O preconceito sutil
Igor estava terrivelmente atrasado para um compromisso. Ao pegar o celular viu no aplicativo que o próximo ônibus passaria em exatos dez minutos. Então se despediu de sua mãe que estava na cozinha e foi até a parada correndo pois, de vez em quando, o veículo passava alguns minutos antes do que anunciava o App.
Ao se precipitar, resfolegado, no ponto de ônibus, uma senhorinha que ali estava sentada no banco ao dar de cara com o rapaz pôs a mão esquerda no peito e gemeu: “Ai que susto!”. A outra mão da senhora resguardou fortemente a bolsinha que levava consigo.
Igor estava acostumado com essas ocorrências. Apesar de ser um rapaz de boa aparência física as pessoas viviam se assustando com ele, o tomando por alguém perigoso? Ele queria fingir que não sabia o motivo, mas, infelizmente, era explicito até a um completo cego.
A quem interessar saber, Igor é um jovem negro de compleição forte, parruda.
Ele se limitou a falar: “Perdão senhora, não foi minha intenção”. A mulher lançou a Igor um sorriso amarelo, espantado e depois voltou sua atenção para o local onde o ônibus despontaria no início da rua. Mas ela estava insegura, ansiosa, disto Igor não tinha dúvida. Ele não se sentou no banco, preferiu ficar em pé um pouco mais atrás.
A mulher ocasionalmente lançava uma olhadela de esguelha impregnada de medo infundado para o rapaz, como se a qualquer momento ele pudesse saltar sobre sua bolsa. Ela, muito provavelmente, achava que estava sendo discreta. Mas Igor, resignado, percebia tudo e aturava calado as indiscrições e abusos da boa senhora.
Ele pensou indignado: “Essa senhora pensa que vou lhe assaltar? Ninguém merece!”.
A rua do ponto de ônibus não tinha muito movimento àquela hora. O sol forte incidia e atravessava a parede de vidro transparente da ponto. Ali em pé, Igor pôs-se a refletir novamente sobre sua condição, como inúmeras vezes o fez em situações semelhantes.
Ele é um rapaz que gosta de andar ligeiro quando está na rua e não suporta ficar encalhado atrás de gente lerda. Somado aos seus passos ágeis o rapaz tem um semblante sério, por vezes carrancudo, enquanto caminha rumo aos seus destinos. Mas isso é o seu natural, não significa, de forma alguma, que tenha raiva de algo ou maus pensamentos no coração.
Inúmeras foram as situações em que, andando na rua, transeuntes que vinha em direção oposta, com uma olhadela desconfiada, atravessavam para a outra faixa antes de passarem por Igor. Este, se limitava a entortar o canto da boca irritado. Esses incidentes, mesmo que costumeiros, nem por isso, tornam-se menos desconfortáveis.
Mas quando ocorria algum estresse no trabalho ou na faculdade e o rapaz não estava bem, ele lançava deliberadamente um olhar raivoso para essas pessoas terríveis. O que em nada melhorava o quadro. Elas tratavam de apressar ainda mais o passo, desesperadas, e de quando em quando olhando para trás para atestarem que não estavam sendo seguidas. Absurdo! Seria hilário se não fosse trágico.
Houve certa vez em que Igor, extremamente bem-vestido, estava à espera do motorista de aplicativo na esquina de sua casa. Era bem cedo e não havia muitas pessoas na rua. De repente despontou no início da esquina um homem que vinha em sua direção. Era branco, estava de blusa polo puída, bermuda e sandálias. Mexia, concentrado, em seu smartphone. Quando estava próximo do local onde Igor esperava o carro, o rapaz levantou os olhos em sua direção e pareceu se assustar, como quando damos de cara com algo inesperado e ruim, e imediatamente passou para o outro lado da rua.
Igor o fixou e seguindo seus passos com os olhos disse:” Bom dia senhor, tudo bem?” o homem gesticulou um sorriso envergonhado e respondeu quase em sussurro fraco: “Bom dia”.
Quando o homem se distanciou, Igor meneou a cabeça em negativa e não pode sufocar um pensamento: “O indivíduo tá de sandália gasta e bermuda velha, mas ficou com medo de mim, todo de social, impecável” e deu uma gargalhada sozinho. Não que a indumentária de alguém denunciasse caráter e/ou intenção, mas não havia como não pensar sobre esses detalhes irônicos nesses momentos.
E quando Igor, nos dias de folga, voltava do bar só de bermuda e bem tarde da noite? Era um exercício de muita paciência e resiliência chegar em casa sem transcorrer situações constrangedoras, inconvenientes.
É até assombroso, mas há um fato horrível que precisaremos admitir aqui. Igor o vivenciou tantas vezes que conseguiu até isolar uma espécie de padrão: quando estava vestido de roupas brancas ou em tons claros, as situações constrangedoras ocorriam em menor grau. Isso não é bizarro?
Será que Igor teria que andar todo de branco sempre e sorrindo para todos que encontrasse e, ademais, com uma placa em cima da cabeça escrita: Cidadão de bem e trabalhador? E tudo isso para convencer aos outros de que não precisavam temer ter que passar ao seu lado, esperar o ônibus em sua companhia, se sentar ao seu lado no coletivo e não tinham que o seguir dentro dos supermercados?
Era para ele muito irônico que houvesse situações assim em um país extremamente miscigenado, diverso e de maioria de negros e pardos. E quando essas situações ocorriam com outras pessoas negras e pardas? Era mais triste ainda para ele.
Mas Igor é inteligente e bem articulado. Ele sabe que o princípio da moléstia chamada racismo nasce muito cedo. Começa com uma célula maligna que tem sua origem e multiplicação dentro do seio familiar e depois, quando grande e resistente, se prolifera para as outras instituições como uma metástase cancerígena.
Mas será realmente? Que se iluminará o dia em que os homens que pisam na terra não serão categorizados como seres inferiores apenas pelo tom de sua pele? Me custa acreditar na materialização deste dia, mas gostaria de crer.
O ônibus chegou, silvou e estacou em frente a parada. A senhorinha saltou, aliviada, para dentro como se aquele coletivo fosse a própria arca de Noé a ponto de dar a partida e tratou de se acomodar no banco logo a frente do cobrador. Antes de pagar a passagem e transpor a catraca, Igor ainda fitou a senhora no rosto e pode perceber, em milissegundos talvez, uma expressão no rosto dela; era ressentimento e mágoa. Como se a ela ele tivesse feito algo de ruim, dá pra acreditar nisso?