SÃO MERAS COINCIDÊNCIAS
Naquela pequena cidade de Minas, final dos anos 50, morava o Carlos, um rapaz com sérios problemas de locomoção por causa de uma paralisia infantil. Era de paz, estava sempre sorrindo e gostava muito das crianças, chegando a jogar bola com elas, quando brincava no gol, apesar da sua cadeira de rodas. Havia muitas ladeiras nas ruas locais, a tração do seu veículo era manual, através de uma manivela que ele acionava com a mão direita, enquanto que a esquerda segurava o "guidão".
Todos os dias, ele saia de casa bem cedinho e ia para o seu local de trabalho à porta do Pernil de Ouro, uma lanchonete metida a restaurante, bem no centro, onde exercia a função de engraxate e dos bons. Nessas horas sempre havia alguém que o ajudava, pois a gente estudava num colégio salesiano que ficava mais além, atrás da igreja matriz, por isso o bar ficava bem no caminho, de maneira que não nos atrapalhava em nada. Aliás, muito pelo contrário, nos divertíamos muito com as suas estórias engraçadas, e que contava durante o trajeto. Ele dizia que não, que tudo era verdade, jurava, mas acho que era tudo inventado, porque nunca soube que tivesse viajado.
Seus temas preferidos eram as pescarias e caçadas:
- "Um dia, eu fui pescar em cima daquela ponte sobre o ribeirão do Céu (na verdade o nome ainda é ribeirão do inferno), que vai dar na fazenda do seu Juvenal. Aquele mesmo, do escândalo com aquela Marcia do colégio das meninas, quando foram pegos pela molecada em pleno combate.
Pois, então, eu estava lá em cima da ponte, como eu disse, bem tranquilo e sentado na minha montaria. Já fazia um bom tempo que estava lá, os peixes nem beliscavam no anzol, o sol estava quente, não havia sombra nenhuma por ali, e foi dando aquela molezinha no corpo, acabei cochilando, assim mesmo. De repente, acordei assustado com um puxão na vara de pescar, foi então que dei um "soco" prá trás com toda a minha força, e vi saindo da água um "baita" dum bagrão bigodudo daqueles chorões. Resolvi brincar um pouco com o "danado", pois sabia que a linha e o anzol aguentavam, até que o bichão parou de brigar. Aí né, fui retirando ele da água com calma, bem devagarinho e curtindo a minha boa sorte. Foi quando levei um grande susto, ao ouvir um forte bater de asas vindos por trás de mim. Até confesso que não foi por querer, mas, acho que foi mesmo por puro instinto de defesa, que levantei as duas mãos para me proteger do ataque traiçoeiro, mas, com o meu gesto, acabei pegando pelas pernas um casal de patos selvagens daqueles grandões e pesados, e cujo único objetivo era me roubarem o peixe. Já que tinha pegado não podia largar, de jeito nenhum, e então nós três travamos a maior luta que eu já vi. Rolamos pelo chão, eles batiam asas, esperneavam, me bicavam com raiva, e eu lá, firme e decidido a não deixá-los escapar. Na verdade, aquela briga durou umas duas horas, até que consegui enfiar os dois dentro de um saco de estopa, daí fiquei esperando que algum fazendeiro passasse por ali com a sua caminhonete, para nos dar uma caroninha. Logo chegou o finado Jorge leiteiro, aquele pândego, que, inclusive, também não acreditou na minha estória, e andou espalhando que eu tinha roubado os bichos de algum quintal. Se vocês não acreditam que levei os patos e o peixe para casa, isto não é um problema meu, nem posso confirmar, porque a minha mãezinha também já foi chamada por Deus. Fazer o que, né?"
- Ora, Carlos, imagina!!! Você acha mesmo que alguém em são consciência vai acreditar numa lorota dessas, rapaz? – eu retruquei, irônico.
- Como eu já disse, meu jovem, isto é um problema exclusivamente seu. Eu até concordo com você, pois, se alguém me contasse uma coisa dessas, com certeza, eu também duvidaria do camarada.
- Ninguém acredita, lógico, mas ele tem coisas ainda mais bizarras. Uma delas, aquela em que você matou nove onças numa mesma caçada, Carlos, eu acho ainda mais maluca do que esta dos patos, viu, gente? Conta aquela prá eles ... – pediu Nonô
- Eu não, né? Pra quê, se ninguém vai acreditar em mim? As duas pessoas que poderiam me testemunhar, uma delas o Odilon, foi morar em São Paulo, nunca mais que voltou aqui; a outra, o coitado do Ademar, sofreu aquele derrame e nem falar ele fala mais! Vou pensar, mas não prometo nada, já que não gosto de que duvidem de mim, claro. Se resolver, eu conto amanhã, tá certo, gente? Já é tarde e os pais de vocês podem não gostar que cheguem atrasados para o jantar, não é mesmo?
