UMA MÃO LAVA A OUTRA

Eram 11,30 horas de uma sexta feira fria, no estacionamento do Hospital de Clínicas, quando Pedro entrou em seu carro para ir embora, depois de uma manhã de consulta e exames. Estava bastante cansado e só pensava em chegar logo em casa, para comer alguma coisa, pois ainda estava em jejum. Logo que chegou ali, antes das sete horas, foi abordado por um homem de aparência bastante humilde, já idoso, e que lhe contou a seguinte história:

- Moço, cheguei aqui ontem de madrugada, vindo de Minas, na ambulância da minha cidade, e acabou que demorou muito para que eu fosse atendido. Então, não sei se esqueceram de mim, ou se foi porque o motorista de lá é meio "grosso" com a gente, eles foram embora, me deixando aqui, sem um centavinho no bolso, apenas com o cafezinho preto que tomei ontem de madrugada, quando saimos de casa. Passei a noite aqui, naquele banco de cimento ali, neste frio medonho. A sorte foi que um guarda viu a minha situação e me emprestou um cobertor desses "sapeca niguim", mas quase não dormi, por causa da fome que era muita, sabe?

- Nossa, o senhor deve estar "varado", hein!

- Demais da conta, seo moço! Quando avistei você chegando, não sei por qual razão, deixei a minha vergonha de lado, e resolvi lhe pedir que me pague qualquer coisinha para comer, nem que seja apenas um pão sem nada! Me desculpe, se estou lhe pedindo isto, mas o meu caso é de muita necessidade mesmo, viu?

- Ora, eu entendo, claro! Vamos até a lanchonete, tá bom? Ademais, a gente sabe que essas ambulâncias de "fora" chegam aqui trazendo vários tipos de pacientes, e que, com absoluta certeza, o senhor só deve ir embora bem tarde, não é mesmo?

- Ah, sim! Muitas vezes, já aconteceu de eu terminar a minha consulta mais cedo, até antes do meio dia, e sairmos daqui só às seis da tarde, por causa de alguém que demorou um pouco mais! Mas, é o único jeito que tem, a gente não tem dinheiro nem para comer, quanto mais para pagar passagem de ônibus, né!

- Infelizmente, é verdade, sim! Bem, eu não trouxe muito dinheiro comigo, pois moro aqui e devo almoçar em casa, entende? Vou lhe pagar um daqueles pães com mortadela ali, além de um suco ou refrigerante, tudo bem?

- Não estou fazendo nenhuma exigência, não, mas se você não se importar, eu prefiro um copo de leite quente com café, que é para aquecer o meu estômago, viu?

- Tudo certo, meu amigo! Também vou lhe pagar um prato de comida para o seu almoço. Eu pago e pego um vale, o senhor almoça quando quiser, tá certo?

- Nossa, bom demais! Chegou mais gente antes de você, eu olhava e não tinha coragem de pedir, mas, como já lhe disse, achei que podia lhe pedir, e acertei! Que Deus lhe pague, meu amigo, e lhe dê muitas felicidades!

- Amém!!! ... fique tranquilo, isto não me fará nenhuma falta, muito pelo contrário, estou me sentindo feliz por poder ajudar ao senhor!

Na verdade, Pedro gastou os únicos dez reais que levara para tomar um lanche, após os exames, porém, aquele episódio lhe fizera um enorme bem, porque tivera a oportunidade de praticar uma boa ação, coisa que não vinha fazendo há bastante tempo, aliás. Não ia morrer de fome por causa daquilo, certamente, pois sabia que naquele dia sairia mais cedo do hospital. Mesmo que demorasse um pouco mais, não se importava, valia pela boa causa daquele momento.

Já estava saindo, conforme o previsto. Manobrou o carro com calma, e saiu na direção do portão de entrada e saída do local, quando, ao fazer uma curva de retorno, ouviu um barulho estranho, como se tivesse caido algo metálico do seu veículo, então, parou e foi verificar do que se tratava. Olhou embaixo, achando que poderia ser alguma coisa com o escapamento, mas não viu nada de anormal. Olhou de lado, e lá estava um facão bastante grande, desses que as pessoas da "roça" usam para "encabar" ferramentas, também para fazer picadas nas capoeiras, entre outras coisas. Tinha uma lâmina afiada, com cerca de 40 cms., parecia quase novo, cabo de madeira com uma perfuração, onde o dono passou uma argola e colocou uma tira de couro de boi, que era para pendurá-lo em algum prego em casa.

Examinou a ferramenta, mostrando-a aos motoristas de ambulâncias que jogavam truco enquanto aguardavam a saída das pessoas que deveriam voltar para casa com eles, todos disseram que não lhes pertencia, nem ninguém tinha visto quem o teria deixado ali. Então, abriu o porta malas do carro, colocando-o lá, mesmo achando que não teria qualquer utilidade para ele, já que trabalhava na área administrativa, usava apenas canetas e equipamentos de es critório.

