VAGAS DISTRAÇÕES
*Por Herick LImoni
Naquela manhã chuvosa de janeiro, encontraram-se por volta das seis horas e trinta minutos, como costumavam fazer rotineiramente. Cumprimentaram-se ritualisticamente com um bom dia e um aperto de mãos. Depois seguiram, como sempre, a pé a caminho da estação de metrô. Neste trajeto quase nunca se falavam. Cada um deles ia, distraidamente, com o aparelho celular em mãos e fones nos ouvidos. Cada qual em seu universo particular.
Chegaram à estação. Não demorou muito e a composição chegou. Como era a estação inicial, não houve dificuldades em conseguirem assentos. Sentaram-se um ao lado do outro. Dali até a estação onde desceriam seriam pouco mais de 15 minutos. No caminho a composição foi enchendo. Na terceira estação já não havia mais assentos vazios. Muitos viajavam em pé. Apesar de todas as diferenças, de todas as peculiaridades e particularidades de cada um daqueles passageiros, não era difícil notar uma semelhança entre muitos: a grande maioria estava ali, em pé ou sentado, hipnotizada pela tela do aparelho celular. Alguns ouviam música. Outros assistiam a vídeos. Alguns outros enviavam mensagens. Havia aqueles que se distraiam com algum tipo de jogo. Pouquíssimos eram os que não estavam nesse transe. Estavam dormindo.
Carlos e Maria Eduarda trabalhavam em uma empresa de biotecnologia. Ele, biotecnólogo, conseguiu esse emprego há oito anos, quando havia acabado de se formar. Ela, geneticista, foi contratada a cerca de seis anos, após a indicação de um parente que lá trabalhava. Durante esses últimos seis anos ambos sempre iam juntos para o trabalho. Eram praticamente vizinhos, cujas famílias eram antigas e tradicionais no bairro. Porém, só se conheceram depois que passaram a trabalhar juntos.
Chegando à estação destino ele se levantou e posicionou de pé, aguardando o metrô parar. Ela, distraída, permaneceu sentada, e se Carlos não a tivesse chamado ela teria passado do ponto. Ambos desceram em meio àquela multidão de pessoas que, apesar de juntas, quase que unidas em um mesmo espaço, encontravam-se, ao fim e ao cabo, solitárias, presas cada qual em seu universo particular. A marcha seguia em frente, frenética. Passos apressados. Todos pareciam estar atrasados. Subiram as escadas e saíram da estação. Mais cinco minutos de caminhada e chegavam à empresa.
Tão logo entraram, ela cumprimentou o segurança da portaria com um aceno de mão, e ele com um menear de cabeça. Em razão do sigilo profissional, a empresa proibia a utilização de qualquer tipo de aparelho eletrônico durante o horário de trabalho. Para além da distração causada por tais equipamentos e que poderia resultar em eventual prejuízo à segurança dos processos, a espionagem industrial também era motivo de preocupação. Ambos colocaram seus pertences nos armários dos vestiários e como sempre faziam, deixaram seus aparelhos conectados à tomada, carregando. Logo após, vestiram seus macacões brancos, colocaram seus equipamentos de proteção e seguiram para suas respectivas áreas de trabalho. Só se veriam novamente ao final do dia.
O dia transcorria normalmente. O silêncio característico imperava na empresa. Quase todos os 117 funcionários trabalhavam atentos. Vários deles se debruçavam sobre as telas dos modernos computadores, fazendo cálculos difíceis e complexos. Outros examinavam algo no microscópio. Outros ainda faziam experimentos em provetas, tubos de ensaio e outros recipientes próprios. Carlos era um destes últimos. Altamente concentrado, nem de longe parecia aquele indivíduo que poucas horas antes estava completamente magnetizado por seu aparelho celular.
Após o almoço, por volta das 14:30 horas, um som estridente interrompeu a atmosfera de silêncio. O barulho da sirene irrompeu e assustou a todos. Era o alarme de incêndio. Apesar daquele sinal sonoro representar uma situação de perigo, não houve desespero. O treinamento para aquele tipo de situação propiciou uma saída segura e tranquila para todos. Aos poucos, todos foram se reunindo no pátio. Carlos e Maria Eduarda se encontraram novamente, dessa vez mais cedo que o habitual.
- O que será que aconteceu? Perguntou ela.
