Medo, prudência e silêncio
Isso foi lá no encarnado das décadas 1930-1940, no nosso sertão baiano, redondezas da outrora Bandinha hoje Paiaiá, pelo que me contaram. E não é conto da carochinha não, viu! É verdade verdadeira, “por essa luz que Deus me deu”, bordão invariavelmente utilizado por um vigoroso fotógrafo, conhecido no lugar.
Era um homem vindo de família numerosa e rica para aquela época. Ele e todos seus irmãos receberam terras e gado deixados pelos seus pais.
Batizado na Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Soure, com o nome de Joaquim, carinhosamente tratado como Quinca, recebeu dos irmãos o apelido de Quinca Arapuá, tudo por conta de ter chegado em casa com o cabelo todo enroscado pelo ataque de uma espécie de abelhas, de coloração negra reluzente e agressiva, denominada arapuá - Trigona spinipes – [palavra derivada do tupi eírapu’a e que significa “mel redondo”].
Quinca trabalhou na terra, fez plantação de feijão, milho, sisal, fumo e mandioca, aumentou o rebanho de gado e criação recebidos. Como naquele tempo as chuvas eram mais regulares, prosperou bastante. Não perdeu uma safra, não morreu uma cabeça de gado ou de criação sequer. Prosperou bastante e aventurou-se no ramo de caminhoneiro, tendo adquirido um caminhãozinho da marca Ford, ainda importado pois não havia fábrica no Brasil, mas isto será tema de outro conto, este voltado para as dificuldades, sucessos e situações folclóricas vividos nesse novo ramo de atividade.
Casou com moça prendada e fidalga, filha de família próspera e residente na vizinhança de seus pais, batizada como nome de Inocência, na mesma igreja que ele e onde também casaram. Carinhosamente ele a chamava Cença e assim ela ficou conhecida daí em diante – quando alguém queria se referir a ela dizia dona Cença de Quinca Arapuá.
Casamento seguindo na normalidade, com o amor envolvido e nos moldes da época e local em que viviam: nada de chamegos, beijos ou afagos em público, isso era absolutamente inadmissível.
Quinca saía de casa após tirar o leite, tomar café com cuscuz de milho pisado no pilão; às vezes com batata doce ou aipim. Afora o café, torrado no aribé de barro, triturado no moinho manual, cessado na arupemba de palha de taquara, e o açúcar, que eram comprados, os demais itens eram originados da sua roça, por ele plantados e colhidos.
Ao meio dia, sol a pino, dona Cença ia encontrar Quinca Arapuá na parte da roça onde ele estivesse, para lhe levar o almoço e, lá mesmo debaixo de uma árvore frondosa que tivesse, os dois faziam sua segunda refeição do dia. Ela retornava pra casa e ele continuava seu trabalho, não tinha o direito de descansar, isso ficava pra quando retornasse pra casa, tomasse o café da noite, papeasse com sua amada e se recolhesse à alcova, sob o som do piar insistente da coruja notívaga e o kré-kré da rã alojada no pé do porrão de barro, cheio de água da fonte para cozinhar e beber.
Retornava no finalzinho da tarde, com o sol já se pondo, trazendo a bezerrada para apartar e a criação para dormir no curral como segurança contra o malfazejo, quer fosse ataque de cachorros quer fosse dos chamados donos do alheio.
Apareceu a primeira gravidez da amada no mesmo ano do casamento. Afinal, havia de chegar o primeiro filho do casal e a alegria invadiu as famílias de um e do outro. Era a notícia do momento e Quinca Arapuá dedicou-se mais ainda à labuta diária, certo é que teria que sustentar mais um vivente e fazer patrimônio para deixar para quem chegasse na convivência daquela junção de corpos e almas.
Daquele casamento surgiriam vários filhos, que também trabalhavam na terra, lhe ajudando, como aconteceu com ele no passado.
Aproximado o nono mês daquela gravidez, dona Cença começou a sentir umas dorezinhas nas cadeiras, acompanhada de cansaço e andando com demonstrada dificuldade. Tudo aquilo era a anunciação da chegada do rebento.
Era necessário avisar a parteira do lugar, conhecida por todos como mãe Liá — no nosso sertão toda parteira era chamada de mãe, afinal pegava muitos meninos e as famílias ensinavam a estes a considerarem a parteira u’a mãe.
Quinca Arapuá voltou da roça mais cedo, lavou os pés na gamela de mulungu, trocou a roupa e foi à casa de mãe Liá para lhe avisar do possível nascimento da sua criança que, no sentir dele, seria naqueles dias.
— Cença está com o corpo mole, ofegando, caminhando com dificuldade, assim ele relatou à parteira.
