O ninho de sabiá

    Como acontecia todas as manhãs antes do nascer do sol lá para as bandas da Serra do Loreto, o menino Santiago, que alguns minutos antes havia acordado com os ruídos que vinham da cozinha, provocados pela mãe mexendo com as panelas, permanecia quieto na cama para aproveitar ao máximo a preguiça dos lençóis. Vindo lá do quintal ele ouvia o cacarejar costumeiro do bicharedo miúdo, que desde a madrugadinha ali se reunia à espera da ração de milho, entoando a costumeira cantoria matinal. A aragem da noite em despedida, típica dos descampados do sul, que mesmo em pleno verão antes do nascer do sol, conserva ainda as temperaturas amenas no ambiente, dava ao menino Santiago, na inocência de seus doze para treze, uma vontade danada de permanecer assim até mais tarde. Porém sabia não ser possível, pois além de ser dia de trabalho, não chovia. E ele tinha muito que fazer. O pai já abrira a venda onde tomava o chimarrão à espera de algum freguês madrugador. Foi em meio a estes pensamentos que Santiago ouviu a mãe:
– Acorda Dico! Quer que o sol te bata na cara guri molenga. Levanta e vai botar as vacas na encerra para a ordenha. E já aproveita e passa lá em baixo no potreiro, ver se a Brasina já deu cria. Vamos! Ontem ela me pareceu bem chegadinha. Mas antes raciona as galinhas e a porca moura que já está aí fora roncando de fome, senão ela não cria os leitões.
Aquilo já era costumeiro na casa dos Lopes. Todo santo dia, ou santa manhã, mãe Cidoca, autoritária, porém ao mesmo tempo bondosa e compreensiva com aquele filho único, tirava-o bem cedo da cama para ajudar nas primeiras lidas da casa. O casal tivera ao todo quatro filhos, mas os três primeiros, um menino e duas meninas, muito cedo haviam falecido. Levara-os uma insidiosa epidemia de difteria, ou crupe, que o povo do lugar chamava de “mal do goto”, pois matava as crianças por asfixia. Foram-se os três, um após o outro, em pouco espaço de tempo. “Eram os anjinhos que estavam no céu junto à Nossa Senhora” – explicava a mãe, sempre que o menino, ao ver as fotos, indagava pelos irmãozinhos.
   Porém este último filho, que acabara de sair da cama e estava ali em sua frente espreguiçando-se, mãe Cidoca jurava, benzendo-se, que sobrevivera graças a São Tiago Apóstolo – o santo de sua devoção – atendendo à promessa: “Se for um filho homem levará seu nome e não cortará os cabelos até completar sete anos, além de usar, durante este tempo, roupas semelhantes às suas” – promessa feita diante da imagem do apóstolo entronizado no altar-mor da capelinha da vila do Recreio, logo que sentiu em seu ventre os primeiros sinais da quarta gravidez.
   E assim foi. O menino, que viera ao mundo chorão e esfomeado, mas muito saudável, foi obrigado a usar cabelo comprido, feito menina, até completar sete anos e vestir, pelo menos aos domingos quando a família ia à missa na capela da vila, um camisolão de cor marrom, desengonçado, que servia de motivo a incontáveis brigas com colegas da escola. Bastava que alguém, através de gestos ou trejeitos suscitasse dúvidas sobre sua masculinidade, para Santiago partir para cima do enxerido, pondo-o em fuga: “Foi promessa, seu abestalhado.” – explodia, ofendido.
– Não esqueças de soltar o baio no pasto. O coitado tem que pousar sempre na cocheira por causa dos morcegos. Bichos do inferno! Só querem chupar sangue. E também não esqueças de procurar a Brasina lá na beira do sangradouro, e... – não pode completar a frase, pois ao ouvir a palavra sangradouro, Santiago lembrou-se de seu tesouro, e foi saindo disfarçado como que tem um compromisso secreto e inadiável. E quando se viu no terreiro, sem qualquer “vou ali e volto já,” desandou a correr, espantando o bicharedo: galinhas, angolas, marrecos e perus, provocando, com isso, uma confusão de cacarejos e grasnados, e um bater de asas para todos os lados, com os perus gorgolejando em contraponto seus protestos nervosos. E na corrida como vinha, depois de pular por cima da porca moura que estendida no chão de terra batida amamentava seus sete leitões, e de saltar sobre a porteira de varas, sem abri-la, sumiu no descampado ladeira abaixo. Enquanto que a mãe, que fora até a porta dos fundos verificar aonde aquele destrambelhado escafedera, permanecia ali, surpresa, falando sozinha:
– Este guri está ficando meio esquisito – porém ao mesmo tempo o orgulho de mãe contemporizava: – Deve ser coisa da idade. Parece um galo novo ensaiando o primeiro canto e já apontando os esporões.
    Enquanto isto, “o galo novo” – no dizer da mãe – depois de vencer distâncias, desviando-se dos cupinzeiros e das moitas de cardo, chegava finalmente ao seu tesouro encantado: um ninho de sabiás que encontrara, dias atrás, engastado nas ramas de uma pitangueira baixa e galhuda, à beira do sangradouro.
   Ao aproximar-se do ninho, ofegante e nervoso, espantou a sabiá fêmea que, precavida, voou para um galho de angico e ficou lá no alto piando seus protestos. Enquanto que o sabiá macho, num bater frenético de asas dava vôos rasantes quase roçando a cabeça do intruso, ameaçando bicá-lo se não se afastasse imediatamente do ninho.
   Mas qual bicada qual nada. Ele já conhecia estas manhas. Os pássaros estavam apenas se fazendo de valentes, querendo assustá-lo. “Sou homem, ou não sou? Não é com essa patacoada que vão me intimidar” – refletia o menino, seguro de si e do que estava fazendo ao aproximar-se do ninho para conferir.
