A VIAGEM PELO RIO JURUÁ - III
A VIAGEM PELO RIO JURUÁ
Autor; Moyses Laredo
Capítulo #3
(CONTINUAÇÃO CAPÍTULO #2)
(...) e gastaria recurso sem cumprir a missão. Além do mais, nunca atestei nada sem ver de perto, não foi à toa que sempre fiz questão de ir em qualquer lugar, mesmo os mais longínquos e inóspitos. (...)
Ok! Meus amigos, como dizia meu velho pai “Quem tem com o que me pagar não me deve nada”. Eu pensava sinceramente em atribuir alguma coisa, percentualmente falando, na evolução das obras deles, embora nada tivesse sido concluído totalmente, com todas as anomalias observadas, mesmo assim, dado a distância, as dificuldades de execução etc. pretendia fazer isso, apenas o mínimo já construído, inclusive, considerar os materiais encostados no local, mas, a questão agora mudou, nada de considerações, normatização pura em cima deles, eles tinham que receber uma lição.
Ao retornar para Rio Branco, quando estava a elaborar o relatório, no silêncio da minha sala, tão logo fechei o percentual final de evolução das obras deles, - ZERO%, tive dificuldade em apagar o enorme sorriso que se formou na minha face. Quando lembrava de tudo que me fizeram passar, o sufoco de quase ter que pernoitar naquele infernal lugar cheio de mutucas famintas, com sério risco de contrair algumas doenças. Tudo isso ponderou na minha avaliação, o fator consideração não mais existiu, embora, correto em minha avaliação, segundo o COT (caderno de orientação técnica), eles de fato, não tinham nenhum direito, em razão das falhas construtivas e a não observância das especificações técnicas, encontradas nas obras. A intenção dos caras de me prejudicar, a perspectiva de dormir ao relento no beiradão deserto sem o menor recurso, ainda me causavam calafrios. Eles entenderam o meu recado, porque sequer questionaram nada, perceberam que cometeram grave erro.
Dois meses depois, tive que retornar por lá, tinha vistorias programadas na cidade de Cruzeiro do Sul e como sempre, aproveitava para também vistoriar outras obras na região. Voltei a me comunicar com o pessoal de Porto Walter, estavam aflitos, queriam outra vistoria com urgência. Já em Cruzeiro do Sul, uma das vistorias previstas, era de um imóvel usado, pretendido adquirir, por uma senhora baixinha, muito agitada de cabelo em tranças, feito rabo-de-cavalo. A engenharia da Caixa avalia o imóvel escolhido pela interessada e havendo compatibilidade entre o valor proposto para venda e a nossa avaliação, o imóvel seria financiado. Também se podia usava o FGTS da pessoa. Era uma modalidade muito comum, a aquisição de imóveis usados. Ao vistoriar a dita casa pequena de alvenaria, com uma arquitetura bem simples, um corredor no centro e as divisões dos cômodos à esquerda e à direita a cozinha, e uma despensa, a casinha era coberta com telhas de alumínio sem forro, percebi com certo espanto que não havia banheiro interno, olhei da porta da cozinha para o quintal e também não vi nada, embora o restante do imóvel estivesse em ordem, sobretudo com a documentação em dia, no entanto, a ausência de uma unidade sanitária sequer, tornava o imóvel “inabitável”, é uma exigência do programa, em vista do objetivo social que a Caixa desempenha. Questionei a proprietária a respeito, era uma senhora alta, muito magra com óculos de grossas lentes, voz estridente, ela rebateu com “quatro-pedras-na-mão”, dizendo que morou ali por mais de 10 anos e nunca teve necessidade de banheiro dentro de casa, saia me seguindo por onde andava gesticulando com o dedo em riste, como os acusadores. Se juntou nesse coro, a compradora do rabo-de-cavalo, e ambas ficaram contra mim esbravejando, uma queria vender e a outra queria comprar, e eu no meio, atrapalhando as duas, essa era a forma como entendiam o caso. Sei que ouvi muitas reclamações de ambas, mas não teve jeito, finquei o pé, e avisei para a proprietária, - “Ou a senhora faz um banheiro interno, ou nada feito!” Sai de lá, ainda ouvindo desaforos das duas, que diziam procurar seus direitos e que nunca tinham visto isso, e que era um absurdo, e que iriam falar com o Gerente, o Prefeito e patati, patatá.
