JORMUNAND, O DRAGÃO NEGACIONISTA


    Lancelot, depois de atravessar terras pantanosas e inóspitas, finalmente chegou à boca da caverna. Apeou do seu cavalo e, com voz tonitruante como convém a um  nobre cavaleiro de sua ordem, lançou intimação em direção ao covil da fera mais temida daquela região.

    — Jormunand... faça-te presente aqui e agora. O tempo urge. Tenho outras missões para cumprir.

     O dragão assim que botou a cara para fora da caverna, com os olhos pesados de sono, expressou logo toda a sua indignação no tom de voz contrariado:

     — Mas o que é que tu queres comigo a esta hora da manhã, homenzinho irritante?

    — Trouxe para ti, a mando do rei, uma vacina que deverás tomar para o teu próprio bem antes de saíres por aí a aterrorizar as vilas adjacentes. Meu soberano quer cuidar do bem-estar da única fonte de renda turística de nossa região.

     — Mas de onde tu tiraste essa ideia estapafúrdia de que eu devo ser vacinado?

   — Há rumores de que tu, Jormunand, estás com Drakovid!

    O dragão espantou a sonolência, esticou um pouco mais o pescoço para fora da caverna e, com olhar de pouco-caso, disse para o nobre fidalgo:

     — Ora, isso não é verdade. Tais rumores nada mais são do que factoides para denegrir a minha imagem.

     — É mesmo? Tu tomaste a vacina contra a Drakovid no mês passado?

     — Mas é claro que não.

     — E por que não a tomaste, Jormunand?

     A fera de quase vinte toneladas esticou o beiço à frente em tom de galhofa.

     — Eu não queria virar gente!

   O cavaleiro desembainhou a espada com o semblante consternado pelo tom zombeteiro do monstro.

   — Pois agora, animália escarnecedora da desgraça alheia, terás de se ver comigo – disse Lancelot, estufando o peito e erguendo o semblante de forma altiva, como impõe-se a um guerreiro destemido. – Deverás usar máscara e, por ordem expressa do rei, terei o desprazer de vaciná-lo também.

    — É mesmo? Isto é uma perda de tempo. Tal doença não existe – disse Jormunand levando a pata esquerda à frente dos olhos para averiguar a situação de suas enormes e pontiagudas garras rasgadoras de homens. Em seguida, olhou com desdém para o paladino. – E de que modo tu pretendes realizar tal façanha?

     — Aqui está um bom motivo para fazer-te mudar de opinião – esbravejou o esquálido cavaleiro, indignado, enquanto levantava a famosa Excalibur para o lado do monstro zombeteiro.

     — Ohhhhh, que medo! Pois dou-te o aviso, em nome dos velhos tempos, meu caro Lancelot: tu não ouses esticar um passo a mais na minha direção com essa espadinha ridícula de cortar gravetos. Faço-te virar torresmo, agora mesmo, sem o menor remorso.

     Desta vez foi o cavaleiro quem trouxe à fisionomia a expressão de troça numa clara intenção de provocar o poderoso dragão. Deu um passo à frente, enterrou a espada com ambas as mãos no chão, abriu os braços, estufou o peito da armadura reluzente e disse em tom desafiador:

     — Faça-me virar torresmo, oh reptiliana criatura inculta! Quero ver até onde vai a tua bravata. Tenho certeza que desta bocarra inútil não sairá chama alguma nem para acender uma vela.

   Jormunand, furioso, machucado em seus brios, levantou-se nas patas dianteiras, pouco não faltando para bater com a cabeça no umbral da caverna.

    — Como ousas, homenzinho de lata, vir aqui à porta da minha casa para dizer-me semelhante disparate. Tu sabes com quem estás falando? Atentai para o meu porte atlético. Embora eras e eras tenham-se passado, ainda sou o poderoso, único e inigualável Jormunand, o terrível, um dragão milenar da mais alta estirpe, reconhecido por minha ferocidade nos quatros cantos deste mundo e...

    — Deixa desta ladainha e manda logo este fogaréu todo que tu dizes que tens aí, criatura – desafiou, ainda de peito aberto e braços esticados, o guerreiro. – Como já disse em meu anúncio, o tempo urge e tenho mais o que fazer.

