O caso de Dona Gracinha do Quinca faiate.

O caso de Dona Gracinha do Quinca Faiate.

Amélia Luz

Santa Maria dos Pescadores era uma pequena cidade às margens do São Francisco composta por algumas estreitas ruas de terra, uma igreja, um coreto de sapé, alguns canteiros de sempre-viva e moça-velha colorindo a pracinha, tão pequena. Um velho ônibus (chamavam de perua) passava duas vezes por dia, (quando as estradas estavam boas). Um, indo para Santa Clara do Paraopeba e o outro vindo, num ritual que sempre repetia, pois o ponto de parada era no boteco do Zeca Pinguço, sempre cheio de amigos de prosa comprida e de copo cheio de aguardente além do tira-gosto do pescado.

A vida era muito simples, os casebres dos pescadores, a escola, a farmácia, o posto de saúde, o botequim, o rio, os canoeiros pescadores, a venda e a igreja.

"Seu" Vigário era a figura mais importante do povoado, era famoso pela gula e pelo costume de visitar as comadres paroquianas para pegar a "bóia" quentinha, abençoar as crianças e conversar com as patroas, sempre que os maridos estavam pescando.

Pela manhã Juquinha, filho de Dona Gracinha e seu Joaquim Faiate, (alcunha que recebera porque seu pai era alfaiate), levava café, broa e outras iguarias para agradar o padre. Joaquim Faiate herdara essa profissão que logo deixou por não receber os fiados das costuras que fazia, batendo máquina e soprando o fole para passar as roupas e entregá-las, amarradas sempre com embira seca da banana em papel rústico. Era muito desanimado. Filho único, vida mansa, gostava de ler um jornalzinho e uma boa prosa.

Depois que deixou a costura trabalhou de pedreiro, na roçada de pastos, na capina dos arrozais, mas não aguentava muito o batente da roça, era fraco, parecia tísico, fumava muito fumo de rolo, ajeitando o cigarro de palha entre os dedos rudes e acendendo-o, com o seu antigo isqueiro cilíndrico de cobre, uma relíquia que herdara de seu avô. O bigode amarelado que ele cofiava repetidamente mostrava o vício sem cura. Ela tinha o hábito de piscar um olho só quando contava os seus causos sempre aumentados.

Pegou então o ofício de pescador. Diziam que era muito mentiroso mesmo, um contador de "garganta" e se gabava de ser o melhor pescador do lugar e de ter o poder conversar até com os peixes das profundezas. Profetizava: - Vou ser o homem mais rico desse lugar!

Dona Gracinha lavava a roupa nas pedras do rio para a professora, para a própria casa e para o vigário. Todos os dias tinha trouxa de roupa limpa para levar e trouxa de roupa suja para trazer. Roupas engomadas seguiam para a igreja em cabides que as crianças levavam, no capricho. As peças alvejadas balançavam no varal sempre cheio de peças alvas como também coloridas.

Na horta cultivavam variedades de hortaliças, legumes, frutas no pomar e um “capadinho” engordando no chiqueiro para fartar a criançada.

O pesado “machambomba” estava sempre a fumegar na janela e as pilhas de roupas nos bancos de madeira da sala. Era mulher de fibra, cuidava da casa, do marido, dos filhos e ainda fazia a limpeza da igreja engomando as toalhas de renda dos altares e as roupas do vigário que eram impecáveis. Perfeita dona de casa e mãe.

Joaquim Faiate era homem de fé, frequentava as missas, rezas e ladainhas. Cuidava do cavalo do vigário dando pasto, milho, banho e arreio para que ele montasse e saísse pelas fazendas para fazer suas habituais visitas aos mais abastados de onde ele tirava recursos para manter a paróquia. Era membro da liga, católico de coração.

