Mocinha do tempo ☂️🐞

 

O raio teimava em cair sempre no mesmo lugar, ousadia que impressionava Lica, a eterna café-com-leite do quinto ano. O berço do saber inspirava medo, desconfiança e insegurança, quando a premissa deveria rumar na direção oposta. 

Os pais foram chamados para uma conversa com a professora do terceiro ano porque Lica não se entrosou com as outras meninas e brincava na terra com os meninos. Por falta de esforço, não foi, ela ansiava tanto em ter uma melhor amiga para chamar de sua, mas sempre chegava tarde demais; as panelinhas não a aceitavam e nem com a bênção da fada madrinha obteria a tão desejada aceitação. O único papel vago era do bobo-da-corte.

Com apenas sete anos, Lica podia até não compreender a palavra monotonia como esta se apresentava no dicionário.

— Mãe, o que quer dizer monotonia?

Lica mostrava à mãe aquele cartão com desenhos de ursinhos, onde leu o verbete que lhe chamou atenção. Não contava a ninguém sobre aquele aperto no peito que não dava trégua noite e dia, nem aquela vontade de chorar, desaparecer, aquela sensação de não pertencer a lugar nenhum, as palavras amargas de uma professora asquerosa e sem vocação e o porquê preferia os fins de semana.

Um dia, o balde da pequena Lica transbordou. A mãe desconfiava que a filha fosse autista, mas ninguém lhe deu a merecida atenção, embora um diagnóstico precoce tivesse evitado muitos sofrimentos que afetam a vida da jovem até hoje. 

Toda segunda-feira à tarde, Lica passava uma hora no consultório da Dr.ᵃ Fátima, uma psicóloga bonachona, que pintava o cabelo de loiro e dispunha de uma paciência ímpar para lidar com ela. Para a menininha, aquela sala era um pedacinho do paraíso, tinha tanto brinquedo que decidir era um dilema. A psicóloga só viu uma menina bonita, inteligente, esperta e muito sensível, que em nada se diferenciava das outras. 

Estava a pequena Lica no colo da mãe quando olhou para o céu com algumas nuvens esparsas e aquele grande círculo brilhante a encantou. Nem todo amor à primeira vista é necessariamente romântico.

No terceiro ano, durante a aula de ciências, a professora ensinou sobre o sol, a lua e os planetas. Tinha até uma musiquinha engraçada para memorizar a ordem direta dos nove planetas que compunham o Sistema Solar.

 

Minha (Mercúrio)

Velha (Venus)

Traga (Terra)

Meu (Marte)

Jantar (Júpiter)

Salada (Saturno)

Uva (Urano)

Nozes (Netuno)

Pão (Plutão)

 

Lica ensinou as fases da lua à irmã caçula, logo, a Lua Minguante recebeu a alcunha de “Lua de Banana”. Nada a animava mais do que contemplar o céu noturno e sem nuvens. Vinha uma paz que nem sabia dizer de onde, uma alegria genuína, uma vontade de morar lá.

Os olhos de Lica também se tornaram mais atentos às mudanças no tempo, ao ritmo de cada uma das quatro estações, tudo que envolvesse de alguma forma o clima despertava o sincero interesse dela. Durante o inverno, quando vinha alguma onda de frio, a expectativa de ver neve, abria a janela toda manhã imaginando ver aquela camada branca cobrindo os gramados, telhados, que sairia para fazer bonecos de neve, tal como nos filmes norte-americanos, porém, só ouvia falar de neve nas serras gaúchas e catarinenses.

 

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Aos 10 anos, o momento do jornal de que Lica mais gostava era a previsão do tempo. Uma moça aparecia em frente a um mapa para contar em quais localidades faria sol ou choveria. Se pudesse escolher uma profissão, seria aquela.

Espere um momento… para ser mocinha do tempo, dava para ser jornalista e meteorologista ao mesmo tempo?

No alto de dez primaveras, Lica concluiu que, sim, precisaria estudar muito para ser mocinha do tempo, mas já dava os primeiros passos para quando chegasse a hora de falar com o Brasil inteiro. Um mapa-múndi pendurado atrás dela, o rádio do lado, a fita com clássicos da Dance Music tocando do início ao fim e ela falando com câmeras imaginárias, quando apenas a irmã e quiçá os brinquedos eram os únicos espectadores. Os melhores, diga-se de passagem. Se o noticiário tivesse uma trilha, seria Beautiful life, do Ace of Base.

Uma ocasião marcou-a sobremaneira. Apesar de sonhar muito em entender os fenômenos da atmosfera, ciências eram o calcanhar de Aquiles de Lica, até mais do que matemática. Todavia, a professora pediu para a turma fazer um trabalho cujo tema fosse livre, desde que apresentado em classe. Ela não pensou duas vezes: falaria sobre a previsão do tempo.