    Construído com gravetos, musgos, barba-de-paus e recamado com plumas macias da paineira, o ninho abrigava, em relativo conforto, dois rechonchudos e assustados filhotes, quase no ponto de serem recolhidos. Mais alguns dias e ele poderia levá-los para casa onde terminaria de criá-los. E isto ele sabia fazer muito bem: “sabiá gosta de minhoca e gafanhoto. E também de frutinhas do mato: guavirova, figo do mato e pitanga.” No mais, Dico já escolhera um destino para os bichinhos. Daria de presente a uma menina loira chamada Babete, mais ou menos de sua idade, com quem fizera amizade havia algumas semanas. Queria fazer-lhe uma surpresa. Por isso seus desvelos e cuidados especiais com os filhotes.
Babete era filha do Dr. Pascal Lambert, um engenheiro francês radicado há alguns anos no Brasil, responsável técnico pelas obras de uma grande barragem para uma hidrelétrica que estavam construindo no sopé da Serra do Loreto, a uns três quilômetros rio acima. Acontecera que, em certa manhã de um sábado qualquer, no início das férias de verão, quando Dico, que ajudava o pai atender a freguesia – muito numerosa nos últimos tempos com a vinda dos funcionários da construtora – viu chegar aquela figurinha estranha, menina loira, cabelos encaracolados, olhos de um azul brilhante, calças jeans, blusa de bom tecido, amarelo palha, falando de um jeito diferente, com palavras que ele quase não entendia. Porém tudo ficou muito engraçado quando, ao entrar na venda e aproximar-se do balcão, justamente onde o menino Santiago estava, perguntou:
– Tem picolé aí?
   Pai e filho trocaram olhares procurando uma resposta que pelo menos fosse gentil com aquela menina desconhecida, mas Dico não se conteve e esboçando um sorriso de mofa, respondeu:
– Picolé aqui? Tá doida guria? – e não conseguiu segurar uma risada frouxa e indelicada, como a troçar da ignorância recém-chegada. Foi preciso que o pai lhe tocasse no braço e pigarreasse para fazê-lo parar, ao mesmo tempo em que tentava explicar, com a maior gentileza possível, por que não tinham picolés.
– A energia elétrica da usina que seu papai está construindo lá em cima ainda não chegou por aqui, menina. Por isso a gente não faz picolés. Mas temos pirulito, tijolinho, doce de leite e caramelos – ofereceu.
– Oui, monsieur. Merci. – respondeu a menina, denunciando suas origens. Mas em seguida, após abrir um sorriso luminoso, emendou:
– Obrigada. Et une verre d’eau, tem? Água?
Entendendo o que a menina queria, Santiago correu até a cozinha de onde veio com uma caneca alouçada, com água até a borda, e colocou-a sobre o balcão. Ato que lhe rendeu uma reprimenda do pai:
–Assim não, guri. Pega um copo de vidro. Não vê...
–No non, monsieur! – justificou-se a menina – C’est bonne quand memme. Está bom assim. – e começou a beber, enquanto que do outro lado do balcão Dico observava aquela figurinha, bebendo em sorvos pequenos, fitando-o sem tirar a caneca da boca, com aqueles olhos azuis de doer, fixos nos seus, ele se lembrou daqueles “santinhos” com figuras de anjos que mãe Cidoca mostrava-lhe sempre que ele indagava sobre os irmãozinhos que estavam no céu. Apenas alguns segundos daquele olhar fixo foram o bastante para Dico sentir-se invadido por uma sensação diferente, um misto de simpatia e amizade, um sentimento estranho como jamais sentira. Mesmo porque suas amizades até então se restringiam aos colegas da escola: “– uns chatos e umas pretensiosas.” – definia. Agora não. Sentiu algo diferente. Um aperto no peito, um desconforto na garganta e um frêmito difuso a percorrer-lhe os membros que o deixaram embasbacado. Teve dificuldade para abrir a boca e falar. Queria dizer alguma coisa, mas não encontrava palavras. Por fim, depois de um silêncio nervoso ele conseguiu pronunciar, timidamente:
– Como é teu nome?
– Mon nom? Je m’appele Marie Elisabette Lambert – respondeu, recolocando a caneca sobre o balcão – Mas papá Pascal me chama Babete.
– Pois o meu é Santiago Lanes Lopes. Mas todos me chamam Dico.
– Comment? Santago...lá...ló? – tentou pronunciar. – Non. Dicô é mais bonito. É bonito.
   E agora era ela que se desdobrava numa risada tão sonora e cristalina quanto desprovida de motivo aparente, com o só acontece com almas puras e inocentes. Então ele também não conseguiu conter o riso e desandaram a rir juntos, sem saber de que, nem por que. Isto serviu para descontrair o ambiente e afastar um pouco o nervosismo do menino:
– Então tu querias picolé? Picolé aqui, oh! Só laranja. – e também ria-se a gargalhadas.
– Vous êtes fou. Um bobo, que tu és. Oh! Mon Dieu!
   Seu Honorino, que observava à distância aquela gaiatice dos dois, meneou a cabeça murmurando baixinho: – Santa inocência, santa paciência.
