BEBUNS, FAZENDEIROS E A GALINHADA DO PADRE.

O bom e velho padre Alberico despertou com o canto do galo. Os primeiros raios de sol iluminaram o povoado ao pé da serra. Os ipês amarelos se destacavam em volta da praça da matriz. -"Bom dia, dona Chiquinha. Que chuva abençoada caiu de noite." A mulher se virou. O avental molhado do trabalho. A touca na cabeça. -"Bom dia. A sua bênção, padre Alberico." O cheiro gostoso de café fresquinho tomava conta da cozinha da casa paroquial. O padre puxou a cadeira. -"Deus a abençoe, minha filha." A cozinheira já havia preparado a mesa. Ela colocou a garrafa de café na mesa. A jarra de leite veio depois, com a bandeja de pães de queijo. O açucareiro. Os talheres. O pão francês. O bolo de aipim, preferido do sacerdote. A manteiga. Os sequilhos de nata. -"Eu mesmo me sirvo, dona Chiquinha. Está tudo impecável, como sempre." Ele sorriu. A mulher colocou o jornal do dia sobre a mesa. -"Tivemos uma proveitosa reunião do conselho. Está tudo pronto pra festa da padroeira, daqui a três dias." O padre estava empolgado. -" Se Deus quiser, seu padre A missa será muito bonita e festiva. Os fazendeiros da região virão em peso pra grande quermesse de Santa Luzia, na qual a grande estrela é a tradicional galinhada." O padre colocou a xícara na mesa e enxugou a boca com o guardanapo. -"Galinhada essa, por sinal, maravilhosa. Feita com as autênticas e gordas galinhas caipiras da fazenda do coronel Boanerges." A campainha da casa paroquial tocou. A cozinheira foi até a sala e abriu a porta. -"Bom dia, meu anjo de candura." Disse o homem no portão. A cozinheira fez sinal para que o homem aguardasse um pouco. Ela voltou a cozinha. -"É o bêbado Malaquias? Puxa, ele é um relóginho, vem sempre às sete!" Disse o sacerdote. A cozinheira colocou café numa xícara de esmalte. Em seguida, passou manteiga num pão. -"Verdade, seu padre. São os pobres de Deus. O pobre homem passa as noites naquele coreto, no relento." O padre sorriu. A cozinheira levou o café para o homem no portão. -"Oh, benção. Deus a abençoe, dona Chiquinha. Desculpa o incômodo." A cozinheira sorriu e voltou pra dentro da casa. Minutos depois, a campainha tocou várias vezes. A cozinheira se assustou e correu até a sala. A cortina aberta. -"Valei-me, Santa Luzia. É o sacristão Herculano." A cozinheira saiu para abrir o portão. -"Bom dia, dona Chiquinha. Aconteceu uma tragédia. Elas morreram!" A mulher se benzeu. O homem chorava. O chapéu de palha nas mãos. O padre apareceu no alpendre, com um pedaço de bolo na mão. -"Quem morreu, homem de Deus? Que desespero é esse?" O sacristão correu até o vigário. -"Primeiro, bom dia. A sua bênção, padre. Elas morreram todas. As vinte e duas galinhas doadas pelo coronel." O padre pôs as mãos na cabeça. -" Como isso foi acontecer, homem? Estavam todas no galinheiro do seu quintal." Eles entraram. O sacristão puxou uma cadeira. -"Então. Eu escutei um barulho no quintal, nem bem tinha clareado o dia. As telhas do galinheiro caídas. Vi rastros de duas raposas." O padre arregalou os olhos. -"Não sobrou nenhuma?" O sacristão continuou. -"Nenhuma, padre. Fizeram a festa legal. Comeram e ainda carregaram umas quatro com elas." Um silêncio se fez. -" Não posso pedir doações aos fiéis pois já o fiz no mês passado pra consertar o telhado do salão de festas. Pedir galinhas a outro fazendeiro seria uma afronta ao coronel Boanerges pois há décadas a família dele fornece as galinhas pra igreja. O que faço?" O padre olhou para a cozinheira. A mulher ajeitou o avental e ergueu as mãos. -"Sei o que está pensando, seu padre. Desista!" O padre foi até ela. -"O povo não vai perceber. A senhora e as mulheres do grupo de oração serão as únicas a saberem. Eu compro frango de granja mesmo, no açougue da cidade vizinha e pronto. Ninguém ficará sabendo da troca. As cozinheiras carregam no tempero, no coentro e açafrão, está resolvido." A cozinheira tirou o avental, inconformada. -"Não fica a mesma coisa, seu padre. Galinhada genérica não vai agradar o povo." O sacristão concordou com a empregada do padre. -"A dona Chiquinha tem toda razão, padre. Não é