O acidente (conto cômico)
Descia o homem na sua bicicleta azul contrapedal na rua desnivelada pelo calçamento antigo, distraído e sereno, talvez pensasse na vida, ou na dívida, ou no café da tarde. Mas a rua que passava em perpendicular era movimentada e por ser asfaltada as pessoas se apressavam mais.
No cruzamento aconteceu a vil surpresa. Um carro vindo rapidamente acertou a bicicleta azul e o homem, feito um gatuno, deu uma pirueta no ar e caiu quase de pé, sem sofrer nenhum arranhão, a não ser na dignidade. Sua bicicleta dobrou-se ao meio, mas a sorte de não ter se machucado valia mais do que lamentar-se por esse motivo.
Logo ajuntou-se gente. Lugar pequeno é assim tudo vira assunto e acidente quando acontece é quase cena de novela, principalmente quando o sujeito sai ileso daquele jeito.
Ileso no jeito de falar porque seu coração parecia uma britadeira querendo sair nervosamente do peito, e as pernas bambeavam de descrente por ter se livrado da morte.
Uma roda de gente brotou ali, umas trinta pessoas que eu nem imaginava que existiam no lugarejo, fez-se o círculo, alguém bondosamente trouxe um copo d’água e o sujeito se recuperava do susto até que uma senhorinha desavisada veio contornando a moita de gente, se achegando sem um pingo de interesse no ocorrido. Ela nem percebeu que o caso poderia ter sido grave, só queria salvar o próprio estômago que já doía desejando um pão quentinho e um cafezinho recém-passado.
Esticou sua mãozinha fraca e trêmula e foi caminhando por entre as pessoas, não pediu nada a ninguém, antes procurou julgar bem quem poderia ajuda-la. Mas julgou mal, coitada!
Quando se viu já estava no meio da roda, de frente para o homem recém-atropelado e igualmente renascido. Esticou um pouco mais a mãozinha pálida e pediu “uma esmolinha aí, seu moço”.
O homem indignado não acreditou no que via. Respondeu de pronto: “mas eu acabei de morrer aqui e a senhora vem pedir dinheiro logo pra mim?!”
Desfez-se a roda e a tensão. Não teve esse que segurasse o riso, nem a senhora, nem o morto-vivo!