Certo dia Quinca Faiate saiu “canoano” para mais uma das suas pescarias, armado de rede, anzóis e caçamba. Ouvira contar do tal garimpo nas Minas Gerais e sem falar com ninguém saiu em busca de prosperidade. Era longe, muito longe, tinha lido num jornal e imaginou direitinho como chegar lá. Ele não tinha medo de estrada, confiava no seu Anjo da Guarda. Já estava cansado da vida de miséria que levava. Pegou a correnteza e desceu o leito manso do rio. Os dias passaram e Quinca Faiate não voltava, nem dele se tinha notícia. No boteco do Zeca Pinguço o falatório era grande, cada uma dava a sua opinião sobre o destino do pobre: tragado pela correnteza, morto pelos bandos do sertão ou perdido, doente, sem ter como voltar.

Dona Gracinha não demostrava muita preocupação, só dizia: - - “Distino é distino! Nóis num póde mudá as coisa! Só Deus”! Continuava na sua luta cuidando dos oito meninos e das tarefas da paróquia. O tempo passou e nada de notícias. Ninguém sabia do paradeiro do Joaquim. Sumiu, escafedeu-se sem deixar pista. Mas o que assustou mesmo e deu o que falar foi o fato de Dona Maria das Graças receber o vigário todos os dias para comer um pirão de cascudo que ela preparava com perfeição. O cheiro ia longe. Do boteco a turma ficara só na tocaia vigiando o vigário provar o tempero da comadre.

E o inevitável aconteceu. A inocente Dona Gracinha apareceu “buchuda”, a família ia aumentar para surpresa de todos. Quem seria o pai? Se o marido Quinca Faiate andava sumido? O fuxico corria de comadre a comadre, nas portas, nas janelas, no boteco, nas escadas da igreja. Meio avergonhada ela continuava da casa para igreja, da igreja para casa. O povão sempre nas portas e na hora certa vigiando as tramas que os dois faziam juntos. Ele levantara a batina arregaçava as calças e ia ao raso do rio sempre junto com ela, se refrescando. Os meninos queriam às vezes acompanhar mais ela não deixava:

- “Água de rio é traiçoeira crianças e ôceis pode iscurregá nas pedra e caí no fundão”.

Certo dia chamaram às pressas a Inhá Carola, a parteira. Dona Gracinha estava gorda, pesadona e a cegonha já sobrevoava a casa. O menino nasceu e cresceu forte ela dizia que quando o marido partiu ela tinha ficado "imbarrigada". Mas atrasô muito para nascê! O povo dizia que era filho de égua! Gestação prolongada. No batismo, o nome do pai, Joaquim Cordeiro, vulto Quinca Faiate (falecido).

Uma tarde sentada na calçada e olhando a rua ela viu um homem chegando de jeito conhecido. Estatelou o "zói". "Num pudia ser verdade"! Era ele, o finado, o tragado pelo rio com canoa e tudo, o sepultado no fundo das águas, o Quinca Faiate!

“E as portas do inferno não prevalecerão!” Gritou blasfemando, que nem o Sr. Vigário.

Chegou forte e sacudido, cabeça baixa, olhar sombrio, como se não visse ninguém, embora todo o arraial assistisse com curiosidade a sua volta. Descera de uma caminhonete último modelo, novinha e de luxo. Entrou na sua antiga casa, tão pobre como a deixara. Bem vestido, calças de linho engomadas, camisa de cambraia, chapéu panamá e botas de couro engraxadas no capricho. Relógio de bolso no colete com corrente de ouro puro. Olhou para a mulher e para o menino.

Mansamente perguntou: - Ele já sabe rezar missa? Espantada Dona Gracinha não sabia o que dizer tal o susto!

Acho que ele vai ter que rezar a sua missa de corpo presente, de sétimo dia, de mês e até de ano, como também daquele sujeito desalmado fantasiado de padreco.

