Gêmeas Trocadas

Apesar de alguns parentes contestarem a opção dos pais, as gêmeas idênticas Dalila e Camila foram criadas da forma mais homogênea possível. Desde o primeiro dia de vida (quando as pequenas saíram da maternidade utilizando roupas idênticas, enroladas em mantas cuja única diferença era o nome bordado na ponta direita) até os dezoito anos, os pais e avós fizeram de tudo para que ambas tivessem brinquedos, roupas e oportunidades iguais. Na escola, por mais que os professores achassem melhor que cada garota estudasse em uma turma diferente, os pais eram irredutíveis: elas deveriam ficar sempre juntas.

Dalila e Camila foram crianças muito unidas, e raramente discordavam sobre gostos, brincadeiras e opiniões. Mas, quando elas entraram na adolescência, características individuais foram se desenhando. Dalila odiava matemática, adorava dançar e paquerar os rapazes do terceiro ano do Ensino Médio. Camila era a melhor da turma na área das exatas, muito mais tímida, e sonhava ser engenheira civil.

Ambas garotas passaram no vestibular para a mesma faculdade pública, mas em cursos diferentes. Dalila estudaria Arte e Camila Engenharia Civil. Como a Universidade ficava muito longe da cidade natal, a melhor decisão foi deixar que as irmãs morassem no campus, na capital gaúcha.

Já no primeiro dia, após serem deixadas pelos pais em frente ao prédio onde morariam, Dalila deixou bem claro para a irmã:

- Camila, agora acho que podemos trilhar nossos próprios caminhos. Acho que você concorda que somos pessoas muito diferentes, com pensamentos e gostos particulares. Saiba que eu sempre serei sua amiga, e pode contar comigo para o que precisar, entretanto quero meu espaço próprio.

- Devemos mesmo seguir nossos próprios rumos... – respondeu Camila, um tanto contrariada. Para a garota, enfrentar a vida por conta própria era muito assustador, mas entendia a necessidade disso.

- E, como primeira atitude, vou ficar em outro quarto. Consegui um do ladinho do seu. Vou dividir com uma tal de Rebeca. Qualquer coisa, só me chamar.

Os olhos de Camila se encheram de lágrimas. Aquela atitude representava um rompimento muito imediato de uma relação bastante simbiótica. Mas mentalmente a garota repetia “vai ser melhor assim”.

Os anos foram passando...

Dalila formou-se num tempo menor que a irmã, e logo tornou-se professora de Arte na rede pública de Ensino, usando seu salário para comprar um carro popular, e seu próprio quitinete em Porto Alegre. Camila reprovou em algumas disciplinas, mas igualmente conseguiu seu diploma. Depois começou a trabalhar para uma grande empresa na região metropolitana do Estado, casou-se com o diretor geral da mesma e mudou-se para uma cobertura, também na capital. E mesmo tão próximas, a interação entre as duas foi se restringindo, minguando, até reduzir-se à troca de mensagens esporádicas.

Quando ambas já tinham quarenta anos, o pai delas faleceu. Ao saberem da notícia, as duas viajaram para o interior do Rio Grande do Sul e, no velório, se reencontraram pessoalmente. Camila parecia uma atriz de cinema, trajando um longo vestido preto. Dalila vestia um conjunto de moletom cinza, com o emblema da escola bordado no lado esquerdo do peito:

- Meus sentimentos, Camila – disse, num tom melancólico e baixo, Dalila.

- Obrigada. Que Deus nos conforte.

- Eu estou tão cansada da minha vida, e agora mais isso! – desabafou a irmã, mantendo-se abraçada a sua gêmea.

Um silêncio se instaurou, sendo quebrado pelas orações do padre. Após quase um dia de preces, o patriarca descansou no jazigo da família.

Naquela semana as filhas ficaram na casa da mãe, confortando-a e revivendo as lembranças do passado. Alguns momentos tristes, como discussões e problemas financeiros, outros alegres, como as vezes em que as então meninas se passavam uma pela outra nas reuniões de família, só para depois darem risada das situações. No último dia de estadia, as mulheres resolveram tomar um café na padaria da cidade, para conversarem um pouco, a sós.

Dalila falou sobre as dificuldades enfrentadas no trabalho, a tristeza de morar sozinha e a saudade da época em que não tinha responsabilidades. Camila não quis exaltar suas alegrias, pois se sentia plena e completa em todas as áreas da vida. Mas, com muita pena da irmã, sugeriu:

- Olha, meu marido está viajando a negócios e só voltará no próximo mês. No trabalho não tenho nenhuma demanda imediata. Vamos aproveitar nossa semelhança física e “trocar de vida” por uma semana? Acho que vou gostar da experiência de ser professora – sorriu Camila, segurando as mãos de Dalila com ternura.

