Para morrer não precisa muito, basta somente estar vivo

A morte não possui critério de escolha é isonômica: chegará, cedo ou tarde, tanto para os bons, quanto para os maus sem distinção.

A morte fascina e assusta os seres humanos desde a antiguidade. Tememos a morte, a comtemplamos, a cultuamos e às vezes a desejamos, clamando para que nos beije com seus lábios frios e sobrenaturais cessando toda a dor, pressão e cansaço de viver. Existem também aqueles que a esperam, pois tem a certeza que já cumpriram a missão nessa terra (frase essa comum em cerimonias fúnebres), porém como a mim não foi dada missão alguma desconsidero essa possibilidade tão brevemente.

Lembro-me de algumas mortes no meu tempo de criança (lógico que também me recordo daquelas quando já era adulto), mas aquelas ocorridas enquanto era menino tinham uma significância diferenciada, especial, muito mais floreada e fantástica.

Sempre participei, com o meus pais, de velórios. Porém naquele tempo, não eram realizados em capelas mortuárias, aconteciam na casa do morto. Colocavam o caixão com o corpo sem vida no meio da sala, as pessoas chegavam, olhavam para o de cujus com tristeza, alguns choravam, faziam uma reza, seguravam nas mãos enrijecidas e gélidas do falecido e seguiam para entregar seus pêsames aos familiares. Logo após completar esse rito, se juntavam as demais pessoas para falar sobre a causa da morte do infeliz, sobre sua bondade em vida, ou sobre assuntos diversos.

O que mais eu gostava nessas ocasiões tétricas era de passar a noite correndo e brincando com as crianças, nos arredores, no pátio da casa e se não fossemos impedidos até na sala, onde se preparava para o descanso eterno, o morto, principal pessoa daquele evento fúnebre. Quando cansava da estripulia me juntava aos homens, que em uma roda compartilhavam bebidas alcoólicas – tradição de beber o defunto - e contavam causos (por obvio não compartilhava da beberagem, mas ouvia os causos). Um pouco mais adiantado na noite chamavam as pessoas para tomar café e comer pão com margarina e mortadela, como aconteceria na manhã seguinte. Quando o velório seguia nos períodos de almoço e janta essas refeições também eram servidas aos presentes.

Mas a morte criava muitos costumes e lendas. Não traga terra de cemitério para casa por que alguém poderá morrer. Não faça pouco causo, ou ofenda o defunto, pois ele poderá puxar seu pé enquanto você estiver dormindo. Aquele que morresse de forma violenta, ou fosse ruim em vida assombraria os locais da sua morte e muitas vezes aqueles onde viveu. Não assobie a noite: atrai fantasmas. Não chame o nome de um morto, o deixe descansar, por que ele pode vir te assombrar. As recomendações eram muitas, existia uma morte real (material onde o corpo perdia a vida e se decompunha), aquela pregada pelas diversas correntes espiritualistas (em suma falando da separação da alma do seu corpo físico) e a da cultura popular.

Uma morte em particular ficou gravada em minha memória, sendo aquela que mais me impressionou no período de infância e início da adolescência. Não foi à morte de um parente, amigo, ou de alguém próximo, mas a de um desconhecido, nunca o tinha visto pessoalmente, ouvia falar dessa pessoa nas conversas das mulheres.

A pessoa em questão era um rapaz de 20 anos de idade, até onde me recordo, passava por volta das 6 horas da manhã, de segunda a sexta-feira em frente a minha casa, com destino ao trabalho, que ficava próximo dali (em uma madeireira). Algumas vezes ouvia de minha casa, seus passos nas pedras da rua enquanto se dirigia ao trabalho, porém nunca o vi.

Lembro-me de conversas entre minha vó, minha mãe e outras mulheres em que comentavam sobre ele ser um rapaz abençoado, trabalhador, que não perdia um dia se quer de trabalho, que nos finais de semana, quando de folga, lavava roupas, fazia pão e limpava a casa para sua mãe, que já tinha certa idade. Não tinha vícios e nem namorada. Além desses fatos pouco se sabia sobre a sua vida.