    Entretanto, aquelas risadas puras como gorjeio de pássaros, foi como um selo a demarcar o início de uma amizade entre aquelas duas almas inocentes que, sem se aperceberem estavam entrando em sintonia fina. Uma amizade que começara no início das férias de verão – único tempo que Babete dispunha para deixar o internato do colégio de freiras onde estudava na cidade de Santa Maria, para passar uns dias com papá Pascal – e que prometia continuar verão adentro, já que a partir daí as vindas de Babette às compras tornaram-se mais freqüentes. Viesse com o pai ou com algum funcionário de confiança, pelo menos uma vez por semana ela aparecia. Na maioria das vezes era só um pretexto para poder estar com “Dicô,” – como ela dizia. Pois não comprava nada. Enquanto que ele, principalmente aos sábados, ficava de ouvidos atentos a ruídos de motores, ou com os olhos buscando ao longe, no rumo da serra, alguma nuvem de poeira que denunciasse a aproximação de um carro. Era uma amizade nova que lhe provocava uma inexplicável ansiedade.
    Nas ocasiões em que estavam juntos não faziam nada além do que é permitido para duas crianças entre doze e treze anos. Porém, como era gostoso estarem a conversar sobre assuntos próprios da idade. Certa ocasião ela contou que não conhecera a mãe. Morrera quando ela era ainda bebê. Já da parte dele o assunto mais falado era a história dos irmãozinhos que viraram anjos. História que a emocionava. Ele contou também que até os sete anos usava cabelos compridos e roupas de santo.
– Oh mon Dieu! Que engraçado – ela novamente morria de rir.
– Engraçado nada, sua boba. Foi promessa – corrigia Dico, amuado.
E dessa forma, à medida que o verão seguia seu curso, empurrado lá para trás da Serra do Loreto pelos ventos outonais, que nos campo do sul são prenúncios do fim das férias e da chegada do tempo das despedidas e início das saudades, transcorria aquela amizade serena entre os dois. Mas tanto para Dico como para Babete era como se o tempo, com suas variações climáticas e suas ventanias pré-outonais, não houvesse encontrado o caminho da volta e por isso permanecia ali estacionado.

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    Antes de se afastar do ninho, ele deu três cuspidelas em cima dos filhotinhos. Era uma “simpatia”, cujo poder só ele conhecia, para protegê-los da sanha da cobra verde, voraz devoradora de filhotes de passarinhos. E após aliviar a bexiga ali mesmo no pé da pitangueira e deixar as avezinhas sossegadas ele partiu serelepe, um pouco correndo ou saltitando numa perna só, feito Saci, ou por vezes soqueando o ar, numa demonstração de que estava de bem com a vida, ao mesmo tempo em que imitava em voz alta grito das saracuras, que lá na ribeira queixavam-se, espalhafatosas e lamurientas: “quebrei três potes, quebrei três potes”, ele por fim saiu à procura da vaca Brasina.
    Depois de cabriolar por bom tempo beirando o sangradouro, levantando perdizes das moitas de capim gordura e de correr atrás de um casal de quero-queros só para vê-los incomodados e após jogar uma pedrada num bando de pelinchos que, encarapitadas na galhada desnuda de um salseiro, aqueciam-se ao sol, deu de cara com a Brasina.
    A vaquinha já estava com a cria ao pé, ainda molinha, mas bem esperta e mamando esfomeada. Conferiu o sexo. Pois não é que era uma fêmea? Ora viva! Ainda mais com esta pelagem abrasinada, tigrada como a da mãe, não é uma lindeza?
– Lindeza... Lindeza? Já sei: vou te chamar Lindeza. – falou alto dirigindo-se ao animalzinho como se este fosse entendê-lo. Muito se alegrou com o achado, pois quando ela crescesse seria mais uma vaca leiteira para aumentar o plantel de pai e o tamanho dos queijos de mãe. Aumentar o plantel sim. Desde que não ultrapassasse a lotação de dez animais que as pastagens do sítio suportavam. Pois não gostaria que acontecesse como no ano passado, quando todos os machos e mais uma vaca velha, a Bordada, tiveram que ser vendidos ao açougueiro da vila, para abate. Principalmente em se tratando da Bordada, a vaquinha que o alimentou com seu leite, quando era ainda criancinha. Pois naquele dia, de péssima lembrança, quando Santiago viu a vaca sendo conduzida pelos tropeiros ao matadouro, rindo-se às gargalhadas, escondido atrás de um pé de cinamomo, ele foi às lágrimas.

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    O sítio de onde a família dos Lopes tirava o sustento não era grande. E parte do sustento, provinha de uma vendinha, um típico bolicho beira de estrada que era atendido pelo pai. Vendia-se ali praticamente de tudo. Desde ferramentas a gêneros necessários para o dia-a-dia no campo. O terreno fazia testada com a estrada que vem da cidade de Iguaritama, e segue rumo a Serra do Loreto. E fazia fundos com um antigo leito do mesmo rio que está sendo barrado para a usina hidrelétrica. Conta-se que antigamente, em tempos imemoriais, o caudal principal do Jaguari Grande passava era por ali, e não pelo outro lado da colina, onde corre hoje. Certamente esta mudança houve por obra natural das grandes cheias do início do século passado, ou mais, quando o rio foi aos poucos mudando seu curso. E o que restou do antigo leito é apenas uma depressão onde se acumulam as águas da chuva em pequenas lagoas, que só “sangram” quando há grandes cheias no rio. Por isso a vizinhança rincão do Recreio, chama estes resquícios do antigo leito de “sangradouro.”
    A casa, de alvenaria rústica coberta de telha canal – que já fora moradia de Gomercindo e Josefina Lopes, pais de Honorino – era muito antiga, mas bem conservada. Mantê-la com boa aparência era muito importante, principalmente para dar um ar hospitaleiro ao bolicho.