- Acho que vai ser interessante. Mas será que as pessoas não vão desconfiar? – questionou Dalila.

- Acredito que não, pois não costumo falar sobre minha vida pessoal na empresa. E o você pensa sobre isso?

- Olha Camila, todos sabem que tenho uma irmã gêmea, mas acho que não será difícil se passar por mim. Só não interage muito com os outros, diz que está pensando na vida, diz que tem muito trabalho dos alunos para corrigir e que não vê a hora que cheguem as férias de verão. Essa última frase eu repito todos os dias – riu Dalila.

- Combinado! Anote meu endereço.

- Anote o meu também.

Novamente na casa da matriarca, as filhas despediram-se da mãe e voltaram para Porto Alegre. Estacionando rapidamente na rodoviária, elas trocaram as chaves e marcaram de se encontrar no próximo domingo, às onze horas, no saguão do prédio de Camila, para destrocar as chaves e voltar para suas realidades.

Camila quase se perdeu tentando encontrar o endereço da residência de Dalila. Ela nunca tinha ido àquele bairro, um tanto sem atrativos. A mulher ficou muito desapontada quando descobriu que quitinete é uma espécie de apartamento sem espaço para quase nada. Imediatamente ela sentiu falta de sua cobertura confortável e espaçosa. Durante a semana na qual assumiu a identidade da irmã, ela organizou a casa e preocupou-se em abastecer a geladeira e despensa com produtos caros. Uma pequena cortesia. No trabalho, todos estranharam a “Dalila” simpática e calma. As turmas não pareciam tão agitadas e indisciplinadas como Dalila havia mencionado serem, mas considerou uma grosseria quando um dos estudantes cochichou para o outro: “acho que a professora desencalhou”.

Como não entendia nada de Arte, a mulher fez com que todas as turmas fizessem um desenho livre. Entre risos e espanto, a ordem foi atendida. Para não ser descoberta, Camila evitou ir à sala dos professores, permanecendo na sala de aula nos intervalos. As atividades recolhidas foram deixadas sobre a mesa da cozinha. No domingo, ela despediu-se da realidade de Dalila, trancou a quitinete e dirigiu até sua moradia, após uma semana curiosa e diferente.

Dalila se sentiu uma rainha naquela cobertura imensa, repleta do bom e do melhor em todos os aspectos. No trabalho, ela praticamente ficou rodopiando na cadeira de couro, dia após dia, e cada vez que alguém trazia uma demanda, ela repetia “deixe aqui na minha mesa. Depois resolverei”. Os colegas de trabalho estranharam a falta de comprometimento de Camila, que sempre fazia tudo rapidamente. Em casa as coisas transcorriam tranquilamente. Os dias eram revezados entre ouvir música num volume relativamente alto e desfrutar da extensa lista de canais e plataformas por assinatura, deitada na confortável cama king size.

Dalila não conhecia o esposo de Camila pessoalmente, mas nas fotografias ele aparentava ser muito bonito. “Para quem era toda tímida, até que o destino foi bem generoso”, pensava a irmã. Na sexta-feira o interfone tocou: era o marido, voltando bem antes de sua viagem.

A mulher ficou desesperada. Uma coisa era enganar os colegas de trabalho, outra bem diferente era enrolar o homem que morava com Camila. Por um momento ela pensou em ligar e acabar por ali mesmo a troca de identidade. Porém, ao ver entrar o moreno alto, forte, com seu terno alinhado e perfume embriagante desistiu, e resolveu desafiar seus próprios dotes cênicos.

O domingo chegou. Dalila desvencilhou-se dos braços do marido de Camila, vestiu-se com o seu clássico conjunto de moletom e aguardou a irmã no saguão do prédio, para trocar as chaves e voltar para sua vida, que agora parecia mais monótona e fracassada que antes. Não demorou muito para a mulher chegar:

- Dalila, sua vida não é tão triste assim. Seu lar é acolhedor e seu trabalho interessante – comentou a irmã, entregando as chaves da quitinete.

- Camila, temos que trocar mais vezes de identidade. Sua casa é muito luxuosa, seu trabalho molezinha e seu marido um gostoso.

- Meu marido? Como assim?

- Ele voltou de viagem sexta-feira, e não podia deixar que descobrisse nossa troca, né. Bom, vou indo. Até mais!

Dalila foi mais rápida que o tempo da gêmea processar os fatos implícitos na declaração dela, sumindo entre os carros e pedestres rumo ao seu lar. Camila sentiu raiva duplamente: da irmã, que podia ter terminado a farsa quando o marido retornara e dela mesma, por ter tido a maldita ideia.

E esta foi a última vez em que ambas trocaram de identidade.