O bairro em que residia, naquela época, não era violento, pois estava situado em uma pequena cidade do interior do Paraná. Porém, havia lá, como há em muitos outros lugares alguns desajustados. Furtavam, promoviam brigas, andavam sempre em bando. Como diria meu avô “uns pra nada”.

Existia uma Igreja de culto Ucraniano a uns dois mil metros de minha casa e cerca de quinhentos metros do colégio onde estudava. Essa igreja chamava a atenção por ser toda de madeira, pintada na cor azul, era toda circundada por uma cerca de ripas de madeira de imbuia sem pintura, estava situada bem na intersecção entre duas ruas. Aos fundos possuía um campo de futebol, que não passava de um gramado muito extenso, onde íamos jogar bola algumas vezes.

A igreja parece desconexa, mas tem seu papel nessa história. Cruzando a rua lateral da igreja (Avenida Wilkys Amazonas Correia) tínhamos um grande capinzal, que lembrava muito um grande banhado. Seguindo por esse capinzal (possuía vários carreiros), em uns oitocentos metros, chegava-se a outra rua, paralela a primeira, chamada Avenida São Cristóvão, que também era a rua lateral do cemitério daquele bairro, a rua de minha casa e da casa do rapaz em questão. Morávamos na mesma rua, estando separados pelo cemitério.

Como já disse, a informação era de que o rapaz só tralhava e aos finais de semana ajudava a mãe com os afazeres domésticos. Nunca ouvi nada sobre sua vida social ou particular. Vinte anos de idade, sem namorada e morava com os pais, que já possuíam idade avançada, nunca soube que tivesse outros parentes.

A casa em que residia com os pais, era de madeira, pintada na cor azul, como muitas naquele local (acredito que a escolha dessa cor se deva pela ascendência polonesa e ucraniana da população da região). Possuía uma cerca de madeira, com ripas e travessões de imbuia, sem pintura. Ao lado direito, sempre quando era época desse cultivo, eram plantadas mandiocas e alguns pés de milho.

Não me recordo bem por que falavam desse rapaz, que não era próximo a ninguém, mas que por algum motivo chamava a atenção das mulheres e se tornava o assunto quando se juntavam em suas rodas de chimarrão.

Nos domingos de manhã, acordava cedo, por volta das 7 horas. Esse fato se dava porque além das aulas durante a semana, tinha que suportar aulas de catequese nesse dia pela manhã. Uma estratégia usada para nos forçar a participar da missa. Começávamos a catequese às 8 horas e 30 minutos terminando aproximadamente às 09 horas e 30 minutos, mais ou menos a hora que começava a missa, dessa forma, saía da catequese e entrava na Missa.

Logo após 2 horas e meia, entre aula de catequese e Missa, cheguei em casa. O almoço estava quase pronto: frango cozido com molho de tomate, maionese de batata (com creme feito com ovos caipiras de nosso próprio galinheiro) e arroz branco. Sempre adorei os domingos. Na minha infância as famílias menos abastadas comiam carne somente nos finais de semana, devido a o preço elevado que produto tinha (história é uma coisa que teima em se repetir).

Cheguei, entrei e sentei na sala de casa, onde meu pai e minha mãe tomavam mate e ouviam no toca discos, um vinil de uma dupla caipira chamada Zezé e Zezito, acredito não muito conhecida. Entre a música e o chimarrão conversavam justamente sobre o Lauro, o rapaz de que todo mundo sempre falava. Minha mãe dizia exatamente essas palavras quando entrei:

- É muita bandidagem! Furar os olhos, cortar língua, capar e depois colocar fogo no rapaz que nunca fez mal a ninguém.

