As Anotações

Naquela manhã, mais precisamente às 09h20min, Apolo leu clandestinamente as anotações de seu médico e ficou muito perturbado com o que descobriu sobre si mesmo. Ele esperava realmente que tivesse problemas, mas não tantos. O pobre funcionário do Banco do Brasil estava a caminho do trabalho quando começou a passar freneticamente os olhos pelas páginas do caderno que acabara de roubar. Suas mãos suavam, seu passo ficou apressado, ele quase foi atropelado pelo menos duas vezes antes de conseguir chegar ao prédio. Apolo estava bastante arrependido do que fez.

Era para ser apenas mais uma manhã de segunda-feira e que deveria começar como todas as outras segundas desde que Apolo resolveu fazer terapia. E vale dizer que ele só começou a análise depois de muita insistência de seus amigos, “você anda muito cansado”, dos seus pais, “você anda muito estressado”, e da sua namorada, “se você não der um jeito nessas suas manias, pode esquecer que eu existo!”. Apolo se sentia, de fato, um pouco cansado, estressado e admitia ter apenas algumas manias, mas não achava necessário todo aquele alarde dos outros. Mas se era para ter de volta a sua paz, ele pensou, “vou começar logo isso, pegar meu atestado de são e continuar com a minha vida totalmente normal”. Apolo podia até não dar muito crédito para os problemas da mente, mas era completamente hipocondríaco. Precisava de remédios para surdez, alergias, gastrite, sinusite, dor nas costas, dor de cabeça e no ciático, mesmo que ele nem soubesse direito onde ficava o tal “ciático”. A bem da verdade era que o homem não tinha nem metade desses problemas, mas acreditava que tinha. Tomar remédios desnecessários era uma das manias que ele possuía e não admitia.

“Esse negócio de psicólogo é tudo balela”, Apolo pensava. No entanto, mal foram necessárias duas sessões e ele já achava que tinha transtorno bipolar, paranoide, borderline, esquizofrenia e somatização, esse último Apolo não sabia a definição, mas dentre todos era o problema mais provável dele ter. Entretanto, a grande questão era: não tem como ser hipocondríaco com remédios psiquiátricos, não dava para comprar um clonazepam na farmácia como se compra uma dipirona. Então Apolo começou a acreditar que seu terapeuta estava escondendo seus problemas reais, “não é possível que esse cara não viu os sintomas”, pensou – e sabe-se lá quais sintomas eram esses.

Toda segunda-feira, de 08h às 09h, nosso funcionário público tinha sessões de terapia, às 10h começa seu horário de trabalho, e de 09h30min às 10h era o tempo que ele ficava sentado em um banco na Praça da República (antigo Campo de Santana), pensando em todos os problemas psicológicos que tinha, mas que seu terapeuta escondia dele. Um belo dia ele tomou uma decisão radical: roubar o caderno de anotações, só assim poderia saber o que seu terapeuta realmente achava do seu caso. Então, numa dessas segundas, ao final da sessão, Apolo aproveitou uma distração do psicólogo, passou a mão em um caderno vermelho embaixo de uma bolsa, deu um tchau apressado para o outro homem e saiu correndo do prédio, “hoje eu descubro o que esse cara esconde de mim”, pensou. Mas antes de começar a ler, ele parou e olhou o relógio, 09h10min, então começou a andar na direção da Praça da República, como de costume, enquanto folheava o caderno à procura de seu nome, sem se importar com o que poderia estar escrito sobre outros pacientes. Não demorou muito e Apolo encontrou as anotações do paciente “A. D. Nicomedes”, então estacou e se preparou para o pior. Nas primeiras linhas não havia nada demais e ele já estava começando a pensar que até nas anotações o terapeuta estava mentindo, no entanto, ao avançar nas datas, os problemas apareceram, de forma detalhada, em uma lista maior do que esperava, “paciente com sintomas delirantes, psicóticos, de comportamento imprevisível, agressivo, antissocial; passível de internação” entre outras coisas, talvez piores.

Assustado e sem saber muito bem o que fazer, Apolo foi automaticamente para sua agência bancaria na rua Buenos Aires, 264. “Não pode ser isso tudo, esse psicólogo deve estar louco. Eu preciso trabalhar e esquecer disso”, mas ele não esqueceu. Deram 16h e nosso pobre Apolo Diodoro Nicomedes não estava tão mais calmo do que horas antes, “eu vou para casa, depois de uma noite de sono eu esqueço isso e devolvo esse maldito caderno na próxima sessão”, ele pensou, antes de sair do banco. Já em casa, à noite, Apolo se deitou às 22h, como de costume, mas deram 02h, 03h, 04h da madrugada e nada dele dormir, agora o Clonazepam seria útil. Depois de ler o que continha no caderno, a cada dia da semana o pobre coitado do Sr. Nicomedes demonstrava um comportamento diferente que condizia com seus problemas mentais.