    Se eles não levavam uma vida regalada, pelo menos lhes sobram alguns trocados no fim do mês que iam para uma poupança destinada a custear os estudos do guri na cidade a partir do próximo ano. Projeto que seu Honorino vem acalentando, desde que o guri completara o primário na escolinha da Vila do Recreio. Principalmente agora, depois que a CCBEL – a grande empreiteira construtora – instalou o canteiro de obras para a construção da barragem do Segredo, no Jaguari Grande. Isto mãe Cidoca considerava uma benção. Principalmente para o futuro do menino Santiago.
    Realmente, por ser basicamente constituída de pequenas propriedades – glebas residuais da antiga Fazenda do Recreio, sesmaria do coronel Cloraldino Lopes, bisavô de Honorino – que ao das gerações foi sendo partilhada, resultando daí dezenas de minifúndio voltados ao pastoreio, a região dormitava numa letargia centenária. A chegada de centenas de operários com suas famílias, bem como os novos meios de transportes e os recursos da CCBEL, serviram para dar esta sacudidela de progresso na região. Até a vila do Recreio – antiga sede da fazenda – pegou carona na febre da barragem, pois de uma hora para outra viu sua população aumentar com a chegada de novos moradores: as famílias de operários da construtora. E também os negócios dos Lopes, uma vez que o pessoal da obra vinha sempre, de jipe ou caminhoneta, abastecer-se de gêneros na venda. E assim, de repente, aquele bolichote pobre, que sobrevivera até então basicamente do comércio de cachaça, rapadura e os queijos de Cidoca, foi aos poucos se transformando em uma vendinha interiorana de médio porte.
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– Estamos com “a” canal de desvio pronto, seu Honorino – informava naquele dia o engenheiro francês, carregando nos “erres” e acentuando sempre na última sílaba – Sua propriedade vai ficar mais “valorrizada” quando o rio voltar ao seu leito antigo. –”Verrá, o senhór.”
    E, enquanto observava com canto dos olhos os dois garotos correrem pelo descampado, do outro lado da estrada, atrás das borboletas azuis que nesta época do ano esvoaçam sobre as flores do mal-me-quer, ele continuava a informar ao desconfiado bolicheiro que as últimas cargas de dinamite já estavam colocadas. E que a explosão que desviaria o curso do Jaguari Grande poderia ocorrer a qualquer momento.
– Tudo depende de uma questão de logística – explicava.
Como se tratava da maior explosão já ocorrida na obra, os dinamitadores deviam acertar as cargas cronometricamente antes do toque final, para que tudo ocorresse em perfeito sincronismo para explodir em milésimos de segundos. Seria um enorme desastre se algumas cargas falhassem. Haveria perda de tempo, com o conseqüente aumento dos custos, além de tornar o desarme das cargas falhadas um trabalho extremamente difícil e perigoso.
– Eu “recomenda” cuidado a partir de hoje. “Non” deixar ninguém ficar perto “da” leito antigo “da” rio. Será muito perigoso. “Non” sabemos que volume de água “virrá” depois da “exploson” – recomendava Dr. Pascal antes de chamar pela filha, que já retornava, em companhia do menino:
– Allons, Babette. Vite...vite. “Allons enfants de la Patrie” – brincou, descontraído, recitando o primeiro verso da Marselhesa.
– Oui Papá. Regardez ici, les papillons – ela corria a mostrar-lhe uma sacolinha de plástico onde se debatiam dezenas de borboletinhas azuis, querendo voar para a liberdade. E a seguir, dirigindo-se ao menino, acenou sorridente cheia de gaiatice antes de embarcar no jipe que já esperava com o motor ligado: – Au revoir, mon ami. Au revoir monsieur Dicô
   Após o veículo partir deixando para trás uma nuvem de poeira, Santiago, que ficara acompanhando com o olhar até o jipe sumir na curva da estrada, lembrou-se dos últimos afazeres do dia: prender os terneiros no chiqueiro, o baio, na cocheira “por causa dos morcegos” e racionar o bicharedo miúdo. Ao retornar, depois das tarefas cumpridas, passando pela cozinha ele pode ouvir um resto de conversa dos pais, que naquele fim de tarde, como era costume, degustavam as últimas cuias do dia:
– Pode ser. Mas eu tenho cá minhas dúvidas – alegava Honorino. Pode ser patacoada.
– Mas se ele disse, é por que tem fundamento. A gente não pode ficar aqui feito dois brocoiós, esperando que o pior aconteça.
– Tudo bem, mulher. Mas nada de alarme. Apenas avisa o guri.
Neste exato momento chegava Dico e quis saber:
– Avisar o que, meu pai?
    Antes de responder, Honorino fez roncar a cuia, olhou para a mulher, pigarreou, encheu a cuia novamente e passou à mulher:
– Esse o doutor Pascal. Sabe. Ele esteve aqui conversando com a gente.
– Sei. Eu vi.
– Pois é. Ele veio com uma história de que vão mudar o rumo do Jaguari Grande. Coisa que eu não estou acreditando. Se Deus colocou ele lá onde está, não será um doutor francês com suas magias que vai querer contrariar.
– Mudar o rio? – o menino Santiago arregalou os olhos, mais cheio de dúvidas do que o próprio pai.
– É. Seja lá o que Deus quiser. Mas, como o seguro morreu de velho, é bom ficar alerta quando andar lá na ribeira do sangrador. Não se sabe, não é?
– Tá bom, pai. Mudar o rio, hein? – e a conversa terminou por aí. E Santiago, como era costume, logo após o jantar foi cedo para cama. E antes de adormecer não deixou de se lembrar da conversa com o pai. “Esse doutor Pascal, pai da Babette, é meio esquisito. Onde se viu querer mudar de lugar uma coisa que foi Deus que fez assim? Ora!”
