O charque ou a charque, como alguns nordestinos denominam, são mantas de carne bovina, caprina, suína ou qualquer outra do gênero; desidratadas com sal, têm como objetivo, mantê-las próprias para o consumo por mais tempo. Alguns historiadores nos informam que o charque, ou a charque, teve sua origem nos Andes, e que a denominação “charque” origina-se da língua quíchua (charki) ou da língua araucano (charqui) para significar carne salgada ou seca ao sol.
O certo é que a técnica já era utilizada desde a era pré-colombiana pelos povos que habitavam os altiplanos andinos. Porém, o que os historiadores não explicam, é de que maneira essa técnica chegou às Capitanias do Siará (atual Estado do Ceará) e Rio Grande (atual R.G. do Norte) por volta do Século XVII. Também não explicam como é e porque razão um português de nome José Pinto Martins, com a idade de 22 anos, saiu da Vila de Santa Cruz de Aracati, atual Aracati, cidade do Ceará e grande produtora de charque, foi dar com os costados nas margens do Arroio Pelotas, na Freguesia de São Francisco de Paula (mais tarde Pelotas), Capitania de São Pedro do Rio Grande, atual Rio Grande do Sul; percorrendo sem quê nem pra quê, uma distância de mais de 4.200 km, em pleno ano de 1779, para ensinar aos estancieiros daquela província, a técnica de charquear carne.
Pois bem! É essa lacuna que pretendemos preencher através da história da família de um antigo morador de Aracati, um senhor de mais ou menos uns 95 anos (ele não lembra com exatidão da idade), cujo nome de família ele disse ser: Martinho.
Entre risos e tosses causadas pela fumaça inalada de um cachimbo mau cheiroso, esse senhor começou o relato dizendo: “Meu fio, cearense é iguar ave de arribação, num sabe? Voa pra todo lugá! E essa história qui o charque, nossa carne seca, foi lá prus gaúcho, levada pur um purtuguês. É cunversa pra boi drumí, visse? O causo se sucedeu anssim…” - Depois que o ancião emborcou uma talagada de mata-bicho, desfiou a seguinte história, ou estória! Eu sou apenas o mensageiro. Mesmo porque, segundo esse mesmo senhor, toda história tem três verdades: “A tua verdade, a minha verdade e a verdade verdadeira!”
Conta-se que um aracatiense, um iletrado mameluco de olhos engatinhados e bem apessoado, trabalhava no fabrico de carne-de-sol, e que nas horas vagas, era galanteador e exímio tocador de violão. Num dia, em uma festa de São João no terreiro da fazenda onde trabalhava, trocou intensos olhares com a filha do patrão.
Dizem que a moça, espevitada e dissoluta, não se fez de rogada. Encantou-se com o músico, e às escondidas, se encontrava com o moço. Não demorou e a barriga cresceu. O fazendeiro, indignado, internou a filha num convento e ordenou aos feitores que lhe trouxessem, num embornal, a cabeça do safardana que se atrevera a desonrar a sua única e preciosa filha.
O charqueador para conservar a cabeça sobre os largos ombros, mergulhou na caatinga e foi boiar em Natal, Capital da Província do Rio Grande do Norte. De lá, conseguiu embarcar num navio e foi aportar em São Salvador da Bahia, Sede da Capitania Real da Bahia. Com os algozes no seu encalço, sempre fugindo, conseguiu chegar à Capitania Real de São Paulo, onde os perseguidores perderam sua pista. Por fim, chegou à Capitania de São Pedro do Rio Grande, onde embrenhou-se província adentro, até chegar ao Arroio Pelotas, e lá, ficou sovrevivendo de pequenos expedientes, aqui e ali.
Um dia, trabalhando numa estância, percebeu que os vaqueiros, para conservar a carne, mergulhavam pedaços em banha de porco ou assavam, numa espécie de moquém. Um processo trabalhoso e pouco eficiente. Como o trabalho do aracatiense, sem qualificação nenhuma, era quase igual ao dos escravos, certa feita, com o chapéu rodando nas mãos e cabeça encolhida nos ombros como se fosse um cágado, ousou aproximar-se do estancieiro para pedir permissão para falar.
O orgulhoso gaúcho, de cima do alpendre da Estância, olhou para aquele ser insignificante, encolhido como um carrapato à sua frente, bateu com o rebenque no cano da bota, desceu os degraus como um rei e meneou levemente a cabeça em sinal de permissão. Depois, saiu andando com o carrapato atrás dele, tentando se fazer ouvir.
-Apois, patrão! Se vossa mercê me apermití, daquela novía qui foi abatida, eu posso fazê um pedaço de manta de charque. Pedacim pititito, só prá mostrá pra vosmecê!
-Charque? E que diabos é isso? E pra mode de quê, índio?
Se curvando o mais que pôde pela ousadia de ficar de frente para o fazendeiro, o cearense, submisso, conseguiu olhar nos olhos do estancieiro, balbuciando:
-Meu patrão, charque é u'a carne qui adispois de sargada e seca, dura mais de mês sem percisá butá na banha do porco, num sabe?
-Deixe de bazófia, índio! Onde já se viu… Carne ficar fora da lata de banha de porco por mais de trinta dias sem apodrecer? Raspe daqui que tenho mais o que fazer!
Reunindo os últimos resquícios de humildade e uma tonelada de coragem, o mameluco balbuciou:
-Patrão, me dêxe fazê! Vossa mercê num gostano, bota eu no tronco!
O resto do causo, os historiadores já sabem. O estancieiro tornou-se um dos maiores produtores de charque da Freguesia de São Francisco de Paula, e a Captania de São Pedro do Rio Grande passou a exportar charque para todo o Brasil, dando início ao “Circulo do Charque” que durou até o fim da escravidão; vez que eram os escravos que trabalhavam no fabrico do charque, ou a charque, ou a carne seca, ou ainda, a carne-de-sol.
Moral da história, segundo o velho aracatiense, foi um cearense mameluco e analfabeto, galanteador e tocador de violão, que ensinou a gauchada a charquear a carne, dando origem às famosas charqueadas rio-grandenses.
OBS:
Um aviso aos navegantes: Como eu disse no início, sou apenas um contador de "causo'', não um historiador.
João Pessoa-Mar/2022
Arigó