SONS DA NOITE

Partimos de um mesmo ponto, nos derivamos no caminho, somos refratados e criamos a ilusão da diferença. Porém um dia, mesmo em tempo diferente, todos voltarão ao mesmo ponto da partida.

A noite era densa, escura, chuvosa e fria naquele dia 22 de julho de 1978. Um tamborim de festa em honra a Xangô ecoava continua e insinuantemente ao longe. Misturando-se ao canto e a reza entoada copiosa e credulamente a São Cristóvão, mesmo sendo aquele dia dedicado em honra a Santa Maria Madalena.

Ao som dos cantos, das festas, do rito, da chuva e da coruja, que nesta ocasião não piava, mas sim, sibilava, como as serpentes (som emitido para afastar um predador mais perigoso). Juntaram-se a um novo som, carregado de memórias antigas: o de choro forte, estridente, medroso e desesperado de alguém que chega a esse mundo às duas horas de um dia vinte e dois de julho, muito chuvoso, escuro e frio.

Pelos corredores do antigo hospital ouviam-se os passos descompassados e apressados de um homem embriagado, com as vestes sujas de barro vermelho e molhado de chuva. Insistia em ver o filho que nascera naquela noite. O homem perguntava, com fala arrastada e dificuldade de dicção, um tanto pelo efeito da bebida, um pouco pelo português inadequado:

- Qual é o quarto da Maria? Quero ver o meu filho que nasceu!

A enfermeira de plantão pede calma ao homem e o manda esperar um segundo, além de adverti-lo sobre o tom alto e insultante de sua voz. Verifica um livro de pacientes e sai.

Enquanto saía, a mulher vestida de branco, que faz um plantão indesejado naquele sábado, pensava sobre o aspecto, comportamento e desalinho daquele homem com aproximadamente 25 anos de idade. Totalmente embriagado!

Apresentava, entre outras características, muito pouco estudo, com um semblante petulante, fazendo-a lembrar do ex-marido, o qual abandonara a muito, por conta do uso excessivo de álcool, mulheres e agressões que praticava contra ela. Hoje vive tranquila, cria com a ajuda dos pais o filho de dois anos de idade, com quem desejava estar durante aquela noite.

Em alguns minutos o cozido (como são chamados os ébrios por aqui) é levado a um quarto, onde estão cinco mulheres com seus filhos recém-nascidos, lá esta também Maria, sua esposa, com o filho que acabara de nascer, o pequenino encontrava-se silencioso, porém acordado. O homem o pegou no colo e olhou para a criança dizendo:

- É pia! Mais um macho no mundo!

Nesse momento cambaleou e quase caiu. O menino por pouco não foi ao chão. Choro estridente e desesperado! Aparentava se contorcer com o cheiro de álcool exalado no hálito do pai, que empesteava o quarto. Foi rapidamente retirado das mãos de José, pela enfermeira e entregue a mãe. A mulher que já conhecia bem aquela situação achou melhor intervir, antes que um muito provável acidente acontecesse, sendo que o “pertuve” não podia nem com as pernas. A enfermeira pede que o homem se retire e retorne no outro dia, uma vez que o horário não era de visitas.

Maria era filha de um ferroviário, religioso e muito rígido, casado com uma senhora amável e simples, que exercia o papel de dona de casa. Eram de uma família daquelas tradicionais, onde os homens podiam errar e muito, como se dizia há algum tempo atrás: “homem fez sujeira é só bater a barra da calça que tá limpo, mas mulher fica manchada para vida toda”.

José era filho de agricultores, que viviam no interior, mantinham uma cultura de subsistência utilizada, juntamente com o que se ganhava no trabalho para fazendeiros, na alimentação da família. Foi criado juntamente com os irmãos trabalhando, como se dizia: trabalhava, comprava o almoço, mas o vendia para poder comprar a janta. Pessoas muito humildes. Duas famílias de base estruturada na desestrutura.

O rebento pegou no sono somente as 5 horas da manhã, quando ficou tranquilo e cansado daquele novo mundo em que havia sido arremessado.