Nem se lembrava mais do fato, trabalhou normalmente no periodo da tarde. Ao chegar em casa, tomou um banho e estava jantando, enquanto assistia ao jornal local pela TV, foi quando o apresentador anunciou um crime ocorrido em uma pequena cidade da região. Um homem que morava na área rural tinha pego a esposa em flagrante adultério, vindo a matá-la a facãozadas, inclusive, chegou a quase decepar-lhe o pescoço, tamanha a violência. Obviamente, que levou o maior susto de sua vida, e logo imaginou que a arma do homicidio poderia ter sido aquela que achou, pois o criminoso tinha fugido numa bicicleta, após o sinistro.

- Meu Deus, Marta! Estou enrolado nesse caso, mulher! Achei um facão lá no estacionamento do hospital, que guardei no porta malas, e que pode muito bem ter sido utilizado pelo sujeito que matou essa mulher aí, heim! Poxa, que falta de sorte! Nunca imaginei que uma coisa dessas pudesse acontecer comigo, de jeito nenhum! O que faço agora?

- Calma, meu bem! O fato aconteceu há pelo menos 30 kms. daqui, não foi? Não dava tempo desse assassino ter vindo até aqui, não acha?

- Acho difícil, também pode ter vindo, por quê não? O pior de tudo é que muita gente me viu pegando este facão, que, ao que parece, caiu de cima do meu carro! O único jeito é dar um sumiço nisso, e é para logo, viu! Vou jogá-lo no meio do mato, em qualquer lugar por aí.

- Isto mesmo, o mais rápido possível, mas tome cuidado para não ser visto. Quer que eu vá junto com você?

- Não, imagine! Eu vou sozinho, não quero lhe meter nessa embrulhada, né?

Dito e feito. Pedro saiu de casa por volta das 20,00 hrs., com o firme propósito de "dispensar" o tal facão bem longe dali, de preferência, o levaria para o lado oposto de onde o tinha encontrado, que também ficava distante da sua residência. Porém, enquanto dirigia com aparente calma, ao passar próximo de uma base da polícia militar, lembrou-se de que um conhecido seu trabalhava ali, e decidiu contar-lhe o que estava acontecendo. O soldado ouviu e prometeu ajudá-lo naquela questão, contudo, sem dizer como o faria. Pediu que aguardasse um momento, entrou e logo saiu com um colega, e este pediu que lhe entregasse o facão. Foi o que fez, sem desconfiar de nada, até que foi convidado a acompanhá-los ao interior da base. Ali começaram as perguntas, mas suas respostas não os convenceram, e acabou sendo levado até o distrito.

- O que foi, agora, cara? Você me conhece há tanto tempo, e sabe que estou dizendo somente a verdade, ora!

- Desculpe, Pedro, mas estou apenas cumprindo com o meu dever! Não posso segurar essa barra para você, e lamento muito!

- Ah, tá! Eu sou muito burro, mesmo, viu! Eu também lamento ...

O fato é que acabou passando aquela noite no distrito policial, não preso, mas sentado num sofá, sem que tivesse condições nem de avisar à esposa, ou mesmo chamar um advogado para ajudá-lo. Só pela manhã foi dispensado pelo delegado, após um cansativo interrogatório, quando percebeu que ninguém estava acreditando em sua versão sobre o caso. Aquilo lhe deu muita dor de cabeça durante quase dois meses, pois sempre o chamavam para depor, mesmo com a prisão do assassino, o qual não reconheceu o facão como seu, dizendo sempre que tinha jogado aquele que utilizara dentro de um rio da região.

Até que um dia ele retornou para uma nova consulta no hospital, para saber os resultados daqueles exames que fizera naquele dia. E, quem é que estava lá, também? O mesmo "mineirinho" daquela vez, que ao vê-lo, veio correndo lhe dar um abraço, bastante alegre.

- Tudo bem com você, meu amigo? Está me parecendo que não, você está mais magro, bem abatido, não é? - foi dizendo o homem.

- Não é nada, não, meu caro! Estou apenas passando por um "perrengue" com a polícia, por causa de uma besteira atôa! - disse-lhe Pedro, narrando o que vinha acontecendo, em detalhes.

- Opa!Isto não é nada bom! Será que não posso ajudar você, hein? Quem sabe?

- Não, não vejo como, de jeito nenhum!

- Olha, tudo tem jeito, depende ... muita gente viu você me pagando o café e o almoço naquele dia, não é? Tinha vários motoristas de ambulância, as balconistas, a moça do caixa, e outros pacientes. Muitos comentaram comigo sobre a sua atitude, sabia? Não é sempre que alguém ajuda a um desconhecido, concorda comigo?

- Sim, mas a maioria já deve ter se esquecido daquilo! Não vejo como o senhor poderia me ajudar, nesse caso!

- Pois, tem sim! Por exemplo, eu posso depor lá na delegacia, dizendo que eu quis retribuir a sua gentileza comigo, o facão era meu, então resolvi colocá-lo no seu carro, uai! Fiquei com medo de não encontrar mais você. Aposto que consigo arranjar testemunhas que me viram fazendo isto!

- Certo, até que seria a minha salvação, mas não é verdade. O senhor poderia se dar mal, né?

- Ora, eu moro lá nos "cafundós" de Minas, duvido que lá eles irão me pegar, não acha?

- É verdade, mas o senhor faria isto por mim, mesmo?

- Meu amigo, uma mão lava a outra, as duas lavam a cara ...

Ronaldo Jose
Enviado por Ronaldo Jose em 16/04/2022
Código do texto: T7496237
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