     A fera abandonou a carranca furiosa e deitou-se por sobre os cotovelos, esticou o beiço novamente em expressão soberba e disse por birra:

     — Agora, não estou com vontade.

     — Tu não estás com vontade... ou não podes?

  O monstro não disse nada, apenas expressou menosprezo.

     — Então, mostra a tua cola para mim – exigiu o cavaleiro.

     Jormunand virou a carranca desconfiada para o atrevido da espadinha.

    — Por que tu queres ver a minha cola? Que atrevimento é este? Jamais lhe dei confiança para estas intimidades!

     —  Ah, pois percebo agora que estás preocupado com a falta da tua habilidade incandescente de cuspir chamas sobre teus inimigos, não é? A tua cola está sendo acometida de um tremor involuntário do qual tu não tens o menor controle, não estou certo?

    Pela primeira vez, o dragão perdeu aquela soberba caçoísta. Voltou a encarar o cavaleiro, mas, desta vez, lançou-lhe um olhar intrigado.

     — Como podes saber de tudo isso?

     — Ah, muito embora tu não acredites na existência de tal doença, os sintomas mais comuns desta moléstia são a perda da habilidade de cuspir fogo, cola trêmula e dores nas articulações. Eu não tenho dúvidas. Tu estás com  Drakovid.

     Uma expressão de preocupação tomou lugar na cara do dragão.

     — E esta doença mata?

     — Se não for tratada, sim. Quando não mata... bom... deixa sequelas irreversíveis. A perda de habilidade de cuspir fogo é uma delas.

     — Tem cura?

     — Sim. A vacina que levo em meu alforje previne a doença e, para quem já se encontra infectado, tem o poder de curar também.

     Jormunand olhou desconsolado para o chão, pensou um pouco  e disse num fio de voz, assim meio sem jeito:

     — Hum... esta vacina é de gotinha?

     Lancelot pareceu não entender a pergunta. Depois, levando as duas mãos à cintura, abriu um sorriso maroto e não resistiu de comentar:

     — Ah, tu não venhas me dizer que um dragão deste tamanho tem medo de agulha?

     A terra tremeu quando o descomunal dragão saiu da caverna num pulo. Suas asas se abriram quase a cobrir o sol da manhã, a carranca, contorcida de fúria assustou o cavaleiro, que não esperava uma atitude tão intempestiva da fera.  O susto foi tão grande que Lancelot esqueceu de puxar a espada fincada no chão para junto de si.

    — Como ousas dizer que eu tenho medo de agulha, ignóbil cavaleiro da espadinha – vociferou o dragão, mais parecendo uma trovoada a ecoar por todo o vale.

    Lancelot, deixando a dignidade desafiadora de lado, correu para o seu cavalo. O dragão não precisou nem movimentar as patas, apenas esticou o pescoço à frente enquanto expelia, em altos brados, toda a sua indignação para quem quisesse ouvir.

     — Como ousas acusar-me de covarde! Eu, Jormunand, o poderoso, único e inigualável dragão milenar da linhagem real direta do grande Rhaegal. De modo algum posso aceitar um acinte desta gravidade contra a minha honra.

     Ao chegar junto ao cavalo, em movimento de desespero, o cavaleiro enfiou a mão dentro do alforje e retirou de lá uma seringa. A luz do sol cintilou por um átimo de segundo na ponta da agulha. Foi o bastante para Jormunand, ao ver a seringa, deter o seu ímpeto de ofendido.

   Então, de olhos esbugalhados para o pequeno objeto nas mãos do cavaleiro, o dragão apoiou-se nas duas patas traseiras, aterrorizado. A voz, antes potente e cavernosa, emitiu o gritinho esganiçado e fino. Na sequência, o incomparável, o milenar, o primogênito imperial de Rhaegal, levou a pata esquerda à testa e a direita ao peito, revirou os olhos para cima, jogou a cabeça para trás e, em tom dramático, disse quase desfalecido.

     — Oooh, acho que vou desmaiar!

     E a portentosa criatura foi ao chão desacordada.

   O cavaleiro, bestificado, de olhos grudados no colosso estatelado no chão, movimentou a cabeça em atitude de desaprovação e comentou para si mesmo:

     — É... já não se fazem mais dragões como antigamente!

 



 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 28/06/2021
Reeditado em 26/12/2024
Código do texto: T7288866
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