Irônico, olhou dentro dos olhos da mulher e falou com autoridade:

- Onde está o “maldito? ” Tá pescando cachimbau ou tá com anzol armado pra pescar traíra e fazer a destruição das famílias da paróquia? É por ser um homem de Deus que respeito a todos e não faço desgraça! Gritou irado! Saiu em disparada, rumou para a igreja e não mais encontrou o vigário. Nem uma pista deixou. Algumas carolas ainda rezavam e diziam na inocência que ele tinha sido “assunto” aos céus de tão “bão hôme” que era, não fazia mal a ninguém!

De tão esperto dias depois o vigário mandou que espalhassem a notícia da sua morte, alvejado por um justiceiro do sertão, que havia tomado conhecimento do caso. Muitos acreditaram e lamentaram o acontecido.

Quinca Faiate ou Quinca Pescador ou Sr. Joaquim Cordeiro, agora, endinheirado e com boa situação na vida, o que na verdade veio a acontecer, foi a inesperada prosperidade do antigo e pobre pescador. Embrenhou-se sertão a dentro com um bando de mineiros/garimpeiros, caçadores de ouro e jazidas, pedras preciosas mesmo, num veio inesgotável de riquezas. Havia por sorte, descoberto um valioso diamante. Raro e valioso. Voltava rico para casa radiante para contar a todos a grande novidade. Não esperava a traição da própria mulher com o seu maior amigo a quem entregara a família ao sair para esta aventura.

Tempos depois, construiu uma nova casa, montou negócio rendoso, melhorou a vida de todos do arraial, sendo aclamado como o salvador de Santa Rita dos Pescadores. Deu melhores condições para a ex-mulher, aceitou o filho do vigário como “afilhado”, separou-se definitivamente de Dona Gracinha que arrependida praguejava a vida por ter sido enganada e seduzida pelo vigário desaparecido.

Candidatou-se Deputado Estadual pela região ribeirinha a mais carente de recursos, ficou famoso. Eleito construiu uma barragem onde pode garantir emprego e novas formas de sobrevivência sustentável, garantindo os bens naturais para o município. Hoje conhecido como o mais próspero da região, Santa Maria dos Pescadores foi elevada a cidade independente, desenvolvendo a cada dia. Quinca Faiate construiu escolas, hospitais, creches, implementou o comércio e beneficiou a zona rural com irrigação trazendo fartura com o plantio certo: semente na terra, colheita na tulha e dinheiro no bolso, seu refrão. Construiu estradas, tornou-se famoso, rico e famoso. Quem diria!!! O pobretão do Quinca Cordeiro, tão preguiçoso e fraco virou um leão.

Sempre bem vestido, perfumado a água de cheiro, discursava nas campanhas e prometia e cumpria, cumpria e prometia: era mesmo de palavra. O povo aplaudia e confiava, era leal e verdadeiro. Enfim um político honesto, preocupado com o povo, com a prosperidade de todos e com os bens naturais. Arrependida, Dona Gracinha chorava pelos cantos, rezando ainda os seus terços de joelhos, conta a conta passando pelos dedos cansados, pedindo perdão a Deus pelos seus pecados. Em dia de confissão era a primeira a ajoelhar-se no confessionário em busca de salvação para a sua alma pesada. O novo vigário era respeitado e amado por todos, verdadeiro servo do Senhor, incapaz de desobedecer aos preceitos da igreja.

Seguindo firme a Dona Gracinha vivia esperando a graça maior dos céus criando os seus nove filhos “tudo menino-hôme” que teriam na certa outro destino, guiados pelas mãos generosas do Deputado Joaquim Cordeiro, o mais votado nas últimas eleições. Já diziam que seria Governador em breve pela fama alcançada. Não saia da capital ao lado de amigos influentes e políticos de boa fama, seus novos importantes companheiros.

E ainda dizem por aí que... “Dinheiro não traz felicidade” Dona Gracinha é que o diga, nada lhe faltava morando em casa nova e confortável com os oito filhos do Deputado Joaquim Cordeiro e o caçulinha também, apelidado de “Vigarinho.”