Meu pai deu uma tragada no chimarrão, outra no cigarro Marlboro, olhou pra minha mãe e falou:

- Esse mundão velho tá perdido! Vai confiar em quem? Fazer isso com um coitado que não tinha boca pra nada. Olhe o pecado desse diabedo! Fizeram isso dentro do pátio da Igreja, bem no canto da cerca e parece que não era tarde. Aconteceu lá pelas 10 horas da noite.

Deu mais uma tragada no cigarro e concluiu:

- Pois é, para morrer não precisa muito, basta somente estar vivo!

Fiquei escutando atentamente, pois um fato desses era um acontecimento muito fora do comum naquele lugar.

Almoçamos. Ajudamos minha mãe lavar a louça, a arrumar a cozinha e fomos brincar lá fora. Pés descalços, como era o costume naquela época, correndo, gritando, todo empoeirado.

No meio da tarde, passado das quinze horas, alguns vizinhos vieram até nossa casa e se assentaram juntamente aos meus pais debaixo da sombra da laranjeira. Começaram a tomar mate, conversar e adivinhe qual era o assunto? O Lauro, o rapaz que fora violentamente atacado e queimado.

A história que era narrada muito me interessou, quando disseram que o coitado do moço havia tido o corpo quase completamente queimado. Para exemplificar a gravidade das queimaduras, a comadre de minha mãe fez referência ao meu filme favorito, dizendo:

- Ele ficou tão feio, foram tão grandes as queimaduras, que ficou igual aquele dos filmes a hora do pesadelo!

Minha mãe emendou:

- Que judiação, coitado do rapaz! É muita coragem fazer uma coisa dessas com uma pessoa.

Apesar do medo que tudo aquilo me causava, eu era fascinado por esses assuntos. Assim como o filme mencionado, me rendia muitos pesadelos, aquele fato também os renderia. Fiquei imaginando tudo que contavam os adultos naquela conversa meio tenebrosa.

Na manhã seguinte, uma segunda-feira, dia de aula. Acordei cedo, tomei café e fui me arrumar para escola. Meu pai já havia saído para o trabalho, minha mãe apanharia a “lotação” às sete horas e eu seguiria com minha irmã em uma das mãos e, meu irmão nas costas até a casa de meus avós paternos, onde os dois ficariam durante o dia. De lá seguiria até a casa do José, um de meus amigos e de lá nos dirigiríamos até a escola.

Chegando a casa dele, já me esperava-me no portão. Saímos andando sem mais demora. Depois de ele dizer:

-Opa tudo bom e daí?

Ao que respondi:

-Beleza e você?

Recebendo uma resposta:

-Beleza!

O José após os ritos de chegada foi me perguntando:

-Orra! Você sabia que queimaram um cara lá na Igreja Ucraniana? Colocaram fogo, mas antes furaram os olhos, cortaram a língua e o saco.

Respondi afirmativamente com um aceno de cabeça. Perguntei:

-Tá a fim de matar aula e ir lá ver o lugar onde ele foi queimado?

O José era meio medroso. Na verdade totalmente medroso. Eu que era meio. Mas enfim, topou! Desviamos a entrada da escola e seguimos por 800 metros até chegar a Igreja.

Entramos no pátio. Como sabíamos de antemão, que o ocorrido acontecerá em um dos cantos da cerca. Fomos a contornando até chegar às proximidades da intersecção da Avenida Wilkys Amazonas Correia e a Rua Alcides Silva. Nesse ponto avistamos, aproximadamente a 30 metros de nós, um círculo de cor preta no gramado (devido à carbonização), bem no canto da cerca. Andamos um pouco mais e avistamos, na altura da grama queimada, um sapato masculino pendurado na cerca de madeira e todo contorcido provavelmente pelo fogo.

Olhamos de longe! Receosos, tomamos coragem e nos aproximamos do local, com medo de alguém nos flagrar, mas com muito mais medo de se aproximar do exato local onde ocorrera aquele fato bizarro.