Na terça ele achou ter visto um gato preto de gravata andando por cima do seu muro, mas quando olhou novamente o gato não estava mais lá. Então achou que estava delirando, porém, nada mais era que o gato da vizinha que tinha acabado de voltar do petshop. Na quarta, quando atendeu o telefonema de uma atendente de telemarketing, ele percebeu que amanhecera sem conseguir falar direito, sem saber que na noite anterior havia cominho na comida que encomendou para o jantar, que resultou em uma leve reação alérgica deixando-o com a boca um pouco inchada. Logo depois do telefonema, ele foi até a varanda checar a caixa de correio e viu passar na rua um de seus vizinhos, tentou cumprimentar, deu tchau, mas o homem o olhou estranho e saiu andando, Apolo então concluiu que estava ficando psicótico. Porém o outro homem não havia entendido uma vírgula do que seu vizinho tentou dizer e a bem da verdade era que ele não tinha esquecido a briga estapafúrdia que ambos tiveram na festa junina, um mês atrás, por causa de um milho cozido. Da briga Apolo não lembrou, mas a boca inchada ele percebeu quando foi ao banheiro e se viu no espelho, foi então que decidiu olhar os ingredientes do que comeu no jantar e descobriu que precisava de um antialérgico. Na quinta-feira, durante seu horário de trabalho no Banco do Brasil, um de seus colegas levou um tropeção e deixou cair café muito quente na roupa de Apolo e esse, por consequência, teve um “ataque dos nervos”, falou alto, xingou o colega e foi mandado para casa. Então achou que seu comportamento estava mesmo imprevisível e agressivo. Nesse caso talvez ele tivesse razão, ou apenas muito estressado pelo que já aconteceu durante aquela semana e receber um banho de café quente não deve ser uma das melhores sensações.

Não dava para esperar até a semana seguinte. Amanheceu a sexta-feira e às 07h ele ligou para a clínica dizendo que precisava urgentemente falar com seu terapeuta e se poderia, inclusive, ser naquele mesmo dia. Sem entender do que se tratava, ou o tamanho da urgência, a atendente foi até o responsável por toda essa confusão – pelo menos na concepção de Apolo – e explicou a ligação. Depois de uns 2min, voltou ao telefone e confirmou uma consulta para ele às 08h:30. Antes mesmo desse horário, o assustado bancário já estava na sala de espera, balançando a perna, esfregando as mãos suadas de nervoso uma na outra, enquanto olhava para o relógio em seu pulso a cada 10 segundos. Quando finalmente deu o horário de sua sessão, Apolo entrou no consultório esbaforido e meio pálido, sentou-se no sofá e ficou olhando para a cara do outro homem a sua frente. Depois de quase 3min de silêncio o psicólogo perguntou o que de tão grave acontecia para levá-lo até ali, três dias mais cedo. E o apavorado paciente começou a contar tudo o que aconteceu com ele nesses últimos três dias, pelo menos o que ele achava que aconteceu.

Quando terminou o relato, passou-se um minuto mais ou menos enquanto o terapeuta olhava para Apolo e este já estava a ponto de reclamar quando o outro começou a procurar seu caderno de anotações, provavelmente na intenção de verificar se tinha notado algum desses sintomas antes, foi então que o bancário tirou o caderno de capa vermelha de sua pasta e disse “é isso que você está procurando?! Eu já li tudo, já sei quem sou”. Levou um tempo até que o psicólogo entendesse do que se tratava e que seu paciente havia roubado seu caderno de anotações. Mas Apolo interrompeu seu raciocínio novamente e disse “Aí, na página 30, o paciente da fitinha verde, eu já li tudo”, o terapeuta então abriu o caderno onde Apolo havia indicado, passou os olhos por 10 segundos pela primeira folha, depois fechou o caderno, tirou os óculos e esfregou o cenho aparentemente um pouco irritado. Depois guardou o caderno de capa vermelha que o Sr. Nicomedes lhe entregou e pegou na gaveta da mezinha de canto um caderno de capa azul, folheou algumas vezes, depois o entregou ao homem exaltado que quase derrubou sua porta ao entrar alguns minutos atrás. Apolo Diodoro Nicomedes pegou o caderno e começou a ler mentalmente o que estava escrito “Apolo Nicomedes, paciente das segundas-feiras, aparentemente bastante estressado, o que costuma ser comum entre trabalhadores de banco; um pouco ansioso talvez por tentar corresponder às expectativas de pessoas próximas e por sua clara hipocondria, mas que, até o momento, parece razoavelmente controlada”. Antes que a realização atingisse Apolo, o terapeuta se adiantou em explicar “o paciente A. D. Nicomedes é um paciente das sextas-feiras, que acabou de sair daqui, inclusive, e quem eu precisei fazer anotações em outro caderno". O nosso Apolo continuou lendo mais algumas das verdadeiras anotações sobre si mesmo e só agora conseguiu se reconhecer de volta, em cada linha e vírgula. Finalmente quem ele era e quem ele imaginava ser se tornaram coisas parecidas. Pelo menos até antes de toda essa confusão. E o coitado do “A. D. Nicomedes” quem sabe não se chamasse nem Apolo, nem Diodoro, mas, infelizmente, também carregava o nome Nicomedes. Talvez os pais de ambos tivessem alguma paixão pelos reis da Bitínia, mas isso nunca saberemos.