DIANTE DO ESPELHO

(Alberto Vasconcelos)

Como em todas as noites antes de deitar-se, Vânia Maria estava diante dos três espelhos da antiga penteadeira, herança de sua avó, com a escova em punho passando nos cabelos longos, bem cuidados, cujos volume e textura os anos haviam modificado assim como a antiga cor cada vez mais esmaecida pelos fios brancos que serviam de moldura para o rosto. O pensamento, muitas vezes em voz alta, fez Vânia recuar no tempo...

Ah! O rosto de outrora. Quanta diferença. Em quais voltas do tempo havia adquirido aquelas rugas, que as pessoas insistem em chamar linhas de expressão. Essas múltiplas pálpebras inferiores e os pés de galinhas nas laterais que prolongam os olhos. Este bigode de chinês, como se fora parênteses evidenciando a boca com os lábios reduzidos a uma linha fina e o código de barras gravado abaixo do nariz. Isso tudo só serve para propagar a idade avançada.

O despertador sobre a mesa de cabeceira cumpria sua missão de marcar o tempo com seu tic-tac sem fim. Vânia Maria lembrou-se de que ainda não havia dado corda e deixou que o pensamento a levasse de volta quando da compra naquela loja chic do centro da cidade. Quanto havia custado? Não tinha registro, mas sabia que foi com o primeiro salário quando foi trabalhar como atendente na Padaria Estrela do português Senhor João Estrela que queria casá-la com um sobrinho da esposa.

José Manuel, também português, homem bonito, de conversa agradável, mas que possuía um hálito fétido de cebola com vinho que impedia qualquer aproximação a menos de três metros. Felizmente, apareceu a moçoila Andaluza Bastos, filha de outro comerciante português e acertaram o casamento dos dois, José Manuel e Andaluza, e eles foram felizes, bem felizes mesmo. Tiveram cinco filhos e chamaram-na para madrinha do segundo, Manuel Antônio, que se formou médico.

Nesse meio tempo apareceu Ítalo Bonaventura. Foi paixão à primeira vista. Estávamos com todo enxoval pronto quando aconteceu o desastre. O carro de Ítalo foi abalroado por um caminhão em alta velocidade na contramão numa curva sem visibilidade que, de alguma forma um deles pudesse manobrar para evitar a batida. Ainda bem que ele não sofreu além do choque. Depois naqueles dias terríveis de luto e desesperança pela vida, eu podia ter largado tudo e entrado para o convento. Talvez hoje tivesse a companhia das Irmãs, mas eu acho que aquela vida monástica monitorada pelo voto de obediência não é para mim. Nada substitui a liberdade que é o meu bem mais precioso...

Como era mesmo o nome daquele viúvo dos olhos azuis que me pediu em casamento? Euclides? Não. Acho que não. Ah! Eusébio. Eusébio Luiz de França Gomes. Chegou com várias pastas de plástico contendo as escrituras de seus imóveis. Todos liquidados e sem ônus. Tudo seria meu se aceitasse a proposta de casamento. Não estou à venda, senhor e por favor esqueça-se de mim. Foi a melhor resposta que achei na ocasião. Ele nunca mais voltou. Deve ter comprado na primeira esquina outra mulher interessada nos bens dele.

Vânia Maria abriu o pote de creme hidratante para passar no pescoço. Deteve-se nas covas acentuadas entre as clavículas e os músculos do ombro. Estava horrível. Pensou alto, preciso melhorar as refeições para ganhar uns quilinhos...

(- Cléa Magnani)

Vânia Maria repetia aquele ritual, mas sentia-se especialmente melancólica na análise de seu rosto naquela noite. Era a véspera de seu aniversário. Setenta e cinco anos. E comemoraria sozinha, como acontecia nos últimos vinte anos, desde que Dulce, sua irmã mais velha, com quem morou desde a morte de seus pais, fora dormir e não acordou mais.

Certamente receberia alguns cartões das amigas que a vida lhe dera. Porém parentes, não os tinha. Talvez recebesse, como nos anos anteriores, o tradicional cartão do afilhado que já não via há mais de dez anos.

Ao fixar o olhar na moldura do espelho, que se dobrava e triplicava sua imagem, sentia-se cercada por dois rostos conhecidos, os dela mesma..., mas em faces diferentes... Relembrou-se de que sua avó, sua mãe, sua irmã, também tiveram seus reflexos naquele mesmo espelho triplo... Que impressões, quais emoções e sentimentos aqueles espelhos teriam refletido?

Sua avó tinha uma personalidade forte. Mulher de fibra, que se curvou às ordens do pai, casando-se com o escolhido por ele, mas nunca cedeu aos caprichos do marido beberrão e viciado no jogo. Decidiu que teria apenas a primeira filha, e nunca mais engravidou.

Sua mãe, doce e delicada, recebeu todo o carinho da mãe. Sonhadora e romântica, casou-se com um primo, sobrinho de seu pai. Casamento arranjado pelo avô. Mas teve sorte. Os dois haviam crescido juntos e se davam bem. Ela e sua irmã sempre foram felizes sob os cuidados de seus pais. Mas nunca foram felizes em matéria de amor. Dulce também teve alguns namorados que não deram certo. E as duas passaram a vida se arrumando defronte àquele espelho, mas nenhuma das duas se viu refletida vestida de noiva...

Vânia Maria passava o creme no rosto fazendo movimentos delicados com as mãos, como se sentisse carícias que nunca sentiu. Mirou-se mais uma vez em cada uma das três faces do espelho. Ajeitou os cabelos. Endireitou a coluna adquirindo a postura ereta que a idade teimava em desmontar. Esboçou um sorriso e o conferiu sob todos os ângulos. Mirou-se de frente, e sentiu em si mesma o seu olhar profundo. Disse Boa Noite! à própria imagem. Deu corda no despertador. Deitou-se, apagou o abajur e não acordou na manhã seguinte...

Cléa Magnani e ALBERTO VASCONCELOS
Enviado por Cléa Magnani em 01/07/2021
Reeditado em 20/08/2021
Código do texto: T7290515
Classificação de conteúdo: seguro