NÃO TÁ MORTO QUEM PELEIA!

 

Causo gaudério

 

     O meu saudoso amigo João do Alegrete, haragano mui boenacho e conhecido lá pra bandas de Cerro Largo, era um gauchito criado no tempo certo, afamado naqueles pagos, índio faceiro uma barbaridade! E tal fama vinha, infelizmente, do vício da canha e do medo que o xiru velho tinha da patroa, uma senhora enorme, troncuda, forte igual boi campeiro, uma seiúda muito mal-humorada.

     Duma certa feita, diz que o João entrou no bolicho do Manoel com a cara toda lanhada, o nariz arrebentado, coberto de talhos nos braços, todo esfarrapeado. O Amaranto, associado de copo, em meio à roda da cachaçama a correr solta, mal deixou o vivente sentar-se à mesa e já se foi logo alardeando aos quatro cantos do salão:

     — Mas bah, tchê! O que foi que te aconteceu, índio velho? Tu estás com a cara toda esgualepada! Se abanque no mais e conte o assucedido.

     Do outro lado da mesa, o Osório Firmino, outro parceiro de canha, um vivente conhecido pela debocharia, jogou troça assim no meio da moçada:

     — Ahhh, mas isso aí deve de ser obra da patroa do João. O que tu andastes aprontando, xiru velho? A Maria te pegou espichando o rabo do olho pra cima d’alguma chinoca louca de especial?

     A indiada caiu numa gargalhada solta. O João, homem de pouca paciência, puxou a cadeira e se embraveceu uma barbaridade pelo desfeiteamento. Não carecia de ninguém mexer com os brios de gaúcho guapo feito ele, isso não era coisa pra se brincar.

     — Tu calas a tua boca, Osório. Tu não sabes de nada. Sou bagual de nascença e ainda está pra nascer homem solito ou mulher de cama que vai me enfrentear no braço. Digo homem solito porque, mesmo eu sendo valente, às vezes nas contingências da vida, pode não ser o suficiente pra se pelear com uns quantos mais.

     A charla do João desarmou o deboche da moçada e um clima de curiosidade encheu o bolicho, pois o vivente tinha aquele costume de falar alto, de alardear aos quatro cantos as suas qualidades de homem campeiro, posto que se achava o esteio da tradição rio grandense.

     — Mas bah! Desembucha logo o acontecido!

     João, sem pedir permissão, confiado por demais, pegou o copo do Amaranto, levou à boca e sorveu aquela “água benta” num trago só. Depois, bateu o copo na mesa, limpou os beiços na manga da camisa, olhou para os quatro amigos à mesa, olhar firme de boi brabo como era do seu feitio, e bateu com o punho fechado no peito.

     — Está pra nascer o homem que vai baixar a minha crista! Ontem mesmo, no finzinho da tarde, depois de mostrar pra vocês a bicicleta nova que comprei importada lá do Alegrete,  eu tomei rumo pra …

     — Diz que a Maria não gostou nem um pouco de tu te comprado a bicicleta – cortou a conversa Amaranto com ar de troça. – Isso é verdade?

     João jogou um olhar embravecido por cima do corneta e disse lá do seu jeito grosso de ser:

     — Tu queres ouvir a história ou não?

     Amaranto deu recuo na hora ao ver as outras caras embravecidas na sua direção. A indiada estava curiosa pra saber como é que o João tinha conseguido ficar com aquela cara toda esgualepada.

     —  Pois conte, então, xiru velho! - disse Amaranto levantando as mãos em concordância.

      — Como eu estava dizendo, depois de sair daqui do bolicho com a bicicleta na direção do meu rancho, resolvi cortar caminho e peguei a estradita de chão batido ali pros lados do morro de Santa Maria. Eu ia lá muito faceiro, na serenidade, quando três homens mal-encarados me fizeram parar no meio da ladeira. Logo vi má intenção deles de me atravancar a passagem e forcei o caminho assim meio de través, mas fui derrubado.

     — Mas bah, por que fizeram isso com o compadre?

     — Ora, os velhacos queriam roubar a minha bicicleta nova! Só que eles não sabiam que estavam lidando com homem macho, que não se acovarda em peleia, seja das grandes ou das pequenas. Tu precisavas ver, levantei-me do chão e parti pra cima dos três.

     — Bah,  mas tu estavas louco. Eles não estavam armados?

     — Estavam, mas eu não sou de fugir de briga. Sou índio valente e, como dizia o velho meu pai: não tá morto quem peleia! Me atraquei dentro daquele entrevero. Primeiro de tudo, arranquei o punhal de um xibungo de mãe solteira, o mais próximo de mim, e dei-lhe um sopapo de prancha por cima dos beiços que foi uma barbaridade! Ele quedou-se de bunda no chão na hora. Mas o maleva levantou-se rapidito no mais e, junto com os outros dois, vieram pra cima de mim.