Naqueles tempos, a família de Lica não tinha computador, quanto mais acesso à internet, restando-lhe vasculhar enciclopédias antigas e livros de ciências. Era preciso fazer um cartaz com colagens e também um experimento. 

Em pleno domingo à tarde, a menininha debruçou-se sobre o material de pesquisa e transcreveu o conteúdo importante em folhas de papel almaço, preparando-se para compartilhar com os colegas sobre algo que amava. Pediu ajuda à mãe para fazer uma biruta com um coador de café de pano.

Chegará o dia de Lica apresentar o trabalho para a turma toda. O sacrifício foi recompensado pelo olhar de admiração da professora, que não somente deu a nota máxima para a pequena mocinha do tempo, como também convidou-a para apresentar o trabalho em outras turmas. Os olhares impressionados eram os mesmos, até a postura retesada cedeu espaço a um rosto sorridente e uma explicação apaixonante sobre os fenômenos meteorológicos, nomes de nuvens e equipamentos. 

Lica pode vislumbrar o futuro, quando toda noite, falaria sobre o tempo para milhões de brasileiros. Entretanto, para as colegas de classe dela, o conhecimento não possuía valor algum e ela nunca deixaria de ser a Jeca sem graça, repelente de meninos, persona non grata no grupo das patricinhas precoces.

Observando o céu naqueles tempos pueris, Lica era hábil em diferenciar os tipos de nuvens, como também se atentava aos gráficos que indicavam sol, chuva, nevoeiro, neve, geada, tempestade, chuviscos, tempestade com trovoadas, nublado, parcialmente nublado.

Sexta série, pré-adolescência. Em busca de pertencimento, de esquecer as humilhações vividas no ano anterior, que não foram poucas, afinal de contas, ser a jeca da turma, a sem-sal, aquela pessoa que não fazia a menor diferença no grupo, ora, deixa feridas… nesse entremeio entre cair em depressão novamente e se refazer, a meteorologia trouxe inspiração para sonhar alto, tocando as nuvens e proseando com a velha amiga Lua.

TV a cabo era luxo. Que criança não quer assistir aos canais que passam desenhos animados o dia inteiro?

Lica seria a primeira a levantar a mãozinha, era uma dessas crianças e não se envergonhava. Nessa viagem conduzida pelo controle remoto, mal pôde se conter quando descobriu por acaso, logo no primeiro dia, como “assinante”, haver uma emissora dedicada à previsão do tempo 24 horas por dia. A mãe de Lica disse brincando para ela não me viciar no saudoso canal 25. No fundo, as duas sabiam que era questão de tempo.

O canal 25 chamava-se The Weather Channel (O Canal do Tempo) e apresentava boletins do tempo de todos os lugares do mundo, curiosidades sobre ciência, astronomia, sobre a própria meteorologia, informativos apresentados por meteorologistas ou jornalistas e também os boletins ancorados por eles, que se dividiam em um revezamento. Até hoje Lica se recorda das tardes calmas daqueles longínquos tempos, das músicas que a marcaram, contudo, o acervo no YouTube é bastante escasso, o suficiente para descobrir que nunca esteve sozinha, outras pessoas também tiveram suas infâncias marcadas pela excelente trilha sonora que tocava ao fundo dos boletins meteorológicos.

Lica tornou-se exigente: apenas aquele boletim do tempo no jornal não bastava. Sintonizar o canal 25 era muito melhor porque os dados eram atualizados de tempos em tempos, havia a previsão estendida para três dias e durante a programação era possível aprender muito sobre o assunto. Sempre que podia ver televisão e não estava passando nem Chaves, nem Os Simpsons, o companheiro dela era o Canal do Tempo e, a cada dia, o desejo apenas crescia.

O amor pela meteorologia e pela escrita estão mais interligados do que poderiam suspeitar, posto que Lica também era uma contadora de histórias nata, porém a insegurança a impedia de desenvolver as ideias no papel, a simples menção aos ridículo já era o bastante para afugentar os instintos. Pouco antes do sétimo ano, essa coragem despontou, reprimida vinte e poucos capítulos e muitos papéis rasgados depois.

Algum tempo depois, o canal, mesmo sendo popular e querido, foi descontinuado pela emissora-mãe, lá nos Estados Unidos. Lica conheceu as temidas exatas e teve uma adolescência mergulhada no caos interior, vivendo um bullying menos beligerante que no ensino fundamental, mas tão nocivo quanto. O sonho de ser mocinha do tempo, com isso, foi engavetado por tempo indeterminado, o “para sempre” era drástico demais.

Os meteorologistas naturalmente estão corretíssimos em afirmar possuir maior credibilidade para informar sobre as condições do tempo, todavia, não é de todo ruim pensar num intercâmbio entre a meteorologia e o jornalismo, priorizando sempre a informação. Lica gostaria de contribuir de alguma forma para difundir conhecimentos aos cidadãos e colaborar para a previsão do tempo receber o devido reconhecimento porque, embora não pareça, ela encontra-se no mesmo nível de importância da política e da economia.