Ao retornar no mês seguinte, para as vistorias do programa, fui à casa da senhora vendedora, precisava saber se o tal banheiro havia sido construído, eu tinha mantido o processo delas pendente, aguardando algum desfecho. Qual foi a minha surpresa, a senhora compradora, a do rabo-de-cavalo, já estava morando lá, me recebeu nas nuvens, com um sorriso de orelha a orelha, alegre que só ela, me disse que era o seu maior sonho ter um banheiro “dentro” de casa, na região isso era incomum, só visto em novelas, fez questão de me mostrar, estava prontinho, a proprietária construiu um no lugar da despensa, com fossa e sumidouro, de acordo com as orientações deixadas, tinha até um paninho bordado em cima da tampa do vaso e da caixa de descarga, ainda espantado perguntei-lhe ingenuamente, - “Mas a senhora brigou tanto comigo?” – “Ligue não seu dotô era só “abidias” (conversa fiada) – “Eu tava era querendo, é “mutcho”! Em seguida me perguntou se desse jeito com banheiro seria aprovado? – “É claro!” respondi-lhe, então me fez um inusitado convite, - “Pois bem seu dotô vamos fazer uma festinha de inauguração da casa com o banheiro novo, o senhor está sendo convidado, o Sr. não pode faltar”. Eu era o seu convidado especial. Nunca pensei que estava agradando, da última vez que sai de lá foi ouvindo desaforos até chegar ao taxi, fiquei com receio de retornar!
Voltei a falar com o pessoal de Porto Walter, insisti que queria ir de barco. Vieram desconfiados que nem cachorro de índio, sabiam o que tinham aprontado, não lhes disse uma palavra de desafronta, desta vez, fiz apenas minhas exigências, tinha a minha disposição a opção de avião monomotor a partir de Cruzeiro do Sul, para Porto Walter, lá existia um campo de pouso ao sul da cidade, de chão batido, bem precário, mas havia. Contudo, precisava apagar aquela terrível lembrança do sufoco que passei. O rio Juruá, com suas belezas naturais merecia isso. Por outro lado, os construtores das casinhas estavam aflitos, sem a minha medição, não receberiam nada, me certifiquei com eles se as casinhas realmente estavam prontas, avisei que se nada tivesse sido feito, o programa seria cancelado, confirmaram diversas vezes que desta vez eu iria ver as sete casinhas prontas. No dia anterior à vistoria, fui conhecer o barco que me reservaram, me surpreendi, tinham conseguido uma lancha, um verdadeiro Iate, comparado com o bote de alumínio, possuía camarote, tinha comandante e uma senhora para nos servir. A lancha muito veloz rebocava uma voadeira para o caso de pane e ao mesmo tempo serviria para navegar no rio Humaitá, acho que, a lancha era de algum programa do governo federal, segura e confortável, realmente desta vez o passeio foi maravilhoso. No trajeto, com mais calma, apreciando as paisagens, pude avaliar o percurso que havia feito naquele malfadado barquinho de alumínio, constatei de perto o risco que corri, foi até difícil alguém da Sede da Engenharia da Caixa (Brasília) entender o que se passou, contudo, me sentia até certo ponto orgulhoso por não ter desistido. Do confortável convés, vi a solidão de quem se encontra perdido naquele mundão como eu fiquei, revivi meu tormento. Ao longe, avistei um pescador solitário, sorrindo para nós, de contra o sol, com a mão fazendo aba na testa, na sua canoinha de uma casca só, naquela imensidão, de onde estava, parecia que a linha d’água se confundia com a borda da canoa, dando a impressão que ele afundava de vez em quando. Diferente de mim, quando fiquei à deriva, ele sabia onde estava e para onde ia, e estava ali porque queria! Seguimos a maravilhosa viagem, a beleza da fauna é exuberante, os pássaros em revoadas, levantam voo com nossa rápida passagem, atravessavam o rio defronte a lancha com a autoridade de quem está em sua casa, não se apressavam, calculavam suas velocidades antes de se lançar, o mesmo faz o meticuloso tucano, que salta de galho em galho até conseguir subir no mais alto e de lá, se lança para atravessar o rio, seu bico pesa, e com a longa distância, faz com que perca altitude, quando bem calculado, chega a outra margem ainda com certa diferença de altura, mas quando jovem, sem experiência, inevitavelmente cai n’água, e quando sobrevive, aprende. Daí a razão de procurar um galho de pau bem alto, tudo muito bem calculado seguindo a lei do menor esforço. Chegamos muito rápido ao nosso destino, quase não deu para aproveitar o passeio, o consolo é que ainda tinha a volta, mais outra agradável viagem. A imensidão da floresta naquela região é assustadora, é um tapete de floresta interminável. O Rio Juruá é outra maravilha a ser observada, sua sinuosidade é perturbante, parece uma pista de kart com suas constantes curvas fechadas.
O trajeto até as casinhas, razão da viagem e motivo da vistoria, foi feito na voadeira, aquela mesma que trouxemos de reboque, desta vez, tudo estava concluído 100%, e sem nenhum defeito, até os acessos às casinhas, estavam muito bem capinados, eles aprenderam com quem lidavam, como também dizem por lá: “A formiga sabe a folha que corta”.
O retorno à Cruzeiro do Sul, se deu no mesmo dia, cheguei em tempo de saborear um escabeche de tucunaré, que um grande chef e amigo, chamado Cláudio Nobre, preparara especialmente para mim em seu recatado restaurante. Ele tinha prazer em preparar a iguaria, que somente ele sabia fazer e eu, mais ainda, sabia também saboreá-la.