José e Maria se conheceram trabalhando em uma madeireira, empresas típicas daquela região. Quase toda a riqueza gerada na cidade palco dessas memórias era oriunda do extrativismo florestal (nativo). Essa herança foi deixada pela chamada Guerra do Contestado (ao fim se resumiu em uma vergonha militar e o massacre de pessoas humildes). Onde de forma simples e direta ocorreu o seguinte: Uma multinacional foi contratada para construir uma estrada de ferro que ligaria o Rio Grande do Sul a São Paulo, para isso, passaria serpenteando pelo interior da Mata de Pinhais típica, principalmente, nos estados de Santa Catarina e Paraná. Como não havia dinheiro em caixa, naquele tempo remoto, o governo brasileiro deu em pagamento, pela construção da ferrovia, aproximadamente quinze quilômetros de cada lado da estrada de ferro para exploração florestal (por esse motivo a estrada de ferro serpenteava), porém essas terras já eram habitadas por brasileiros, que entraram em choque com os interesses do Brasil (Governo) e das forças Multinacionais (econômicas). Até onde sei, assim nasceu o conflito e a cultura madeireira da região em questão.

Sobre esse tipo de empresa, cabe destacar, que até meados dos anos 90 enquanto foi à atividade principal da região, nunca investiu no desenvolvimento pessoal dos seus funcionários, precisava-se de muito pouco estudo e treinamento para desenvolver as atividades de um operário na maioria dessas indústrias. Dessa forma, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das regiões onde essa atividade prosperou, sempre esteve em franco e continuo declínio, assim como, a riqueza, que se concentrava nas mãos daquelas poucas famílias controladoras dos meios de produção declinava das mãos calejadas do povo comum.

Sendo assim, já se pode inferir que no momento em que se conheceram os dois contavam com pouco estudo e poucos recursos, sendo que estavam inseridos nos quadros da pujante indústria madeireira daquela região, como operários.

José não era lindo, mas para feio não prestava! Estatura mediana, cabelos ondulados pretos, pele parda (puxando mais para o branco), magro, olhos negros e nariz aquilino. Pouco estudo, como já fora afirmado anteriormente. Uma grande queda por bebida, gafieira e mulheres. Teve uma infância difícil no interior, começou a trabalhar antes dos 10 anos, abandonou a escola a mando do pai, depois de concluir o 4º ano, para que pudesse ajudar na lida da roça. A violência, a bebedeira e todo resto, segundo contava, aprendeu já nesse período da vida. Era o “status quo”, beber, fumar, frequentar prostíbulo (Zona), gafieiras e ser mulherengo, só assim se honrava as calças que vestia, ou melhor, aquilo que se tinha entre as pernas.

Maria por sua vez era bonita. Uma moça de pela clara e olhos verdes, cabelos castanhos pelas costas e corpo sinuoso. Como já dito, de família daquelas tradicionais. Tradicionalmente machistas. Estudara até completar o 8º ano de escola, gostava de namorar, mas escondido, já que era mulher e a citação indicada no inicio da narrativa a acertaria em cheio. Apesar de serem os anos 70 e as mulheres já usarem calças.

Os dois se conheceram. Não sei se ele era o único namorado de Maria, mas tenho certeza que ela não era sua única namorada. “As mulheres tem uma tendência a gostar daqueles que não prestam.” Ouvi muito isso durante a infância. Hoje acredito que é uma tendência geral dos seres humanos, escolher mal ou escolher bem, faz parte da vida e também da perspectiva.

De namoricos escondidos, passaram ao namoro formal. José foi conhecer o pai e a família de Maria. Ouviu aquela frase jargão vinda do pai da moça:

-Quais são os seus interesses com a minha filha?

Ao que respondeu, mentirosamente:

-Namoro sério e casamento!

Depois desse período de namoro clandestino, de oficialização do namoro e de namoros escondidos pelos cantos ocultos da cidade, Maria engravidou sem se casar. Desesperada, já sabia do temperamento destemperado do pai e da reação nada amistosa que ele teria, procurou o seu parceiro naquilo que mais parecia um delito e não uma benção:

- Eu estou lascada!

José a olhou desconfiado e perguntou:

- Porque Maria?

Com a fala alterada aparentando nervosismo respondeu:

- Por que estou gravida e é teu José. Não posso contar para o pai se não ele vai me matar.

Nesse momento encontraram nas palavras de José a melhor opção:

-Vamos fugir Maria! Pegue algumas coisas tuas que vou te levar para casa de minha irmã.