igual, nem aqui nem na China. O povo vai falar." Mais tarde, o padre saiu da igreja, após a missa das dez horas e cruzou a praça enfeitada pra festa. As barracas com bandeirinhas coloridas. As pessoas felizes, a bandinha ensaiando no coreto. O sorveteiro. O carrinho de pipocas. O padre foi interpelado pelo prefeito Sandoval. A esposa e as três filhas, bem vestidas, fizeram reverência e pediram-lhe a bênção. -"Está tudo certo pra festa, padre? Meu sobrinho Adamastor, secretário adjunto do deputado Paulo Gustavo da Silveira, chegará essa tarde a minha casa. Virá com a família pra experimentar a famosa galinhada de Santa Luzia. Até o deputado pediu não, ordenou ao nobre secretário adjunto, no caso meu sobrinho, que fizesse uma cumbuquinha, sabe? Uma marmita de galinhada e levasse pra ele. Prometeu, em sinal de gratidão e contentamento, citar na tribuna da Câmara Federal o nome de nossa cidade." O padre enxugou o suor. -"Que maravilhosa notícia, senhor prefeito. Pedirei a dona Chiquinha que reserve a galinhada do nobre deputado, certamente. Está tudo pronto pra festa. Um detalhe aqui, outro alí mas o principal está pronto." A chuva começou a cair. A família do prefeito se foi. O padre se abrigou no coreto. O sacristão veio até ele. O padre abraçou o homem. -"Me dê boas notícias, seu Herculano." O sacristão estava preocupado. -"Fui no boteco do Almeida e falei com alguns amigos. Procurei ser discreto, seu padre. Eu conseguiria umas seis, no máximo." Os músicos tinham deixado o coreto. O bêbado Malaquias, deitado num canto, ouviu a conversa. -"Após o almoço, iremos até Pedra Bela, onde tem mercado grande. Lá, compraremos os frangos pra galinhada. Prepare o carro, seu Herculano." Eles não perceberam que o bebum estava ali pertinho, ouvindo a conversa. -"Vai mesmo fazer esse sacrilégio, padre? Trocar galinha caipira por frango branco de granja? Meu Deus." O padre estava decidido. -"É o jeito. Eu deveria ter trancafiado aquelas galinhas na casa paroquial ou numa das salas da catequese, por segurança. Malditas raposas que comeram as penosas do coronel. Temos que ir, após a missa das seis da tarde. A dona Chiquinha e as mulheres gostam de deixar as galinhas marinando um dia antes da festa, pro tempero pegar bem." O padre e o sacristão foram em direção a casa paroquial, aproveitando que a chuva dera uma parada. Malaquias balançou a cabeça, negativamente. -"Cada maluco. Melhor tirar uma soneca." Tempo depois, durante a missa, o tempo fechou. O céu escureceu e os trovões começaram sua sinfonia, anunciando a chuva pesada. A luz da igreja apagou, por causa de uma queda de energia. A chuva começou. A enxurrada nas ruas de paralelepípedo. Os raios assustavam. O padre e os fiéis presos na igreja. Malaquias, dormindo no coreto, ouviu um estrondo. Ele afirmou a vista e olhou para o fim da estrada principal. A água subiu, alagando a cidadezinha. -"O rio subiu." Algumas pessoas correram para a igreja. -"O rio subiu e a ponte quebrou." O padre olhou para o sacristão. -"Padre. Não temos como sair da cidade agora que a ponte foi pros quiabos! A estrada está alagada, não tem como passar. Não teremos galinha pra festa!" O padre ficou mudo, pensativo por um momento. -"Vamos ter que mudar o cardápio, Herculano. O que não tem remédio remediado está." O padre chegou em casa todo molhado, correndo com o guarda chuvas quebrado pelo forte vento. A chuva forte caiu por horas, avançando pela noite. A cidade as escuras. O padre rezava, olhando a chuva da janela da casa paroquial. Ele tomou um chá e resolveu dormir. -"Boa noite, meu Deus. Vamos ter que mudar de planos e fazer uma noite da pizza, talvez. Vou falar a verdade ao coronel Boanerges, que as raposas devoraram as galinhas dele. Fazer o que?" O padre leu alguns salmos, a luz de velas, para que o sono chegasse. O barulho da chuva no telhado. Era quase meia noite quando o padre adormeceu e passou a ter pesadelos. Sonhou com grandes raposas e lobos devorando as galinhas gordas do coronel. O povo revoltado e furioso por não ter a famosa galinhada caipira na quermesse. As beatas pedindo a expulsão do pároco. O bispo chegando a