   No outro dia, antes do sol nascer, o menino Santiago acordou com o ribombo de um trovão que fez estremecer portas e janelas. Parecia que o mundo viera abaixo com uma explosão longínqua ecoando nas quebradas e desfiladeiros.
   Sem esperar pelo chamado da mãe ele pulou da cama, sem se importar com a preguiça dos lençóis e, escuro ainda, saiu tateando rumo à cozinha onde os pais também tateavam a procura dos fósforos para acender a lamparina.
– Meu São Tiago. Velei-me meu santo! Socorrei-me Nossa Senhora! – rezava mãe Cidoca, já com o terço nas mãos, desfiando contas, enquanto Santiago, tremendo, abraçava-se a ela.
– Calma Cide. Foi só a explosão na Barragem. Só isso. O homem tinha razão. O mundo não vai acabar – era Honorino tentando controlar a situação.
– Será que o rio vai mudar mesmo, pai?
– Não sei, filho. Mas se mudar, tá mudado. Vamos fazer o que? E agora calma, que Deus é grande e o mundo é nosso. Acende o fogo, mulher. E chega de choradeira, que ninguém aqui se machucou.
   Depois, passado o primeiro momento de pânico, com a chaleira chiando no fogão e o chimarrão correndo de mão em mão entre três pessoas assustada, falando a meia voz sobre o acontecido, e já se notava pelas frinchas das janelas que o dia vinha clareando, quando Honorino fez um gesto de quem pede silêncio:
– Ssshit!
– Que foi Nonô?
– Escuta!
   Suspenderam a respiração e puderam notar um rumor surdo que vinha do lado norte, que parecia o ruído de muitos carros, mas que não eram carros. Um fragor de estouro de boiada ou de muitas águas a rolar em turbilhões, ferindo o silêncio da madrugada.
– É o rio! – bradou Honorino, em pânico – eles conseguiram mudar o rio!
– Minha Nossa Senhora! – benzeu-se a mãe, entrando novamente em desespero.
– E gora pai? – perguntava o menino, sem entender direito o que estava acontecendo.
– Agora, só depois de clarear o dia é que vamos saber o que fará o Jaguari Grande no sangradouro.
– Sangradouro? Por que, pai? – e já demonstrando apreensão: – Será que vai encher, mesmo?
– Ora, filho. Como é que se vai saber. Se todo este rumor que vem lá da serra for água, o sangradouro vai ser alagado mesmo. Eu acho.
Aí, pronto. Santiago deu um pulo da cadeira, como um gato selvagem acuado por uma matilha de cães e berrou:
– Essa não! Essa não! – e incontinenti empurrou a cadeira com um ponta-pé, desvencilhou-se da mãe que tentara agarrá-lo, do pai que o cercava para acalmá-lo e rompeu porta a fora, gritando desesperado:
– Essa não! Meus sabiás, não! Desgraçados! Meus sabiás, não!
   A partir daí o pai correu tentando segurá-lo. Mas alcançá-lo, quem dera? Pernas de cinqüenta não são pernas de treze. Enquanto que dona Cidoca, ficava ali, petrificada, agarrada ao terço balbuciando todas as ladainhas conhecidas.
– Volta aqui, guri! Tu tá louco, Dico? Cuidado com a enchente, animal. Volta Santiago, volta Dico! – berrava o pai, em desespero. Porém verdadeiramente preocupado ele ficou quando percebeu, aos primeiros raio de sol que já lambiam os picos da serra, que o turbilhão que descia da serra era de fato o Jaguari Grande com todo seu caudal, rolando, como um roldão de avalanche, espumando, rasgando as barrancas, derrubando árvores, rompendo obstáculos e levando tudo por diante. Desesperado, pois ao perder na corrida havia perdido também o menino de vista, e sem ao menos saber que rumo este havia tomado ou onde se metera o capetinha, só lhe restava gritar e correr de um lado para outro:
– Santiago! Santiago! Olha a enchente. E como resposta só ouvia o ronco surdo das águas que se avolumavam, mais e mais. Viu-as chegando e com uma onda mais volumosa engolfar de vez o sangradouro. Sentiu um esmorecimento geral. “Meu Deus! Não permita que isto venha acontecer comigo, logo agora.” – refletia como em uma reza.
– Santiago! Filho! Onde é que te meteste? – gritou outra vez. E foi andando seguindo a corrente, águas abaixo, já temendo pelo pior. “Por que, meu Deus? Que coisa importante ele teria para sair desatinado, gritando: Meus sabiás, não? Meus sabiás, não?” – refletia o pai, já em meio a uma confusão mental, quando ouviu o que lhe pareceu soluços de um choro convulso. Prestou atenção e viu atrás de um moita de branquilho, sentado no chão à beira da corrente, com as pernas encolhidas formando uma cruzeta, braços caídos sobre os joelhos chorando desesperado. Era Santiago.
– Seu danadinho! Que foi que te deu, guri? – falou acercando se. Quando este viu o pai, mais convulso se tornou o pranto.
– Calma Dico. Pai está aqui. Depois tu me contas qual é o problema. Tá bom? Vamos pra casa que a mãe está esperando. – falou, enquanto o erguia do chão e abraçando-o, tentava consolá-lo. Mas o pranto continuava convulso e sentido.
–Tá bom. Então conta pro pai – insistiu, com bondade, ainda emocionado.
Só após mais alguns soluços foi que o menino, após enxugar com a manga da camisa as lágrimas e o nariz que escorria, apontou para uma pitangueira desarvorada pelas águas, em meio à enchente, onde podia se ver algo que fora antes um ninho de passarinhos, pendurado, esgarçado e vazio, e balbuciou:
– O ninho. Pai, os filhotes, o rio levou. – e tornou às lágrimas.
