A Caçada
Naquele tempo, meu tio era o delegado da cidade. Num quarto de sua casa, ele mantinha guardadas, algumas armas e munições apreendidas de criminosos e arruaceiros, ao serem presos. Abandonadas ali, aquelas armas ficaram velhas e enferrujadas de tal forma, que ele não se importava com elas. Um dia, eu e meu pe-gamos uma daquelas armas e saímos para fazer uma caçada. Mas, no caminho, encontramos dois colegas de escola, o Zeca e o Chico. Tentamos nos livrar deles, mas quando descobriram que carregávamos uma carabina escondida dentro de um saco de estopa, desconfiaram da nossa intenção e resolveram participar da caçada.
Zeca era o mais velho dos quatro. Seu grande defeito era se julgar muito esperto. No entanto, não passava de um sujeito mau e metido a valentão. Chico era ingênuo e medroso, além de muito xereta. O Zeca tomou a arma e apertando-a contra o peito, disse que a levaria, e se escalou para ser o primeiro a atirar. Não sei por que concordamos com ele. Depois de andar por muito tempo, numa trilha no meio do mato, sem encontrar nada, vimos uma ave passar voando sobre as nossas cabeças e pousar em cima de uma cerca. Zeca que estava com a arma, engatinhou-se por entre os arbustos e se jogou atrás de um tronco caído como se fosse um soldado de infantaria procurando se cobrir. Espiou, estudou o melhor alvo. Enquanto isso, em silêncio, nós tapamos os ouvidos. Sem nenhuma experiência com armas, ele tremia. Tensos e impacientes esperamos o tiro que não vinha, porque ele não conseguia segurar a arma com firmeza. Para fazer a pontaria procurava uma posição mais adequada. Queria estar bem seguro quan-do puxasse o gatilho. Alguns minutos depois, conseguiu firmar a carabina no tronco caído. Quando ia puxar o gatilho, ouvimos um grito alucinante, quebrando o silencio:
- Atira! Atiiira!
O grito ecoou pelo mato adentro e assustou a ave que sem perda de tempo voou para bem longe. Foi o Chico, que tenso por causa da demora, não agüentou mais esperar e gritou. Zeca esbravejou, soltou um palavrão, xingou a mãe dele e ainda o ameaçou com um soco. Ele pediu desculpa. Ficara nervoso com a demora. Alguns minutos depois, já calmos, continuamos a nossa caminhada a procura de uma outra caça. Um bando de periquitos passou voando e pousou em uma mangueira à nossa frente. Nem tomamos conhecimento deles. Não compensava gastar munição com aquelas aves miúdas. Só as maiores interessavam. Mas essas, logo que nos viam voavam.
Finalmente, surgiu uma ave de tamanho apropriado. Era um jacu. Zeca que continuava com a arma, pediu outra chance, enquanto já procurava, entre as árvores, uma boa posição para o tiro. Escolheu uma ao acaso e agachou-se sob o tronco inclinado. Suas mãos tremiam. Chico estava inquieto. Parado, assistia a tudo nervosamente. Tapamos os nossos ouvidos. Zeca demorava. Sentia-se inseguro com a posição que escolhera para atirar. Quando fez a pontaria, o Chico gritou bem alto:
- Atiira poxa!
A ave voou. Ficamos atordoados por aproximadamente trinta segundos. O Zeca le-vantou a arma na direção dele e deu um aviso:
- Seu desgraçado. Filho da mãe! Na próxima vez que me atrapalhar eu mato você.
Naquele momento, ele deixou à mostra algo bem guardado no fundo da sua alma e que explicitamente se manifestava: o seu lado individualista e autoritário. As-sustado com as ameaças, Chico prometeu controlar-se. Zeca voltou a xingar sua mãe e daí passaram a discutir asperamente e trocar palavrões. Depois de mútuos desafo-ros, acalmaram-se.
Depois de andarmos por algum tempo sem encontrar nada interessante, em cima de uma árvore seca, avistamos um gavião. Zeca, que não entregava a arma a ninguém, preparou-se para atirar, argumentando que ainda não dera o seu tiro. Queria tentar novamente. Ajoelhou-se e fez a pontaria.Tapamos os nossos ouvidos na esperança de ouvir o pipoco. Como das outras vezes, demorou muito. O Chico, não agüentou e berrou:
- Atira filho da mãe!
O gavião, assustado, voou. Zeca ainda demorou algum tempo, olhando o gavião desaparecer entre as árvores. Depois de se pôr de pé, tirou como pôde as folhas e a terra da calça e se aproximou de Chico. Ergueu a carabina no ar e furioso disse:
- Filho de uma égua! Não matei o gavião, mas agora vou matar você, desgraça-do.
Chico ficou pálido ao ver a carabina apontada para ele. E uma assombrosa sensação de desamparo o dominou. Tinha certeza de que Zeca não estava brincando. Pediu-lhe pelo amor de Deus que não o matasse. Gritamos que não fizesse aquilo, pois se tornaria um assassino. Ele não respondeu. Limitou-se a nos dirigir um ríspido olhar. Depois, gritou para o Chico:
- Levanta! Seu covarde. Você vai morrer de pé.
Afastou-se alguns passos e apertou o gatilho, sentindo numa fração de segundo, uma mistura de orgulho e remorso. Por sorte ou milagre a arma falhou.
- Você ficou maluco? Quer virar assassino? Gritamos.
E ele meio sem graça falou:
- Esta arma não presta. Eu sabia. Eu só queria assustá-lo, fiz isto de brincadeira. Vejam como é covarde. Olhem como o coitado treme de medo. Disse, abaixando a arma com um sorriso amarelo.
- Ele poderia ter morrido com esta brincadeira de mau gosto.
- Que nada, disse. Desde o início eu vi que a arma não prestava. É muito antiga e está toda enferrujada. Não atira nem com reza. Querem ver?
Dizendo isto, apontou para uma árvore à sua frente e puxou o gatilho. O tiro ecoou pela mata adentro num estouro dos diabos, fazendo um enorme buraco no tronco da árvore, assustando a todos nós. Não sei como, mas vi o Chico cair e rolar no chão como se o tiro fosse bem no meio do seu corpo. Depois, levantou-se, ficou de joelhos e começou a rezar:
- Obrigado, Meu Deus! Esta bala era para mim. Muito obrigado!
Zeca, de pé, imóvel, com a carabina na mão e olhos arregalados, parecia nem respi-rar. Das emoções que sentira ao apertar o gatilho contra Chico, restaram o remorso e o arrependimento. Isto fez com que a carabina parecesse pesada demais em suas mãos, tão pesada quanto a sua consciência. De repente, jogou a arma no chão, e saiu correndo.