- Tudo bem, velho, mas o gozado disso tudo é que sempre acontece de você indicar testemunhas, ou que já morreram, ou que sumiram, ou que nunca mais falarão, hein! Ai tem, viu? - contestei
- Pois é, não posso fazer nada. Bom, agora cada um vai para a sua casa, eu vou comer a galinhada que a dona Maria me mandou, depois dormir, que amanhã é dia de pobre ... trabalhar, lógico. Boa noite a todos.
Na manhã seguinte, como de rotina, lá vamos nós para o colégio, empurrando a cadeira do Carlos. Ele tentou não contar a história da caçada de onças, mas nós insistimos muito, até que ele cedeu, mesmo porque, adorava prender a atenção dos que o rodeavam.
- “Bom, vou simplificar o meu causo, mas quero que se lembrem de que foram vocês que insistiram comigo, hein! Portanto, ouçam e tirem as suas conclusões, porém, já vou avisando que não quero saber; se vocês acreditam, ótimo; se não, bom também!
Isto aconteceu a uns dez ou doze anos, quando o Odilon e o Ademar me convidaram para uma caçada de onça lá naquela mata da fazenda do Sr. Tunico Abrão. Eles me levaram no colo até à beira de um poção, dizendo que era ali que a bicharada vinha beber água. Deixaram uma “filobé” e muita munição nas minhas mãos, depois foram subindo pelo mato até a cabeceira, de onde soltariam os cães. Antes, recomendaram que eu não desse nenhum tiro à toa, que era para economizar munição e não assustar os bichos. Ou seja, fiquei ali, sossegado e aproveitando aquela paz que só as coisas da natureza podem nos proporcionar. A exuberância das árvores, o cantar e a beleza da plumagem dos pássaros, a graciosidade de uma pata e a sua ninhada, as pacas, os macacos, até os insetos e sapos, além dos peixinhos.
Todos sabem que no meio do mato sempre acontece de alguma árvore grande cair e ficar lá tombada, na maioria das vezes, vitimada por algum raio, ou até mesmo por velhice, pois elas também tem um tempo de vida certo, como acontece com qualquer outro vivente.
Pois é, então, bem à minha frente havia um desses enormes troncos caídos, distante uns oito ou nove metros de onde eu estava. Após umas três horas de espera, já comecei a ouvir o barulho da cachorrada dentro da mata, seguindo algum rastro de onça, algo bastante conhecido pela “catinga” que a “marvada” exala, muito semelhante ao odor do café torrado. Eu fiquei mais atento e logo notei à minha frente, apoiando as patas dianteiras sobre a tora de madeira, uma enorme onça, que me fitava e lambia os beiços, sabe-se lá com que intenção. Eu é que não ia perder tempo para perguntar, e mandei um tiro naquele carão medonho. Foi bater e a bichona deu um enorme salto, soltou um miado agudo e caiu para trás. Minutos depois, lá estava uma onça de novo, pensei que seria a mesma, apenas ferida, e tratei de atirar novamente, com o mesmos resultados. E assim foi acontecendo, surgia uma onça, eu atirava, surgia uma onça, eu mandava bala. Eu nunca imaginei que pudesse ser outras, queria somente me livrar daquela primeira, definitivamente, mais com medo do que qualquer outra coisa. Por outro lado, eu não podia ir até lá para conferir qual seria o motivo para que aquela danada não morresse, já que as balas da “filobé” matam até bois, quando acertam em lugares vitais. O jeito foi esperar pela chegada dos meus companheiros, aqueles já citados no começo.
Qual não foi o espanto do Odilon, quando verificou a existência de nove feras daquelas tombadas por detrás do tronco caído, todas abatidas com tiros certeiros, bem no meinho, entre os dois olhos das feras. Aquilo era digno de ser registrado em retratos, mas não foi possível, porque o seo Benja estava ocupado numa festa de bodas de ouro numa fazenda distante.”
- Caramba, Carlos!!! – tentei ironizar
- Popará!!! Eu avisei antes que não aceitaria desconfianças, não foi?
- Numa coisa, você há de concordar conosco, pelo menos, né? Não acha que é muita onça para apenas uma caçada? – disse Nonô
- Só não interei as dez, gente, porque fiquei com dó de um filhotinho, coitado! Acabei por levá-lo para a minha casa, onde o criei mamando numa cadela minha que deu cria, mas um dia, quando já estava grandinho, um agrônomo e um veterinário da Casa da Lavoura me convenceram a soltá-lo de novo na mata. Eu soltei e gostei disso!
- Ah, então quer dizer que temos mais testemunhas nesse negócio, hein!
- Tem mais, não, porque os dois agora trabalham na Emater de Belo Horizonte. Nem eram daqui, só estavam fazendo estágio.
- São meras coincidências, lógico! - admiti