A Caixinha de natal,o bacalhau,e a natureza humana

Chego às sete e quarenta no supermercado.Apesar do horário,por pouco não encontro vaga no estacionamento.

Antes que eu me esqueça:estamos no dia vinte e três de dezembro de 2021.

Tentarei ser objetivo e comprar o estritamente necessário.

Para um cara solteiro,"comprar o necessário" quer dizer levar para casa o que ele quiser__ou o que o dinheiro dele permitir.

Aproveito que a seção de laticínios está mais vazia e parto para lá .

___Duzentos gramas de queijo prato,por favor__Sei que os queijos amarelos não são a melhor escolha,mas ...É natal pombas!

__O senhor quer que eu corte as fatias bem finas,para ficar mais saboroso__pergunta o funcionário,segurando na mão esquerda enluvada uma peça grande de queijo.

Chego a me emocionar com a boa vontade do rapaz.Quanta felicidade em servir bem aos outros!Me vem à cabeça a música "London,London",de Caetano Veloso,em cuja letra ele ressalta a boa vontade do guarda londrino em ajudar os cidadãos e...

___O senhor poderia contribuir com nossa caixinha?__pergunta o educado rapaz,ao me estender o saco plástico com o queijo.

A vida nos ensina coisas novas,ou não tão novas,a toda hora.

Coloco uns trocados na abertura da caixa de papelão forrada com papel de presente e sigo meu caminho.

Compro mais alguns produtos "necessários" e rumo para adquirir a jóia da coroa:Sua majestade, o bacalhau!

Ao contrário da seção de laticínios,uma fila digna de repartição pública numa segunda feira está formada ali.Não me abalo.Posiciono meu carrinho atrás da última pessoa da fila e inicio minha espera.

Trinta minutos depois,restam apenas duas pessoas na minha frente:uma velhinha de vestido estampado surrado calçando tamancos, e um homem de meia idade vestido de maneira impecável,com calça, sapatos e camisa de marcas famosas.

Ele pede um quilo de bacalhau.O visor luminoso acusa um quilo e duzentos quando o funcionário coloca a posta na balança.O homem pede que o excesso de peso seja removido.Após nova pesagem,o mostrador acusa novecentos e oitenta gramas.Satisfeito,o ultra bem vestido senhor vai embora.

Agora é a vez da velhinha:

__Por favor,eu quero cinco quilos do bacalhau do porto.

Cinco quilos a setenta e oito e cinquenta o quilo vai dar...Começo a fazer conta mentalmente .

Desta vez a balança acusa menos do que o pedido:quatro quilos e setecentos.

__Pode colocar mais um pedaço para completar cinco__pede a senhora,com uma voz baixa, fina e rouca.

Depois de ter o pedido atendido,a velhinha pega o saco plástico,o coloca no carrinho__

Quase cai dentro dele ao fazer isso,devido ao peso da iguaria__e lentamente se afasta.

Quando faço meu pedido,estou tão nervoso quanto um conjunto que tem que se apresentar depois dos beattles num festival de música:

__Quero um quilo do do porto__É um pedido decente,penso.

O peixeiro me apresenta duas postas,aparentemente iguais,e pergunta qual eu quero.Escolho a que está sua mão direita.Os números azulados da balança eletrônica exibem o peso:Um quilo certo!

Qual é a probabilidade disso acontecer de primeira?

Exultante,já saboreio mentalmente o peixe enquanto me dirijo ao caixa.

___Você comprou bacalhau aqui?Aqui é mais caro!

Este é meu vizinho Arthur,olhando para o interior do meu carrinho como se fosse um scanner humano.

__Mas é de boa qualidade;todo ano eu compro aqui___respondo eu,já acostumado com o jeitão dele.Apesar de tudo,o Arthur é gente boa___nunca foi preso a toa.

__Eu comprei o meu naquela barraquinha da rua de baixo,do Tião peixeiro...Paguei quarenta e seis o quilo!

A satisfação na voz dele é quase palpável.Decido sair pela tangente.

__Bom você ter me avisado.No ano novo eu compro lá.__economizei uns trinta minutos de papo furado.

Faço meus sinceros votos de boas festas e corro para o caixa.O Arthur não é meu único vizinho sem noção que frequenta este mercado.

No dia seguinte,sentado a mesa,contemplo meu bacalhau pronto para ser degustado,junto com batatas,ovos,couve,vagem e azeite português.

Antes da primeira garfada,escuto a mulher do Arthur,que mora no apartamento ao lado do meu,reclamar em voz alta:

___Mas que raio de bacalhau é esse Arthur,que não tem postas?E que couro é esse que cola no céu da boca?

Eu poderia colar o ouvido na parede e escutar todo o barraco;mas devo manter meus pensamentos em um nível elevado.

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Um feliz natal e um próspero ano novo para todos os leitores do recanto!

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