Fomos chegando mais perto, pouco a pouco, sentimos, não sei se por sugestão, um cheiro de carne queimada misturada a combustível. O sapato, que avistamos de longe, era um daqueles sem cordão, com uma fivela de metal presa a uma pequena tira do próprio couro em sua parte de superior. Todo contorcido e queimado, pendurado em uma das ripas da cerca de madeira de imbuia. Percebemos que o fogo, ali outrora acesso, foi muito intenso. Uma vez que carbonizou um raio de quase um metro e meio de circunferência no gramado e chegou até a parte superior da cerca, onde se encontrava pendurado o sapato. A voracidade das chamas havia sido tamanha que deixou a madeira corroída e transformada em carvão em algumas partes.

Quando olhamos tudo bem de perto e já estávamos nos familiarizando com aquele local medonho percebemos algumas pequenas formigas. Elas se amontoavam em alguns pontos específicos. Com o auxilio de um graveto fomos cutucando esses pontos e descobrimos algo muito similar à carne. Provavelmente alguns pedaços de tecido humano virando um banquete nas patas daquelas pequenas trabalhadoras.

Larguei rapidamente aquela varinha, senti um arrepio percorrer o corpo, um calor no rosto e uma tontura. Saímos apresados sem olhar para trás. Seguimos para o colégio e chegamos um pouco atrasados. Aquela sensação medonha não saiu da minha cabeça durante o dia todo. Naquela noite: pesadelos, onde enxergava o rapaz, que não conhecia sequer o rosto, queimar pendurado na cerca e com as mãos em chamas tentar me agarrar. Enfim, a curiosidade não mata todos os gatos, mas deixa alguns abalados.

Nunca mais fomos lá jogar bola. Evitava passar por aquele local. Mas quando tinha que passar pelo cemitério para ir ao armazém Santo Antônio, onde fazíamos compra na caderneta (comprava-se, anotava-se em uma caderneta e se pagavam as compras no final do mês) inevitavelmente passava pela casa do rapaz.

Com a gravidade das queimaduras e dos ferimentos (não sei ao certo se fizeram com ele tudo o que foi mencionado, uma vez que as pessoas tendem a aumentar os contos) o rapaz veio a óbito. Fui convidado a ir ao velório com minha avó e minha tia, mas minha mãe não permitiu devido às circunstancias da morte. Como se as informações que escutei e por intrometido descobri não fossem suficientes para me deixar impressionado. Dessa forma, o que seria um velório com caixão fechado nessa equação?

Após o enterro do jovem todos no bairro começaram a ouvir alguém que passava durante as noites pelas ruas assobiando. Ouvia-se um assobio forte e agudo. Contou uma vizinha que certa vez ouviu o assobio em frente a sua casa, correu até a janela procurando saber quem era, mas nada viu, porém continuou escutando os silvos que seguiram pela rua.

Eu mesmo escutei os tais assobios durante a madrugada e cada vez que ouvia congelava de medo. Como os sons, que rondavam o bairro, começaram logo após o fatídico acontecido, a teoria mais difundida era de que o espirito de Lauro assombrava a localidade.

Após o fato horripilante e desumano acontecido com o pobre moço soubemos que prenderam os responsáveis e os condenaram. O que sempre despertou minha curiosidade sobre esse crime foi à motivação para tamanha barbárie, o motivo de tanta crueldade com alguém (que segundo o que se sabia) não fazia mal a ninguém?

Mesmo restando muitas dúvidas acerca dos motivos e das circunstancias que levaram a prática absurda desse crime monstruoso, hoje me cerco da certeza clara e liquida, de que nem no passado, muito menos na atualidade, ou quem sabe em nosso futuro, no modelo de mundo e sociedade que criamos ser bom e pacifico foi, é ou será garantia de segurança. Acreditar nisso seria o mesmo que adentrar a cova dos leões, desarmado e torcer para que os animais sejam vegetarianos.