– Tá bom, filho. Depois a gente arruma outro. Agora vamos embora. Não chores mais.
   Em vão tentou argumentar que outros ninhos de sabiás seriam facilmente encontrados. Se não fosse neste, poderia ser no próximo verão. Mesmo por que um ninho é apenas um ninho. Que importância tem um ninho de passarinhos?
– Mas, pai... o senhor não sabe, a Brasina?
– Que tem a Brasina? Não vai me dizer...
– Pai, eu vi a Brasina sendo arrastada pela correnteza. O rio também levou ela – lamentava-se o menino, inconsolável.
   E com mais esta péssima notícia, a somar-se aos maus momentos daquele dia, seu Honorino, que até então vinha tentando controlar as emoções, quase baqueou. Teve palpitações, a respiração ficou ofegante e um esmorecimento geral ameaçava tolher-lhe os movimentos. Porém com muito esforço ele e o menino continuaram andando, seguindo a corrente a uma distância segura a fim de observar os resultados da enxurrada no antigo sangrador, onde, vezes sem contas, os dois costumavam vir à noite pescar traíras. E enquanto andavam silenciosos, com o pai apoiando um braço sobre os ombros do menino, Honorino tentava concatenar as idéias: “Tudo bem. Primeiro fora o susto provocado pela explosão. Passou. Depois a quase perda de Dico – que felizmente ficara só no “quase.” E agora mais esta? A Brasina, vaquinha nova, de boa raça, boa de leite, mansinha como um toco, prejuízo é grande. Mas isso não fica assim – calculava. Vou querer indenização. Ora, se vou. A empresa vai ter a santa paciência. Vou querer o valor de uma vaca de boa raça, com cria ao pé. “Podem esperar.” – aí lembrou-se da cria, da bezerra de que Dico não falara e perguntou:
– E a bezerrinha? Não vai me dizer que também foi águas abaixo?
– Não sei. Não vi. Só vi a ponta do focinho da Brasina, fora dágua, bufando, e a correnteza levando ela. Eu não pude fazer nada, pai.
– Tá certo. Fazer o que? Agora é melhor a gente esquecer e ir para casa. Tua mãe deve estar preocupada. Coitada.
Neste momento pareceu-lhes ouvir um mugido de animal cansado vindo lá de longe, do fundo da várzea onde um capão de mato havia escapado do alagamento.
– É a Brasina! – gritou Santiago – eu conheço o berro. É a Brasina, pai. Garanto.
E sem mais delongas saíram apressados no rumo de onde parecia ter vindo aquele mugido – que para Dico soara mais como um chamado ou um pedido de socorro. E logo ali encontraram a vaquinha Brasina saindo do capão, caminhando lentamente e mancando. E de trecho em trecho parava, virava a cabeça para trás e mugia. Eram chamados para a bezerrinha que vinha logo atrás, esforçando-se para alcançar a mãe e respondendo com mugidos que mais pareciam balidos de ovelha.
Quando os animais pararam e eles puderam se acercar, foi aí que Honorino pode avaliar o estado lamentável da vaca. Várias escoriações pelo corpo todo, um ferimento mais profundo na paleta, sangrando, e outro no úbere. Sinais de que ela lutara muito contra a correnteza enfrentando o galharedo solto no redemoinho para se safar com vida.
– Vaquinha valente – murmurou Nonô, passando a mão sobre o lombo do animal para tirar alguns gravetos que se haviam entremeados no pelo.
– Será que ela vai morrer, pai? – quis saber Dico, ao ver a vaca sangrando.
– Deus não há de permitir, filho. Até porque ela tem que terminar de criar a bezerra. Não é, meu guri? E agora vamos tratar de curar estes lanhos, estancar este sangue com borra de café e aplicar creolina para não abichar. Vai ficar boa, sim. Se Deus quiser.
Nisto eles ouviram alguém gritando lá de cima:
– Nonô! Nonô! O que é que está fazendo aí homem de Deus? Querem me matar de susto? – era dona Cidoca que vinha a passos largos, quase correndo, com o chale jogado sobre os ombros, esvoaçando feito uma bandeirola ao vento. Eis que, cansada de esperar em casa e após terminar suas ladainhas resolvera sair à procura de seus entes queridos. E finalmente os encontrava, tocando por diante a Brasina e a Lindeza rumo ao curral. Ao vê-la muito nervosa, Nonô tratou de acalmá-la:
– Está tudo bem, mulher. Vam’bora pra casa. Lá eu te conto tudo – e começaram a subir a ladeira, como em uma procissão: na frente ia a Brasina com a bezerra ao pé, logo após, seu Nonô e dona Cidoca num mesmo alinhamento, e mais atrás o menino Santiago, que ao contrário de outras ocasiões, desta vez ia bicudo e taciturno, remoendo ressentimentos.

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   Embora houvesse passado o susto provocado por aquela série de acontecimentos inesperados e a vida no sítio dos Lopes tenha entrado aos poucos num estágio de normalidade, contudo permanecia ainda, principalmente para mãe Cidoca, uma ponta de preocupação. Profunda conhecedora, até da alma, das pessoas que a cercavam, ela notou que depois daquele dia, algo de errado vinha ocorrendo com Santiago. Para ela não adiantava querer disfarçar, ou esconder uma situação de apreensão ou desagrado, que ela logo farejava no ar e ia em cima. “Qual é o problema, seu fulano?” ou “Onde é que a mutuca te picou, seu beltrano?” Nada lhe escapava. Parecia até que de mãe Cidoca tinha uma espécie de sexto sentido. Daí sua desconfiança com as modificações de comportamento do filho.