cidade de barco, devido ao alagamento do rio, pra acalmar os ânimos. O deputado morto, com um derrame fulminante, com vontade de comer a galinhada caipira. Enquanto o padre sonhava, criaturas saiam do povoado. -"Eita, pega. Segura, Raimundo." Um raio. O cavalo assustado. A charrete avançou sobre a calçada. Os dois homens se seguraram. -"Só tinha essa charrete atrás do armazém do Diógenes. É melhor que nada, Malaquias." A chuva intensa. -"Tô molhado até os ossos. Rapaz, nunca vi uma chuva tão forte." Malaquias pegou uma garrafa de cachaça. -"Toma, Raimundo. Bebe pra esquentar por dentro." O outro sorriu. -"Ordens são ordens. Vou fazer um esforço e tomar um pouco." A charrete tomou o rumo contrário a ponte quebrada, dando uma volta pelo povoado. A estradinha barrenta. O vento assobiando ao passar pelas árvores. -"A chácara do velho Expedito, Mundico. Nossa primeira parada. Vamos lá." O outro caiu da charrete. -"Estou bem, estou bem. Só quis dar um duplo tuiste carpado, estou bem. Eu vou alimentar os cães com a linguiça enquanto você pega as penosas!" Malaquias desceu e afundou os pés no barro vermelho. -"É o contrário, idiota. Você pega as galinhas pois os cachorros me conhecem. Esqueceu que eram meus quando eram filhotes? Vamos sem fazer barulho. O galinheiro fica no quintal, ao lado das bananeiras. Leva o saco e a lanterna." Tempo depois, Raimundo voltou. Malaquias ajudou a amarrar as galinhas pelos pés. O saco foi colocado na charrete. -"Peguei seis pra não dar tanto prejuízo. Tinha umas vinte galinhas lá, Malaquias." O outro fez sinal de positivo com o polegar. -"Uai, tá bom demais. No sitio da dona Esmeraldina a gente rouba mais. Passa a garrafa, homem. Essa aventura deu sede." Eles passaram pelo sítio, onde pegaram uma dezena de galinhas. Uma outra chácara era o destino final. -"Tamo quase lá, Raimundo. A chácara do Vandinho tem cadeado no galinheiro. Vamos ter que quebrar o danado." O outro coçou a cabeça, preocupado. -"Quero tomar tiro, não!" A charrete na entrada da chácara. A chuva caindo. Os dois amigos passaram pela cerca de arame. -"O Thor vai vir." Disse Malaquias. -"O Thor vai vir mesmo? Vai trazer o Hulk com ele, é?" Malaquias riu. -"Engraçadinho. O Thor é o cachorro de raça do Vandinho. Eu te falei, lembra? Você vai pra lá, quando ele vier. Sobe na goiabeira e joga a linguiça pro cachorro. Enquanto isso, vou pegar as galinhas." Raimundo sorriu. -"Beleza. O cão me morde e você fica com a parte mais fácil." Malaquias foi até o galinheiro. A casa da chácara as escuras. Latidos. O cão saiu do alpendre e foi na direção do outro homem. Malaquias arrebentou o cadeado e entrou no galinheiro. Raimundo subiu na goiabeira. O cão estava ocupado, comendo as linguiças. Malaquias saiu do galinheiro com o saco de galinhas nas costas. Ele colocou o saco de galinhas na charrete. -"Pronto. Tem mais de vinte agora." Ele deu a volta na chácara e assoviou. O cachorro latiu e saiu de baixo da goiabeira, indo na direção de Malaquias, escondido no mato. Uma luz acendeu dentro da casa. Um homem saiu até o alpendre, com um lampião na mão. -"Thor? O que foi, Thor?!" Raimundo pulou da goiabeira e caiu na lama. Ele correu e passou por cima da porteira. Um tiro passou perto dele. Malaquias o esperava na charrete. -"Nessa escuridão ele não te acerta." Disse Malaquias, rindo da cena. -"Pegou as galinhas, pelo menos?" O outro apontou o saco cheio de galinhas. -"Lógico que peguei. Missão cumprida, Mundico. Vamos secar a garrafa pois a gente merece." A chácara e os latidos do cão ficaram pra trás. As batidas fortes na porta. Chiquinha acendeu uma lamparina e pulou da cama. -"Quem será uma hora dessa?" Ela abriu a porta da casa. -"Meu pai eterno. Malaquias? O que você fez? Foi roubar galinhas?!" O homem sorria. Raimundo atrás dele. -"Desculpa incomodar. Faça a melhor galinhada caipira do mundo, meu anjo. Agora a gente vai descansar um pouco, sabe?" Eles puseram os sacos de galinhas dentro da casa. A mulher não acreditava no que via. Os homens subiram na charrete e se foram. O dia amanheceu. Os moradores contabilizaram os estragos da chuvarada. -"Vamos formar um