Lica exemplifica que se há estiagem na região em que você reside, ela te afetará. É bem possível que diante de circunstâncias extremas, as autoridades decretem situação de calamidade, em virtude do baixíssimo nível dos reservatórios e entre em vigor um rodízio de água para evitar uma catástrofe, prejuízos nas pequenas e grandes plantações porque o preço dos alimentos influencia o cálculo da inflação, ou seja, você sente e muito no bolso.

Retomando o exemplo citado, é de extrema importância entender o porquê da falta de chuvas, se é influência do El Niño ou da La Niña porque cada qual possui suas particularidades e afetam o comportamento do clima de forma diferente em cada localidade, quando as precipitações voltarão a cair regularmente, quando é a estação seca e quando é a chuvosa. Pode parecer “conversa de ponto de ônibus”, para matar a hora antes que ela te mate de tédio. Para Lica não é, nunca foi e nunca será.

Alerta de granizo, tempestade, onda de calor ou de frio, geada, neve, chuva congelada, chuviscos, ciclone, tornado, furacão, nevoeiro… ufa… eles nos cercam e nos marcam… por exemplo, o primeiro beijo de Lica ocorreu numa manhã nublada de terça-feira, ela completou 15 anos numa segunda-feira quente e ensolarada. O cheirinho de grama molhada após uma chuva de verão enternece o coração, o arco-íris depois de uma tempestade, um amanhecer de outono nas campinas.

O ingresso no ensino superior foi tudo, menos feliz e produtivo. Torcida contra havia de sobra, “amigos” se mostraram autênticos haters; pessoas que deveriam alegrar-se sumiram. Os colegas eram deveras competitivos; quanto menor a turma ficasse, melhor. Lica via os poucos sonhos restantes serem atingidos pelas pás de cal, os professores desmereceram e desencorajaram os esforços dela, até uma profunda depressão vencer a batalha e transformá-la em uma morta-viva. 

Todos que a conhecem apreciam o que aqueles docentes soberbos e pedantes não apreciam/apreciavam. Tanta humilhação por um pedaço de papel, sendo que os predicados elementares não se ensinam em sala de aula. 

Lica sempre teve verdadeiro pavor de câmeras, uma contradição à criança que brincava de estar na televisão, mas, para realizar um sonho querido, mergulharia de cabeça e faria o medo temê-la. Se desejasse reeditar aquela apresentação bem-sucedida da feira de ciências do quinto ano para um formato acadêmico e polido, os tais “doutores” veriam os esforços dela com desdém. Essa é a explicação para a “procrastinação”, o medo do ridículo, da humilhação, da rejeição.

Ainda assim, Lica voltou a acalentar o desejo de se sentir útil e fazer da comunicação para dialogar com os espectadores sobre assuntos que lhe são de extrema relevância e sempre são relegados ao segundo plano. Ela não escreve para críticos e não merece ser avaliada por notas que dependem do critério parcial de pessoas nem sempre imbuídas de fazer julgamentos justos.

Alguns poderão desdenhar e torcer o nariz porque tem aplicativo de previsão do tempo e eles são muito úteis, porém se temos tantos canais de jornalismo se copiando e pouco inovando, o desejo de ser mocinha do tempo renasceu em Lica porque, durante a vida, ela buscou ser igual a todo mundo e fracassou, então, por que não ser ela mesma?

Pois sim, Lica não é inferior a ninguém por estar no espectro autista, não tem de se envergonhar de seus hiperfocos, do seu jeitinho de ser, pensar e enxergar a vida, não deve satisfação a ninguém e cai fora de competições. Os haters lhe desejam o mal, no entanto, por mais que não se manifestem, outros tantos a amam e, numa dessas, pode até haver alguém que se espelha nela. Desistir, de todas as outras opções, sempre foi fácil. Levantar a cabeça após tantas humilhações, portas fechadas e calúnias vai além de um gesto simbólico.

Com ou sem o diploma em mãos, Lica almeja honrar os princípios éticos e morais de uma autêntica comunicadora, aprofundar os conhecimentos sobre meteorologia e viabilizar o cumprimento do serviço à sociedade, da melhor forma possível, não por ansiar privilégios e paparicos, não mesmo, a força motriz é a gratidão de difundir o saber, ajudar alguém a entender um assunto complexo, isso serve de motivação para seguir em frente.

Nesse grande alvoroço de altos e baixos, Lica volta a escrever a própria história, não mais relegada a um desonroso papel coadjuvante, retoma o protagonismo de quem nasceu para criar as próprias oportunidades, do céu aguarda somente a chuva e a neve. Guardem este nome, respeitável público, vocês ainda ouvirão falar muito dele.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 29/10/2021
Reeditado em 07/07/2024
Código do texto: T7374412
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