O VELÓRIO QUE VIROU FESTA



Era uma sexta feira, por volta das l5 horas. Seu Chico estava fazendo alguns reparos numa cerca quando viu chegar um cavaleiro na porteira da entrada do sítio. Era um rapazinho que morava na fazenda em que seu compadre Gervázio era o administrador. Seu Chico gritou: --- “entre, mininu”.
--- “Tarde, seu Chico”.
--- “Tarde. Que faiz aqui hora dessa”?
--- “Trago um recado pu sinhô: seu cumpadi Gervázio morreu”.
--- “Que isso, minino, comé aconteceu isso”?
--- “Nun sei, dona Sofia mandô avisá”.
--- “Puis tá avisadu, fala pa cumadi que à noitinha eu chego lá”.

Seu Chico foi para dentro, conversou com a esposa, depois foi se preparar para ir ao velório. Tomou um banho na bica, vestiu uma roupa de dia santo, selou seu cavalo tordilho.

Saiu à tardezinha; levava aproximadamente uma meia hora até chegar à cidade, depois mais uns 40 minutos até a fazenda em que morava o compadre falecido.

Logo na entrada da cidade, ficava a venda do seu Esmeraldino, e em frente tinha o bebedouro para os animais. Seu Chico deu de beber ao cavalo e aproveitou para tomar uma água e prosear um pouquinho com alguns amigos.

Ali conversa vai, conversa vem, ele começou tomar umas doses de cachaça acompanhadas de linguiça frita, e a hora foi passando; quando se deu conta, já passava longe das dez horas da noite.
--- “Vixi, quase ia me esqueceno do cumpadi, priciso i”.

Tomou mais uma dose, montou seu cavalo e se foi; chegou à casa do compadre era quase meia-noite. Um menino veio correndo abrir a porteira, os cachorros latindo; seu Chico parou do lado da casa, amarrou seu cavalo num esteio da cobertura do forno de barro para ir cumprimentar a comadre e toda a família, para depois soltá-lo no pasto.

Subiu dois degraus, entrou na varanda com o chapéu na mão, cumprimentando os conhecidos, com um tom de voz, um pouco animado demais para o momento. Entrou na sala iluminada apenas pelas velas e um lampião que ficava pendurado num canto.
--- “Mais cumadi, cume que foi acontecê issu”?
--- “Não sei cumpadi, ele chegô, armoçô, deitô um poco no banco da varanda. Quano dei fé já tava morto, parece qui tá durminu”.

Na sala, além da viúva, havia outras pessoas, a maioria mulheres. No canto, sentada numa cadeira de palhinha, uma senhorinha de lenço na cabeça, um terço na mão, resmungava uma oração. Os homens ficavam mais na varanda, conversando sobre a plantação, o gado, os porcos e outros assuntos.

Seu Chico chegou do lado da cabeceira do morto, pegou o pires com a vela, ergueu e aproximou do rosto para clarear; só que pendeu um pouco, e nisso, caiu um pingo de vela derretida no olho do compadre, que de repente se levantou, ficando sentado na mesa, sem entender o que estava acontecendo.

Foi uma confusão danada, saíram todos correndo da sala e varanda, trombando uns nos outros, e a velhinha do terço, tropeçando numa lata de flor, rolou os degraus indo parar no meio do terreiro.

O cavalo do seu Chico espantou-se com a correria, estirou para trás, derrubou a cobertura do forno e saiu correndo arrastando o pau em que estava amarrado.

O “morto”, parado na porta, com o olho queimando, gritava:
--- “Genti, o qui tá acontecenu aqui”?
Seu Chico, meio escondido atrás do tronco de uma goiabeira, gritava:
--- “Vá di reto, arma penada”.
--- “Mai, genti, que issu, oceis tão doido”.
--- “Ocê tá morto”.
--- ”Mai qui morto, si eu to falano com ceis”.

Gervázio foi para cozinha, lavou o rosto numa baciinha de alumínio, pegou um caneco de água no pote e foi para a varanda bebendo. O povo foi chegando devagar; seu Chico se aproximou do compadre com cuidado e disse:
--- “Ué, cumpadi, ocê tava morto, agora tá aí vivinho”.
--- “Sei lá, cumpadi, eu sei que deitei nu banco dipois do armoço e acordei agora, com zóio ardeno e essa cunfusão danada”.

Sofia, a viúva que não era mais viúva, contou tudo ao marido desde o início, e este deu uma gargalhada dizendo:
--- “Ué, intão vamo comemorá, fazê uma festa”.

Acenderam os lampiões, a casa ficou toda iluminada. Gervazio foi a um pé de jaca, onde as galinhas dormiam, pegou dois frangos. As mulheres foram para a cozinha preparar a comida, cozinhar arroz, preparar os frangos, abriram uma lata grande cheia de carne de porco assada enterrada na banha, era só esquentar.

E a festa começou animada. Gervázio ligou a vitrola, e as vozes de Cascatinha & Inhana, cortaram o ar:

“India, seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice deste seu olhar
Índia da pele morena
Sua boca pequena eu quero beijar”...

João Batista Stabile
Enviado por João Batista Stabile em 25/08/2021
Reeditado em 31/10/2021
Código do texto: T7328538
Classificação de conteúdo: seguro