     “Olha, foi uma peleia encardida, briguei feito um touro dos mais bravios, não arredei pé nem fiz corpo mole. Soquei, chutei, empurrei e também fui socado, chutado e empurrado por todos os lados, sem trégua. O problema, indiada, é que eu estava solito contra os três malevas tão fortes e brabos quanto eu. Depois de muito pelear, mesmo não baixando a crista, apanhei feito boi-ladrão.”

     “Claro, aguentei o repuxo até o quanto pude, coisa pra mais de meia hora no meio daquele entrevero, mas o cansaço veio e digo pros compadres de boca cheia, se eu não tivesse meio floreado das cachaça, ahhh... a briga teria sido mais justa! Desmaiei depois de levar uma paulada na cabeça e quando dei por mim… bah, levaram a minha bicicleta!”

     Os quatro ouvintes ficaram quietos por um momento, admirados com a valentia de João. Seu Manoel, o dono do bar, na escuta, solidário com o drama do seu cliente assíduo e bom pagador, veio até à mesa e botou à sua frente mais uma garrafa de canha das boas, das preferidas do João.

     — Essa é por conta da casa.

     — Muito agradecido, seu Manoel!

     O velho, no aproveito de chegar à mesa, passou a limpar e recolher os pratos de petiscos, enquanto se dirigia ao João.

     — Mas compadre, tu não reconhecestes nenhum destes ladrões?

     Na horita em que o vivente ia responder, eis que surge à soleira da porta do bar aquela mulher descomunal, quase a tapar a entrada lançando sombra no meio do salão. De lá mesmo, sem mesuras de saudação, ela trovejou alto pra dentro do bolicho:

     — João, tu deixas de lagartear a la cria com esses pudins de cachaça e vamos pra casa. Tu já me aprontastes muito por estes dias!

     A peonada ficou indignada com o desfeiteamento da mulher e, muito mais, com a cara de cachorro vadio que o João fez já dando mostras de se levantar em obediência à intimação. Como que unidos no coleguismo de copo, e solidário com o vexame que Maria impunha ao pobre, Amaranto, o mais candongueiro do grupo, berrou na direção da mulher.

     — Escuta aqui, ô Maria, tenhas mais respeito com o teu homem, criatura! Este é um valente. Homem que briga com três malevas armados só no braço tem que ser respeitado.

     Maria fez cara de graça e entrou. Na mesma hora, o João começou a se mexer nervoso por demais, parecendo se incomodar com os desvãos da cadeira.

     — Briga? - disse a seiúda trazendo todo aquele corpanzil ameaçador pra junto da indiada na mesa. - Que briga, João? Com quem tu andastes de peleia? – Dirigiu-se ao marido em meio a vergonhança da situação.

     — Ora, Dona Maria – intercedeu seu Manoel. - Ontem, o João peleou com três ladrões que lhe roubaram a sua bicicleta nova. A senhora não sabia?

     Maria olhou para o velho dono do bar, depois para todos na mesa e, pela primeira vez em muitos anos, abriu um largo sorriso. Na hora, o João do Alegrete murchou uns tantos de vergonha. Foi então que a china velha, sem papas na língua, lançou a verdade por sobre a incredulidade geral do povaréu do bolicho.

     — Que briga que nada! Este pé-de-canha aqui resolveu é descer de bicicleta a Ladeira do Encantado, mas floreado de cachaça até os olhos ele simplesmente perdeu a governança do aparelho e caiu na ribanceira ao lado. Embolou-se sozinho e se foi de rolo, foiceando mato, capim e a pedrarama miúda até lá embaixo no sopé do morro. Foi um milagre ele não ter quebrado um osso do corpo, este marombeiro!

     — A bicicleta ficou pior que o dono, virou um alho! – continuou a mulher em charla desenfreada ao mesmo tempo em que dava um tapa na lateral da cabeça do marido. - E pra não me contar o que aconteceu com a bicicleta, porque não tem vergonha nessa cara, ele a jogou fora e veio com essa patranha deslavada pra cima de mim. Mas o Totonho, filho da Ana, na encolha no mato ao largo da estradita viu tudo e me contou.

     Dito isso, ela não esperou resposta ou comentários, simplesmente deu as costas a todos e encaminhou-se à saída. Antes de ganhar o mundo na pressa, porém, foi firme:

     — João, vamos embora, porque temos de passar no mercado antes de ir pra casa, AGORA!

     Assim que a mulher saiu, o João se desencolheu, a firmeza voltou-lhe à cara e se levantou. Ajeitou o colarinho da camisa e quando já ia fazer menção de ir-se embora em meio aquele silêncio constrangedor, o Amaranto lhe perguntou:

     — João, tu tens medo da tua mulher?

     João, com a voz firme e sacudida de valentia de hombre mui guapo, disse:

     — Mas bah, indiada, é claro que não. Não tenho medo da Maria como vocês pensam… eu tenho é respeito!

     E, dito isso, saiu do bolicho e foi-se embora a passos largos!

 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 24/12/2021
Reeditado em 16/06/2022
Código do texto: T7414071
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