Maria concordou e se dirigiu para casa apanhar alguns pertences. José por sua vez foi pedir o auxilio da irmã e logo após se dirigiu a casa da tia, onde morava sob o regime de “pensão” (pagava-se por mês para ter casa, mesa, banho e roupa limpa).

Assim começa a construção da família de José e Maria, vale ressaltar: com alicerces bem fracos e cambaleantes.

Fugiram! E moça foi parar na casa da cunhada. No dia seguinte o pai e a mãe de Maria os procuraram para conversar e acertar alguns detalhes. Concordaram que o feito, nesse caso, não poderia ser desfeito. O pai exigiu o casamento civil, José concordou de pronto, mas fez a ressalva de que naquele momento não dispunha de condições financeiras para custear o Juiz de paz. O pai da moça se prontificou a pagar de pronto. Não queria uma filha vivendo amasiada. Melhor mal casada do que mal falada.

Nessa sucessão de atitudes descompassadas iniciaram sua vida conjugal. Foram morar em um barraco feito de tábuas velhas sem sarrafos entre elas, o que deixava as paredes com frestas enormes, sendo possível enxergar o interior da casa.

A locação era em um lugar pobre, sem esgoto, sem água encanada, nem banheiro a casa tinha, para as necessidades fisiológicas uma patente (casinha) e o banho era na bacia. Não possuíam muitos móveis somente um fogão a lenha, uma bacia para lavar as louças (muito escassas), uma mesa velha de madeira e uma cama de casal com poucas cobertas.

Maria teve que se acostumar, pois morava com a família em uma casa melhor, com banheiro, camas, mobília, em um bairro próximo ao centro. José estava em casa, fora criado em condições daí para pior.

Gravida e sozinha. O marido constantemente sumia para as gafieiras, para zona e voltava cheirando à pinga e perfume de mulher. Não sei se nessa época era violento com a esposa. Mas era insolente e rude.

A fama de namorador do dito cujo gerou muitos dissabores para a esposa, sabia das várias mulheres com quem ele se envolvia e chorava pelos cantos da pocilga que chamavam de casa. Uma dessas namoradas era esposa de um policial. O marido quando descobriu a traição da mulher tentou matar José, mas não obteve êxito. Quando José soube, avisado por uma amiga, que o “descorneado” o esperava em determinado local, conseguiu trocar a tempo sua rota escapando da emboscada.

Alguns fatos interessantes sobre essa mulher é que também se chamava Maria, era casada, possuía um envolvimento anterior ao que gerou o casamento de José e queria largar o marido para ficar com o rapaz. Outro fato que se destaca era sua participação e prática em cultos considerados mágicos. Magia daquela de uma linha mais pesada, egoística e, voltada para o mal. Sobre o último fato narrado acredito que o mal esteja na intenção do praticante e não no culto, prática ou religião.

A esposa sofria com as traições do marido, enfrentava uma gravidez praticamente sozinha, longe da família e perto da ausência do pai do seu filho. Passava as noites sozinha naquele barraco, fechado com tramelas (trancas de madeira) que seguravam portas e janelas. Via as pessoas passando pelo lado da casa para fazer seus despachos em noite de Sarava. O Terreiro ficava perto e no caminho entre ele e, uma cachoeira ficava a casa onde residiam.

A outra Maria não aceitava o fim do relacionamento (a chamaremos aqui de Maria do Policia, como a tratavam) e se determinou a reconquistar o seu homem, lógico que usou daquilo que mais eficiente possuía: magia.

Não tardaram a aparecer feitiços com velas vermelhas e pretas, acompanhadas de animais mortos, salpicados com terra de cemitério na porta da residência do jovem casal. Assim como, Maria não tardou a exteriorizar o resultado daquela gravidez dura e desastrosa.

Começou a ver coisas, ter alucinações. Deitava na cama e via vultos passeando pelo quarto, hora eram sombras que se escondiam por debaixo da cama, outras vezes grandes serpentes de cor amarelo queimado com pintas pretas que se arrastavam para debaixo do móvel e tão logo isso acontecia, ouvia o chacoalhar de uma lata de moedas. Junto a isso a mulher começava a sentir um calor insuportável, fazendo-a derramar suor, como se estivesse febril. Era acometida de um medo terrível e sentia a sensação de que uma bola, como se fosse de fogo, subisse do ventre em direção a sua garganta acabando por sufocá-la.

