Voando
Era só mais um dia chuvoso, muito normal àquela época do ano, mas para Felipe havia mais tristeza do que o frio e a chuva normalmente traziam.
Fazia exatos um ano que acabara o casamento. Lógico que não por sua vontade própria, mas como ele poderia prender com uma assinatura num papel alguém que tinha a mente fora do seu coração?
Ele a deixou livre, como sempre fizera, e a única lembrança física dos dez curtos anos juntos foi a aliança em seu dedo. Nada mais foi deixado.
Não havia mais discos, não havia mais filmes, não havia mais Thor, o pastor-alemão que sempre fazia companhia nas corridas matinais e nas horas solitárias que passava até a chegada dela.
Ela não gostava dos discos, eram rock 'n roll demais. Dormia nos filmes, dramático demais. O cachorro babava demais, era grande demais e latia demais. Tudo era demais, mas foi esperar demais vê-la deixar o que não gostava para trás, somente Felipe o foi.
Não se sabia, nem seus amigos mais próximos, o motivo de tanta raiva e tanto rancor, a ponto de deixar Felipe apenas com o anel de casamento.
Ele poderia explicar mil e um motivos que achava sobre o assunto - nenhum deles válido para qualquer pessoa com amor próprio , porém o amor próprio de Felipe foi embora com os discos, os filmes e o cachorro.
Ao invés de seguir em frente, ele ficou parado. Viu seus 36 anos de vida simplesmente desmoronar naquele ano. As únicas coisas que cresciam na vida dele eram as cinzas de cigarro no cinzeiro, as olheiras e a barba. Nada mais!
Então num ímpeto levantou-se. Aquilo não poderia mais continuar, já havia passado muito tempo. Já se sabia que ela estava muito bem. Seis meses atrás começara um namoro. Jorge, amigo de infância de Felipe, sempre fora apaixonado por ela, nunca negara, e hoje estão juntos. Felizes.
Arrancou a aliança do dedo. Fez a barba. Limpou o cinzeiro, a cara e o corpo inteiro. Um banho que lhe arrancara o medo.
Sentou à mesa e escreveu algo no computador. Levantou-se e correu em direção à janela... Pulou!
Quinze andares abaixo estava ele, morto num chão ensangüentado. O porteiro junto ao seu corpo via escorrer pelo olhos sangue e gotas d'água. Não souberam dizer se era chuva ou lágrimas.
A polícia invadiu sua casa e não encontrou nada exceto o laptop ligado com algo escrito na tela.
"Voei em busca de um conforto que jamais tive em vida. Talvez minha carne no chão duro de cimento amoleça o coração de pedra de quem nem ao menos me deixou o amigo."
Jorge se achou culpado e nunca mais viu Marcela em toda sua vida.
Marcela envergonhada nunca tivera coragem de contar, mas sabia muito bem que era de Thor que ele falava.