Esperança
Minha tia se chama Esperança, a primeira memória que tenho dela é de quando morreu minha vó e me apresentaram àquela figura pálida com um sorriso que parecia mais uma tentativa de comercial de creme dental, talvez fosse aquele o efeito que minha mãe quisesse a cada revista nos meus dentes depois da escovação, por sorte ela nunca encontrou os chocolates que escondia embaixo da cama e que comia antes de dormir enquanto lia livros didáticos do século passado, algo realmente me atraía nisso.
Não lembro muito do velório da minha vó, só de quando minha mãe quase arranca minha orelha quando me levou para o quintal e reclamando que não devia contar piadas com meus primos ao lado do caixão, eu bem que mereci, penso que minhas orelhas sejam grandes devido a isso, já que eu não lembro da minha mãe usando violência física para me castigar. Outro momento que ainda lembro é de quando chegou minha tia, com seus dentes brancos que mesmo chorando eram admiráveis, e quando ela chegou perto do caixão e disse as célebre frase: “parece que tá dormindo”.
Eu cheguei a ver minha vó morta, mesmo que eu não lembre muito de como era as visitas que fazíamos à ela, mãe diz que ela gostava de mim, mas que eu não esperasse muita coisa, já que ela preferia os filhos da minha tia, principalmente a mais velha, minha prima realmente era muito mimada, ela sempre foi bonita, e foi com ela que aprendi o significado da palavra vaidade, não lembro dela no velório.
Eu nunca gostei de velórios desde então, não podia contar piadas, não podia brincar, e como eu mal saía de casa esses eram os eventos que podia encontrar outras pessoas da minha idade, mas de nada servia, nada de brincadeiras, todos chorando, e por mais que eu tentasse fazê-los rir, tinha algo que não deixava, menos a tia Esperança.
Ela sempre riu das minhas piadas, embora eu não a visse com muita frequência, ela sempre abria um sorriso enorme ao me ver, apertava minhas bochechas e perguntava que livro estava lendo, eu gostava disso, ao menos uma pessoa na família se interessava em livros.
Infelizmente, praticamente todas as vezes eu encontrava a tia Esperança era quando alguém morria, depois de um tempo passei a não ir mais para os velórios, perdi muitos da minha família enquanto era adolescente, por mais que minha mãe reclamasse, meu pai nunca me obrigou a ir, mesmo que desaprovasse, ele simplesmente não mostrava descontentamento por esse motivo, pois havia muitos outros.
No último enterro que fui, lá estava a tia Esperança, tão pálida, nem deu pra ver seu dentes de propaganda, fazia tanto tempo que eu a tinha visto que nem lembrava direito do seu rosto, ela tinha engordado, quem diria, sempre foi tão magra, eu só fui por que meu pai teve que viajar sozinho, ele já estava velho demais, mais de nove décadas, chorava em silêncio durante a viagem, pela primeira vez não contou histórias no caminho.
Todos no velório me cumprimentavam e perguntavam ao meu pai quem era eu, ele respondia com um olhar até feliz quando me via, ele me ama, também o amo afinal, mas ele estava muito desconsolado e esses momentos duravam milésimos de segundo, e a tia não parecia querer mudar isso, eu nunca cheguei muito próximo de defuntos, mas dessa vez meu pai me encorajou.
Olhei de perto, cheguei bem próximo mesmo, só para cochichar “Quem disse que a Esperança é a última que morre estava errado né tia?”. Não olhei para seu sorriso por que meu pai me puxou pela orelha e me disse para não contar piadas em velórios.