   Que ele estava mudando de idade – daqui dois meses fará treze anos – ninguém melhor do que ela para entender. As mudanças físicas ela reconhecia como naturais da idade. Pois não fora ela que outro dia o comparava com “um galinho novo” apontando os esporões?” O porte físico, a voz em falsete, penugem já apontando no rosto, eram compreensíveis. Mas o que ela estranhava ultimamente era sua mudança de jeito. Ele, que sempre fora alegre e galhofeiro, que gostava de pregar peças nos incautos, para depois ficar gozando com a cara de bobo que faziam, a partir daquele dia – que ficou conhecido como o dia em que mudaram o rio de lugar – Santiago era outro. Mais sério. Nenhuma espécie de brincadeira. Nem aquela sua preferida, de amarrar um cordão nas penas do rabo de uma galinha, com um chumaço de palha de milho na ponta, e soltá-la no terreiro para vê-la correr desesperada até que o cordão se rompesse ou que a palha caísse. Nem nessa brincadeira ele achava mais graça.
    Também não passara despercebida, para arguta observação materna, aquela amizade dele com essa menina estrangeira, de falar arrevesado. Porém nunca pudera observar algo além de uma amizade entre duas crianças. “Mas nunca se sabe. Já ouvi dizer que amor não tem idade. E se ele estiver apaixonado?” – refletia preocupada, remoendo estas indagações, enquanto descosturava a barra de uma calça para aumentar o tamanho. “Esse guri está crescendo como abóbora” – pensava Cidoca, orgulhosa.
    Porém certa manhã, madrugadinha, na hora do chimarrão, insofrida ela perguntou ao marido:
– Nonô, tu não tens notado como Dico anda diferente?
– Diferente em que, Cide? Claro, mulher, o guri está crescendo. Já está um homenzinho – tentava responder o marido, um tanto desligado.
– Não é isso. Eu acho é que ele está diferente. Anda triste. E até meio esquisito. Outro dia, em vez de atender aquela menina da barragem, como fazia sempre que ela aparecia por aqui, ele foi se esconder no paiol. Esquisito, não? Deixou a pobrezinha circulando pelo quintal, indagando e espichando os olhares pelos cantos chamando: Santiago! Dico! Onde está você?
– Bobagem, Cide. Vai ver que ele só estava indisposto naquele dia. E também pode não passar de birra de criança, eu acho. E também acho que tu estás vendo coisas, mulher. Deixa para lá – tentou desconversar, Honorino.
– É... Mas aí tem coisa. Ora se tem. E eu vou campear a verdade – planejou Cidoca.
   Mais tarde, ao encontrar o menino de jeito à mesa do café – que ela havia preparado com pão caseiro, queijo curado e queijo fresquinho, coalhada, salame cortado em rodelas bem fininhas e marmelada (tudo ao gosto dele) – num momento em que ele estava distraído, com olhar ausente, ela também sentou-se e puxou uma conversa cheia de rodeios. Primeiro perguntou pelos animais do campo. Se a Brasina havia sarado do ferimento, se não bichara, e se o umbigo de Lindeza já secara, se os leitões da porca moura estavam se desenvolvendo bem?
– E o Baio? Os morcegos continuam atacando? – a todas as perguntas Dico respondia só o necessário. Sim, sim. Não, não. E aí ela achou que devia aprofundar a sabatina:
– Não viste, outro dia, quando a menina Babete esteve aqui chamando por ti?
A resposta dele foi evasiva.
– De certo que não. Não sei. Não me lembro.
– Vocês estão de mal? Vocês se gostam?
– Ah... Não chateia, mãe. Olha, eu acho que gosto dela como amigo. Não sei. Acho...– e passou a abrir-se com mãe. E ela permaneceu calada por um bom tempo ouvindo aquela alminha inquieta e inocente extravasar suas preocupações, para concluir, com seu conhecimento maternal, que ele sentia algo mais profundo do que uma simples amizade. Daí que, entre este algo mais profundo que ele sentia por Babete e o sentimento de raiva que o Dr. Pascal lhe provocara por ter sido o responsável pelo desvio do rio que matou os filhotes de sabiá, deixaram sua cabecinha confusa.
– Eu queria fazer um agrado. Eu acho que estava gostando dela, sim. Mas não gosto do pai dela. Ele é muito ruim.
– O que é que tem isso, filho? Não tem nada a ver uma coisa com a outra. – agora mais tranqüila Cidoca começava a entender que tudo não passava de coisas de um adolescente enfrentando as primeiras preocupações.
– Agora ela vai embora e pode não voltar mais por causa do pai dela. E eu queria que ela voltasse no ano que vem. Por isso que queria dar pra ela os passarinhos.
Nesta altura da conversa Cidoca achou que tinha encontrado a solução:
– Mas é claro, filho. Quando ela voltar nas férias do ano que vem, tu achas outro ninho de sabiá e ai oh, seu bobinho. Fala pra ela isto.
­ A senhora acha que adianta? – insistiu o menino, desconfiado.
– Claro Dico. Experimenta. Só não vais fazer como no outro dia quando foi te esconder no paiol, seu danadinho. Pensa que mamãe não enxerga as coisas?
E encerrando aquela conversa entre mãe e filho, ela viu o menino levantar-se – “como cresceu este piá!” – pensou – e contornar a mesa para abraçá-la e dar-lhe um beijo afetuoso na face.
– A benção, mãe – eu vou ver se a Brasina já sarou das feridas.
