Um mais doido que o outro...
Seu Isidoro gosta de tomar umas pingas mas isso não seria problema se ele não tivesse o costume de ver coisas que ninguém mais vê.
Morador antigo do Povoado Contendas é conhecido de quase todo mundo, mas tem amizade de fé mesmo é com o Senhor Abdias do açougue.
São vizinhos de propriedades e casados com duas irmãs. A Dona Maria das Graças sua esposa é três anos mais velha que Dona Dolores a esposa do açougueiro.
Compadres de igreja e amigos duma vida toda, sempre que podem estão juntos proseando ou trocando experiências.
Seu Abdias, apesar de mais novo, já passou dos sessenta e cinco anos e há mais de dez deixou de beber. Agricultor aposentado, hoje vive apenas de tocar o velho açougue com a ajuda do filho mais velho que não quis estudar.
Seu Isidoro, com mais de setenta anos de idade, ainda gosta de tomar umas cachaças e vez em quando perde as contas começando a arengar.
Teimoso feito uma mula empacada quando entra numa peleja chega a tirar faísca de facão para mostrar que é homem de uma palavra só. Em dias como esses só chamando seu Abdias pra acalmar o valentão.
Todo o fuzuê que ele arruma envolve uma estória que conta e ninguém acredita. O povo já sabe da sua fama e gosta de atiçar suas rizingas só pra ver o velho fora de si.
Puxam papo e pagam pinga para ver o lavrador arreliado. Depois que ele conta suas lorotas começam a fazer troça. Ele não aguenta. Puxa o facão do quarto e começa a dar piruetas como se estivesse dançando um velho maracatu rural.
As pessoas acham graça. Mas logo ficam preocupadas e correm para buscar o Senhor Abdias. E lá se vem o açougueiro fazer o resgate.
Afinal, "quem tem amigo leal não perde a moral".
Da última vez que o resgate de Seu Isidoro foi solicitado, o trabalho foi dobrado.
O velho lavrador tinha tomado umas três doses a mais e cismou que a caipora o enganara, pois não sabia mais onde estava.
Entre o bar do povoado e o sítio onde mora tem um canavial imenso recém-colhido e os brotos das touceiras de cana estão com aproximadamente meio metro de altura. Uma lindeza de se ver.
À tarde com o sol ainda quente o Senhor Isidoro tentou voltar para casa mas não conseguiu. Cismou que o canavial tremulando com o vento era a maré que estava enchendo.
Sentou-se num barranco debaixo duma mangabeira e ficou lá esperando a maré baixar...
Pegou no sono. Dormiu umas duas horas e quando acordou demorou a reconhecer onde estava.
Mas logo a vontade de tomar uma cachaça outra vez o fez voltar para o bar onde estivera antes.
Quando chegou na calçada já os bebuns ali dentro começaram a tirar-lhe o sarro.
___ Oxente Seu Isidoro! Dona das Graças botou o Senhor pra correr foi?
O lavrador então deu de contar que voltara para esperar a maré baixar porque pras bandas de casa o caminho era só água...
Os homens olharam uns para os outros e caíram na risada.
Seu Isidoro não gostou! Ficou valente! Tirou o facão da bainha e chamou uns dois para arreliar no terreiro.
Mas o povo já o conhece demais. Sabem que é homem de bem. E enquanto ele rodopiava riscando o chão do terreiro do bar com o facão, correram pra buscar Seu Abdias. E quando este chegou já foi gritando no tom de Maracatu:
___ Oh! Boa noite pra quem é de boa noite!!
Seu Isidoro parou o facão no ar. Olhou pra o amigo e disse:
___ Oxente Cumpadi! Adonde o Senhor achou um barco pra chegar inté aqui sem se moiar?
O velho Abdias respondeu:
___ Hômi dexa de cunversa! O Sinhô num viu que a água já iscuou não foi?
___ E foi Cumpadi! Intão já dá pra modi a gente ir andando mermo né?
___ Dá sim meu Cumpadi! E é mior a gente ir logo antes que a maré suba di novo e as muié venha buscar nóis!
Seu Isidoro não fez feiúra, guardou o facão, pegou no ombro do amigo e foi cambaleando pela estrada.
Os homens que estavam no bar conheciam o Senhor Abdias e sabiam da sua reputação de homem sério. Por isso ficaram na dúvida se realmente a estória da maré era só lorota.
Resolveram seguir os amigos de longe...
Quando chegaram no canavial pararam ao ouvir os dois amigos conversando:
___ Ói aí Cumpadi! A maré cheinha de novo! Disse seu Isidoro.
___ Se preocupa não Cumpadi! Nós sabe nadar! Vambora! Respondeu seu Abdias.
E pra cortar caminho, lá se foram os dois amigos afastando com os braços o painço de cana pela cintura, como se estivessem nadando.
Os homens voltaram para o bar inconformados!
Entraram no salão dizendo que era um mais doido que o outro.
Mas o velho Juca, dono do bar, respondeu:
___ Dois doidos não! Dois amigos de verdade!
Na nossa idade meus rapazes, nós já aprendemos a valorizar a amizade e sabemos que os maiores sinais de respeito e consideração é não desmentir os amigos nem contrariar os mais velhos.
Adriribeiro/@adri.poesias