mutirão pra consertar a ponte." Disse o prefeito ao boticário e outros comerciantes do povoado. O padre despertou com dor de cabeça. As costas doíam. -"Bom dia, dona Chiquinha. Dormi mal pacas. A chuva parou, finalmente." A cozinheira sorriu e pediu a bênção ao vigário. O padre olhou o relógio da parede. -"O pudim de cachaça não veio pegar o café. São sete e meia." A cozinheira abriu a porta da cozinha. -"Meu sobrinho Thiago me ajudou a trazer essa encomenda que deixaram para o senhor." O padre se levantou. -"Encomenda? Não pedi nada." A cozinheira sorriu. -"Pediu sim. Deve ter rezado pedindo uma ajuda divina, sei lá. Uma solução para a galinhada. Alguém deixou esses sacos com galinhas na minha porta, durante a madrugada." O padre abriu um dos sacos. -"Sério? São galinhas?! Oh, que bênção. Após a tempestade vem a bonança, no nosso caso, a galinhança. Nada de pizza, teremos galinhada caipira!" O padre abraçou a cozinheira. As mulheres se reuniram, na cozinha do salão paroquial, para o preparo da galinhada. Os panelões com água fervendo. Os temperos fresquinhos. O padre com um sorriso de orelha a orelha. O sacristão admirado. -"De onde vieram tantas galinhas, padre?" O sacerdote desconhecia toda a história. -"Não sei. Um anjo ouviu minhas preces e colocou sacos de galinhas na porta de dona Chiquinha. Mistério." O sacristão deu de ombros. -"Está certo. Mistério é mistério. Só eu, o senhor e dona Chiquinha sabiam do ocorrido com as penosas do coronel." O padre o abraçou. -"E Deus também. Ele sabe de tudo, meu caro." Era quase meio dia quando Malaquias acordou. -"Sai daí, pé de cana. Vamos ensaiar, Malaquias." Gritou o maestro da banda. Dona Chiquinha chegou naquele instante. -"Trouxe um pouco de macarronada pra você, Malaquias. As mulheres do grupo de oração estão almoçando no salão paroquial." O homem se espreguiçou. -"Macarronada pra mim? Eu não mereço tanto carinho." O maestro reuniu os músicos. -"Esse aí não merece, dona Chiquinha. É um desocupado. Quanto barro nesse coreto, meu pai." Malaquias mostrou a língua ao maestro. -"Vou pra casa do Raimundo. Vou dividir a macarronada com ele. Deus lhe pague, dona Chiquinha." A cidade voltou ao normal. A ponte foi consertada, provisoriamente. As pessoas chegavam para a festa da padroeira. A missa festiva e longa. O padre entusiasmado. As pessoas felizes. A praça tomada de gente da região. As bandeirinhas coloridas. As crianças correndo. O bingo. A quermesse. As bandas de forró. A galinhada caipira concorrida. A queima de fogos, em homenagem a padroeira. O padre na mesa com a família do prefeito. -"Dona Chiquinha já tirou as primeiras conchadas da galinhada caipira para o sobrinho do prefeito levar ao nobre deputado, pessoalmente. Está numa travessa linda, enrolada em papel filme e em panos de prato lindíssimos feitos por nossa artesã, dona Maria da Penha. Um mimo ao nobre deputado." Disse o padre ao prefeito. -"Agradeço o carinho do padre. Essa galinhada está divina. Digna de um grande chefe dos mais requintados restaurantes. Esse ano dona Chiquinha se superou. Nem Ana Maria Braga faria igual." A empregada do padre andou por toda a praça, procurando o Malaquias. Ele estava ao lado da banca de doces de dona Carminha. -"Malaquias?!" O homem se virou. Estava de cabelo penteado e barba feita. -"Quase não o reconheci, homem de Deus." Malaquias sorriu. -"Dia da padroeira, minha amiga. Único dia que eu me arrumo e fico sóbrio. Só um banho caprichado pra tirar todo aquele barro." Ela estendeu a travessa. As lágrimas escaparam dos olhos dela. -"Um pouco de galinhada pra você. Bondoso como é, sei que vai dividir com o Raimundo." Eles se abraçaram. O padre assistiu a cena de longe. Uma semana depois, o prefeito recebeu um telefonema do deputado. O político tinha conseguido verbas para a construção de uma nova ponte pra cidade, além de um posto de saúde. -" No ano que vem, na festa da padroeira, irei pessoalmente a sua cidade, prefeito. Eu já marquei na agenda!" FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 09/10/2021
Reeditado em 10/10/2021
Código do texto: T7360001
Classificação de conteúdo: seguro