   No sábado seguinte, após o café da manhã Santiago saiu cedo para o campo. É que naquela noite tivera um sonho que o deixara intrigado, nem tanto pelo sonho em si, mas pela sensação estranha que o mesmo lhe deixara. Por fora se sentia leve, com vontade de saltar, correr, voar. Mas por dentro ainda sentia um aperto prazeroso no peito e um gozo indescritível no resto do corpo que o deixava ansiado. Por isso ele precisava ir ao campo, e ao rio, para pensar, distrair-se junto à natureza e espairecer:
   No sonho, “O rio era o mesmo, mas estava enorme. Como um grande lago. E ele estava a caminhar em suas margens observando uma água ruidosa e ondulante. Sua vontade era entrar no rio para procurar o ninho de sabiás, pois lhe parecia que os filhotes estavam ainda na pitangueira à sua espera. Tentou entrar na água. Estava muito fria. Em vez de nadar ele notou que podia caminhar sobre as águas. Aquilo parecia muito estranho. Mas prosseguiu até sentir que afundava e começava a se afogar. Gritou por socorro. Já estava morrendo quando se sentiu puxado para fora d’água por um anjo. Não era um anjo. Era Babete que o socorria. Ela estava sorrindo e mostrando os dois passarinhos presos numa gaiolinha dourada. Então ele viu. Eram os filhotes de sabiás. Ela apenas acenava mostrando a gaiolinha. Depois acercava-se, sorria e falava, mas ele não conseguia ouvir e a seguir entregava-lhe a gaiolinha. Estava vazia. Ele quis reclamar mas ela fazia um sinal de silêncio, com o dedo sobre os lábios, e logo o abraçava com força, para a seguir beijá-lo na boca, com doçura e calor.”
Acordou com uma ereção. A primeira de sua vida. Pulou da cama e foi lavar o rosto com água fria.
   E agora ele estava a observar os estragos que o Jaguari Grande fizera no sangrador – que havia desaparecido completamente – e as árvores marginais estavam inclinadas no sentido da corrente, mas as águas fluíam calmamente. Observou o mesmo bando de pelinchos dando seus gritos característicos de alarme quando notam alguém se aproximar. Viu de longe dois pássaros no alto de uma guaviroveira que se pareciam com os mesmos sabiás. “Eles devem estar tristes, pois acabam de perder seus filhos” – pensou. No entanto não demonstravam, pois se divertiam comendo frutinhas maduras. Distraiu-se ouvindo o pio lamentoso da perdiz implorando: “vamos fazer as pazes?” enquanto o perdigão respondia lá de longe: “eu, nunca mais”, quando ouviu uma voz que lhe pareceu docemente conhecida:
– Dicô! Santiago! – era Babete que vinha descendo a ladeira correndo, braços abertos imitando um aviãozinho.
– Ou est vous? Onde está você? – disse ao chegar e sentar-se na grama para aliviar a respiração ofegante.
Neste momento, sentindo-se culpável e arrependido ele desejou ser castigado e pedir desculpas. Porém permaneceu calado, perturbado com aquela aparição inesperada. “Eu sou um abestalhado mesmo” – pensava
– Eu perguntei para votre mère onde tu estavas. Ela me disse que eu te encontraria no rio – tratou de explicar Babete, ainda sentada na grama, recostada nos cotovelos, pernas estiradas formando um “V”.
Ele não encontrou palavras, tal era sua emoção. Somente teve ânimo de pegar-lhe a mão e balbuciar:
– Vamos subir. No caminho a gente conversa.
Caminhando no rumo de casa, de mãos dadas, enquanto ele mortificava-se pela bobagem que fizera ao querer inculpá-la pelo ocorrido com os passarinhos, ela tagarelava sem parar contando que na próxima segunda feira iria embora.
– Volto ao colégio, mon chery amie – anunciou com uma névoa de tristeza no olhar. E disse ainda que planejava voltar nas próximas férias, já que estas foram maravilhosas, e que ele fora o melhor amigo que já encontrara, e que gostaria que durante este período de ausência ele escrevesse muitas vezes, que papá Pascal se encarregaria de fazer as cartas chegar até ela.
    A todas estas, Santiago ia sentindo-se apequenado e sem assunto ante a garrulice da amiga. E ao mesmo tempo sentia-se invadido por aquela mesma sensação estranha que sentira no primeiro momento em que a vira – e que tornara a sentir repetidas vezes. Queria parar e dizer qualquer coisa que demonstrasse como era prazerosa era sua presença. Mas não falava nem dava demonstração. Uma sensação estranha na garganta, como um caroço, tolhia-lhe a voz. Ao vê-la tão próxima, tagarelando, ele ficara nervoso e perturbado.
A certa altura quando já iam a meio caminho de casa, à sombra de um pé de sina-sina, isolado no meio do campo, carregado de cachos pendentes de florzinhas amarelas, Babete adiantou-se alguns passos, colocou-se à sua frente e fê-lo parar. E abrindo um sorriso cativante, cabeça meio pendente para um lado, munhecas na cintura, ela olhou-o fixamente e perguntou:
– E você? Não diz nada, Santiago? Amanhã vou embora.
E assim permaneceram, frente a frente, por alguns segundos até que, ofegante e nervoso ele se acercou, pegou-a pelas mãos e puxou-a para si, com vagar e com doçura. No princípio ela esboçou certa resistência, mas aos poucos foi cedendo, cedendo, até que, finalmente, ele conseguiu achegar-se  a ponto de sentir seu álito morno, para, finalmente, seus lábios se encontrarem. Foi um beijo rápido. Para Babete foi o primeiro. Mas para Santiago, que sentiu um frêmito prazeroso a percorrer-lhe o corpo todo, foi igualzinho ao do sonho..



Vinícius Lena
Enviado por Vinícius Lena em 14/11/2007
Reeditado em 20/07/2009
Código do texto: T737439