Estava no oitavo mês de gestação e esses fatos se iniciaram após o quinto mês, já eram três tortuosos meses para Maria. Não se pode determinar, como fora para o filho, que participava de tudo na barriga de sua mãe.

José muito assustado e pensando que perderia a mulher e o filho procurou os sogros para pedir ajuda. A mãe de Maria passou a cuidar dela, pois faltava pouco tempo para o primeiro neto deles nascer e não queriam ver nenhum, nem outro, mortos.

A situação de Maria se agravava, ficava cada dia mais magra e fraca, estava pele e ossos, somente a barriga se destacava naquele corpo de aspecto doente.

Aconselhados pela sogra, os dois procuraram alguns benzedores que não conseguiram resolver a situação da mulher. Faziam às simpatias e os benzimentos, ela melhorava um dia ou dois e voltava àquele estado letárgico e desesperador.

Num início de noite a sogra que se encontrava na residência do casal cuidando da filha, observou por uma das frestas uma mulher vestida de preto, cabelo curto, negro e liso, pele morena e, lábios grossos que fazia alguma coisa na lateral esquerda da casa. Quando saiu, acompanhada de uma filha mais nova, para ver o que estava acontecendo, percebeu que a mulher largava um gato morto no centro de um circulo de velas pretas e vermelhas. Em um impulso de raiva gritou:

-O que tá fazendo aí vadia dos inferno?

A mulher tomou um susto e virou para trás, que surpresa tiveram quando perceberam se tratar da Maria do Policia. A feiticeira não teve tempo de responder ao questionamento, tomou uma pedrada nas pernas desferida pela mãe da moça. Com uma cara de dor saiu em disparada sob uma chuva de pedras ferro, atiradas pela mãe de Maria e pela filha mais nova.

Depois desse fato, Maria estava quase morrendo e levando com ela o filho. Como não haviam mais outras opções, já haviam tentado de tudo. Decidiram procurar um Centro de Sarava (Terreiro) para tentar salvar a mãe e o futuro filho. Para concretizar o intento, José procurou seu Adhemar, um homem negro, alto, forte, de bigode até o queixo. Era o senhorio da casa em que moravam e também era Pai de Santo possuindo assim um Terreiro.

Os orientou sobre tudo que deveriam adquirir para iniciar os trabalhos. As primeiras seções foram sem a presença de Maria que estava agonizando em casa, mas foram capazes de definir, que alguém que muito queria José fizera um trabalho sujo e pesado para matar Maria e o filho do casal, deixando assim, o caminho livre para ela. Lógico! Tudo estava claro: era a Maria do Policia a desgraçada que fez aquela aberração.

A coitada, ou não, levou essa fama para o túmulo, pois morreu pouco tempo depois de um câncer. O despeito por aquela que um dia fora um desafeto, criou a estória de que na cirurgia que sofrera, em decorrer da doença, foram encontrados restos de vela em seu interior, ingeridos durante seu rituais de magia.

Definido o inimigo e a causa do mal restava resolver o problema em definitivo. Todo o trabalho espiritual realizado se afunilou para o gran finale: uma oferenda a ser realizada de sexta para sábado, entre onze e meia e meia-noite, na cachoeira da pedreira, que ficava logo após a casa do jovem casal.

No dia, por estar ainda muito debilitada, somente o marido seguiu até o local acompanhado dos Guias incorporados. A esposa através das frestas da parede, como fizera tantas outras vezes, porém nessa ocasião acompanhada da mãe, os observou passar. Não se sabe qual foi a oferenda, mas aconteceu naquela noite e a mulher melhorou, chegando ao dia do nascimento e parindo o seu primeiro filho.

Doutor Fábio foi o primeiro a vê-lo. Quando olhou para os olhos esverdeados do recém-nascido, daqueles olhos que parecem mudar de cor conforme o dia ou o ângulo que se olha para eles (olhos camaleão), inclinado pela sua crença, pensou:

-Vejo Exu em seus olhos!

O choro saiu logo após receber as primeiras palmadas, desobstruindo os pulmões ainda verdes do menino. O choro foi sua apresentação ao mundo, assim como é a de todos aqueles que nascem com vida. Uma descrição de quem fomos e de quem pretendemos ser a partir dali. O mundo inconscientemente responde, com seus cantos, suas rezas, seus ritos, seus mitos e com todas as formas de expressão e vida que nele estão compreendidas.