A parteira lhe fez algumas perguntas para avaliar se estava na hora de ir à casa da grávida para assisti-la no parto. Respostas obtidas ela chegou à conclusão de que ainda não seria naquele dia. Sua experiência era grande e Quinca havia de saber que ele mesmo fora aparado por ela no seu nascimento.
Passou as instruções ao pai estreante e finalizou alertando a Quinca.
— Se as dores apertarem muito ou correr água entre as pernas da prenha, corra aqui e venha me buscar porque é a criança anunciando que quer chegar a esse mundo de meu Deus; pode ser qualquer hora do dia, da noite ou da madrugada, venha me buscar.
Estavam em pleno inverno. As noites, sem a lua, eram bastante escuras e os dias demoravam muito para amanhecer.
Dois dias depois da ida de Quinca à casa da parteira, em torno das dez horas da noite, as dores de parto em Cença começaram a apertar, de modo continuado e ascendente, mas ainda sem aparecer água escorrendo entre as pernas da parturiente.
Cença acordou Quinca para lhe avisar do aperto das dores e lhe pediu:
— vá buscar mãe Liá, quero crer que não chega ao sol nascer e essa criança vem a este mundo.
Quinca Arapuá levantou-se cuidadosamente e nem acendeu o candeeiro; abriu a janela lateral da sala de visita, olhou pro céu — estava um bréu puro, não enxergava um palmo à frente do seu nariz, não divulgava nada que fosse, uma estrelinha sequer avistou.
O medo lhe invadiu, lhe deixou sem ação. Ele não havia de sair àquela hora da noite e naquela escuridão. Era temeroso encontrar alguma visagem na estrada, tinha que passar por três encruzilhadas até chegar na casa da parteira.
Prendeu a respiração, fechou a janela com cuidado para não emitir sons que fossem ouvidos pela esposa, pisou devagarinho de volta ao quarto do casal, sentou-se na cama e, bem explicado e pausadamente, propusera à sua amada:
— Cença, tenha suas dores mais brandas, veja se dá pra esperar o dia amanhecer.
Cença não tinha outra opção; mesmo sentindo dores mais apertadas não havia de se contrapor ao seu marido — seria um ato imperdoável à época — o jeito era esperar os desígnios de Deus e de Nossa Senhora do Parto.
Passaram a noite em claro. Ora as dores ora apertavam, ora desapareciam, mas a criança se esgueirava em movimentos bruscos, buscando acertar o caminho da saída para ver a luz do seu novo mundo.
O sol começou a espargir raios acanhados para anunciar a chegada do novo dia, o galo do terreiro já havia cantado umas dez ou mais vezes, a aracuã soltava o seu canto rouco. Quinca levantou às pressas, deixou sua mulher com uma acompanhante, foi à roça, pegou seu cavalo de montaria e um jegue manso, pôs a sela nos dois animais, e, mais que depressa, rumou para a casa de mãe Liá.
Chegaram de volta à casa da parturiente era já quase seis da manhã. Ainda do terreiro da casa, onde apearam das montarias, foram ouvidos os gemidos de Cença e as orações a Nossa Senhora do Parto entoadas pela sua companhia, Maricas de Loló.
Separados os panos, esquentada a água, preparada a telha para colocar as brasas e incenso, a parteira entrou no quarto do casal e fechou a porta. Não se demorou nem uma hora de relógio e o rebento anunciou sua chegada com um choro longo e estridente: era um menino macho, como queria Quinca Arapuá!
Mãe Liá deu o primeiro banho na criaturinha, aprontou a parida, fez a limpeza necessária no quarto, colocou a telha com brasas acesas com o incenso natural e autorizou a entrada do pai para ver o seu filho e beijar a sua amada.
A parteira, tendo ouvido da parturiente que as dores apertaram desde as dez horas da noite, perguntou ao novo pai:
— Quinca, por que não foi me buscar de noite mesmo?
O silêncio de Quinca Arapuá foi sepulcral. Ninguém ouviu uma só resposta, uma só explicação.
Mãe Liá, sem saber do diálogo havido entre o casal na noite anterior, balançou a cabeça e sorrindo disse:
— é assim mesmo, pai pela primeira vez, marinheiro de primeira viagem, não havia de deixar a futura mamãe sozinha numa noite de escuro, não é verdade!
Maricas de Loló, que veio também para ajudar a parida no resguardo, providenciou abater o capão para o pirão de parida.
O vizinho do casal, Zé Corneteiro, providenciou a meladinha.
Era um dia de festa e todos acorreram à casa dos novos pais!
Tonho do Paiaiá – em isolamento social, contando o que ouviu dizer nos seus tempos de menino.
tonhodopaiaia.org
Reserva Imbassaí, 27 agosto 2020