinha saiu em disparada, e foi até a fazenda onde moravam, sendo que ali estava apenas o Joaquim, um anão. Ela latia com insistência, ia e voltava com insistência, como se estivesse pedindo socorro, como de fato estava. O anão, que já estava com o cavalo arreado para apartar as vacas dos bezerros, decidiu por segui-la, até que encontrou o moço caído ao lado do cupim, porém, já se mantinha acordado, embora meio atordoado.
Joaquim improvisou uma atadura com a camisa, que era para estancar o sangue que jorrava, enquanto benzia contra mordedura de cobra, a única coisa possível naquela circunstância. Conseguiu que Ambrósio montasse no cavalo e foi puxando-o até em casa, onde preparou uma compressa com diversas ervas, que era para evitar que o lugar do dedo não pegasse uma infecção mais grave, pois o facão não tinha nenhuma higienização.
- Já te falei muitas vezes, Ambrósio, sobre os perigos que você corria com essas suas caçadas malucas, né? Parece que até já sabia que isto ia acontecer com você! Foi Deus e a Merenda que ajudaram, viu, sem juízo?
- Pois é, mas a gente tem a mania de achar que essas coisas acontecem só com os outros, nunca com a gente, Joaquim!
- Desta vez você escapou, mas deve tomar mais cuidados, hein!
- Sim, graças a Deus, a você e à Merenda! Vou caçar mais não, credo!
- Sei ... sei ... eu te conheço! Lembre-se sempre, que nós vivemos nos “ermos”, viu? Uma hora qualquer não tem mais o Joaquim, a Merenda, nem ninguém! Aí, velho, você vai e a banda não toca, ta sabendo?
Essas foram apenas algumas das inúmeras façanhas do Ambrósio, todas elas, digamos assim, meio preocupantes.
Nos próximos episódios, vou contar sobre um jogo de futebol com a participação dele, além de outros causos semelhantes.
Inté,