Suicídio Ocasional
“Os sonhos eram mais variados do que podia recordar, mas o desfecho, esse era sempre igual. Subitamente me via despencando do topo de um arranha céu, cada segundo cruzando com diferentes pessoas, no interior do prédio, diretas do seu andar, compenetradas no trabalho a ponto de, sequer, observar minha condição. Meu corpo se aproximava do solo com incrível celeridade. Cada milésimo de segundo testemunhava a vida sendo gradativamente drenada e quando enfim contemplaria a finitude da existência, despertava antes do choque, totalmente ileso.”
Seu nome era João de Santo Cristo. Qualquer semelhança com o personagem chave da música Faroeste Caboclo, da Legião Urbana, não era fruto do mero acaso, afinal a banda liderada por Renato Russo despontava como a favorita de sua mãe, uma eterna entusiasta da Turma da Colina e do rock nacional anos 80.
João de Santo Cristo gastava horas tentando decifrar o enigma por trás do excêntrico devaneio, todas as noites insistindo em profanar seu descanso. Talvez, a cena incessantemente reprisada, tivesse alguma relação com seu ofício de zelador. Ao contrário da ilusão projetada pelo inconsciente, não mantinha vínculo profissional com um suntuoso prédio, repleto de vidraças espelhadas, abrigando verdadeiras sumidades do ramo jurídico ou do mercado financeiro.
O Santo Cristo trabalhava em um prédio mais mirrado, um antiquado empreendimento de cinco andares, servido de residência para dezenas de famílias classe média. Esse aspecto fazia toda dubiez despertar sobressaltos inquietantes: se jamais trabalhara (quiçá sequer havia entrado) em uma edificação suspensa e ornada por caixilho com vidros, os sonhos não poderiam mesmo representar uma situação de iminente perigo. Para assepsiar as poucas vidraças sob sua responsabilidade, não precisava arriscar a pele com elevadores externos, plataformas aéreas e tampouco recorrer a técnicas verticais de rapel.
Quem sabe até, aquela queda não pudesse representar uma inanição cognitiva, uma sugestão intrinsecamente fulcral para proporcionar uma fuga, abortando a realidade fatídica. Nem sempre as pessoas conseguem se tornar aquilo que queriam ser quando crescessem e, dessa vez, o Santo Cristo não hesitaria em cumprir sua sina, livrando-se de toda sofreguidão vital.
Um disparo certeiro na cabeça ou uma corda amarrada sobre o pescoço? Conforme o desvaio sugeria, precisava saltar para alcançar a liberdade. Para, então, concretizar seu anseio, ocupou o corredor do quinto e último andar do residencial. Em frente à moldura, ouvia os gemidos das lufadas de vento ainda esvoaçando seus finos cabelos compridos. O zelador utilizou um banco para, em segurança, montar no peitoril da janela. Tudo precisava ser devidamente ensaiado, pensou, especialmente para parecer um acidente. Estava pronto para morrer, ainda assim rechaçava comentários do tipo, “a depressão o matou”, “o Santo Cristo se entregou, não foi forte o bastante”, “agora ele irá pro inferno”. Preferia mesmo suscitar a piedade coletiva e talvez seu jogo de cena pudesse ludibriar o Criador.
Com um pano posicionado na mão direita e um produto do tipo “limpa vidros” na outra, seus pés propositalmente deslizavam sobre a travessa inferior dos marcos das janelas. – Estou perdendo o equilíbrio, alguém me ajude, acho que vou cair – esgoelava, mais um teatro barato, necessário para tornar a mentira convincente.
O pesadelo agora era real. De olhos fechados, o Santo Cristo sentia a força da gravidade sorver seu corpo para baixo. Em questão de segundos, enfim, estaria livre, não havendo tanto tempo, como em seus devaneios, para serenar com a morte... uma morte que como nos pesadelos, na realidade por detalhes, não aconteceu!
Tudo por causa do famigerado vizinho do primeiro andar acima do térreo, que prevendo a possibilidade de alguém tentar ceifar a vida nos próximos dias, expurgando sua existência do mundo, mudou toda estrutura do toldo, novo o bastante para atenuar a queda. Embora a lona não tenha se esgarçado por completo, a estrutura metálica cedeu diante do peso multiplicado, fazendo o Santo Cristo rolar por alguns centímetros até seu corpo ser projetado sobre o teto de um carro antigo, estacionado em frente ao prédio.
Essa é a triste sina de João de Santo Cristo, sendo-lhe outorgada a vida que ele já não queria mais. Ao menos aqueles sonhos, reais o bastante para desencadear pensamentos suicidas ocasionais, jamais voltaram a perturbar seu repouso. Uma mentira egoica, contada diversas vezes, pode levar todos (ou quase) a rememorar o final feliz de um acidente com elementos suficientes o bastante para um desfecho trágico. Quando se trata do passado umbroso, todo mundo manipula os acontecimentos, evocando a ficção.