- Pelo que ouvi dizer enquanto descia, parece que o incêndio foi no depósito quatro. Mas disseram que os brigadistas já estão no local controlando a situação.
- Nossa! O depósito quatro não é aquele onde são guardados os produtos químicos?
- Esse mesmo.
- Deus queira que não aconteça nada de mais grave. Alguns daqueles produtos, se
inalados, podem causar problemas sérios.
- É verdade. Mas a brigada de incêndio é preparada para lidar com esse tipo de situação. Sejamos otimistas.
De fato a situação foi rápida e seguramente controlada. Contudo, em razão do pequeno - mas possível - risco de contaminação por inalação da fumaça tóxica, todos os funcionários foram liberados, anúncio que foi feito pelo CEO da empresa ainda no pátio. Logo após todos se dirigiram aos vestiários a fim de trocar de roupas e pegar seus pertences. Carlos e Maria Eduarda combinaram de se encontrar em dez minutos, próximo à portaria. Ele chegou primeiro, porém não teve de aguardar muito, Logo após ela chegou. Seguiram rumo à estação.
No caminho conversaram bastante, como nunca haviam feito antes. Inicialmente a conversa se concentrou no episódio do incêndio, o qual foi rapidamente superado. Sem perceber já estavam fazendo observações, muitas delas não elogiosas, sobre os chefes e alguns colegas de trabalho. Descobriram que ambos estavam assistindo à mesma série, e tal descoberta rendeu bons minutos de prosa. Chegaram à estação e, como não era horário de pico, o trem demoraria um pouco mais para chegar, mas eles não se importaram. O atraso era até bem vindo, pois a conversa entre ambos transcorria de forma agradável. Maria Eduarda ficou sabendo que ele era dois anos mais velho que ela. Descobriram que torciam para o mesmo time e ambos – ela mais entusiasticamente do que ele – disseram acreditar que esse ano seria diferente, e que o time finalmente sairia daquela situação vexatória que se encontrava já há alguns anos. Coincidentemente ficaram sabendo durante a conversa que no ano anterior haviam viajado para João Pessoa durante as férias. Discorreram sobre o magnífico pôr-do-sol na praia do Jacaré, sobre as águas calmas da famosa praia de Tambaú e do cenário de cartão-postal da praia do Coqueirinho, com suas lindas palmeiras, cujas folhas sacudiam ao sabor dos ventos. Dali a conversa convergiu para esse tema. Falaram dos locais que já conheciam e dos quais ainda sonhavam conhecer. Descobriram que adoravam viajar e logo passaram a planejar uma viagem juntos. Nesse pequeno intervalo de quase uma hora conversaram infinitamente mais do que haviam conversado em todos os seis anos em que um fazia companhia pro outro durante o trajeto de ida e volta ao trabalho. Ficaram evidentes muitas afinidades entre eles, as quais só vêm à tona durante esse ato que é intrínseco aos seres humanos. Muitas das más impressões que um tinha a respeito do outro se dissiparam e, pela primeira vez, puderam notar virtudes que estavam até então encobertas pela falta de atenção recíproca.
O trem finalmente chegou e dessa vez não havia assentos vazios. Em pé, puderam observar que quase todas as pessoas que ali se encontravam traziam nas mãos seus aparelhos celulares, os quais atraiam os olhares dos donos como a luz atrai os insetos em noites escuras. E foi só nesse momento que perceberam que haviam esquecido os seus aparelhos na empresa. Ainda preocupados com a evacuação, acabaram por esquecê-los na tomada. E após essa constatação deram boas risadas, e seguiram viagem observando, como nunca antes, o comportamento quase maquinal das pessoas diante de tais equipamentos. Enfim chegaram na estação destino. Desceram e caminharam até próximo de casa, conversando animadamente. Tão logo chegaram, despediram-se.
Na manhã seguinte encontraram-se no local e horário de sempre. Desta vez, cumprimentaram-se com um beijo carinhoso no rosto. Seguiram conversando e observando tudo por onde passavam. Os olhos deles brilhavam de uma forma diferente. Tudo estava diferente. Mais leve, mais alegre. Seus dias nunca mais foram os mesmos. E numa dessas conversas diárias, prometeram que quando tivessem filhos iriam educá-los de uma forma que não os tornassem tão dependentes de qualquer tipo de equipamento. A vida, agora, finalmente fazia sentido.
*Mestre e Bacharel em Administração de Empresas, escritor amador e entusiasta da literatura.
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