A bolita premiada
Vinha o Marcelinho sozinho pela estrada quando avistou o Joaquim Carroceiro apontando na sua direção. João encostou o corpo na cerca, quase tropeçando no barranco, porque a carroça do Joaquim vinha desengonçada e era sabido por todos do Vale da Esperança que o carroceiro tomava uns tragos de cachaça logo cedo.
- Ê bicho, ê bicho – Gritava o Joaquim Carroceiro puxando a rédea do cavalo sem nome. O bicho estava nervoso e esparramou pela estrada uma enxurrada de urina. Depois defecou e o cheiro de bosta de cavalo se espalhou pelo ar. Joaquim ergueu o nariz, gostava do cheiro da bosta, o fazia lembrar da infância, quando tinha amigos e não se preocupava com outra coisa que não fosse jogo de bolitas. O cavalo relinchou e o Marcelinho ficou ainda mais nervoso, era um menino assustado de natureza e nunca gostou de cavalos. Num desajeito, tentou descer do barranco e partir apressado para casa, mas tropeçou na grama seca e do bolso da calça caiu uma bolita leitada, que foi rolando, indo parar nos pés do Joaquim Carroceiro. O velho tirou o suor do chapéu e com esforço se agachou até apanhar a bolita nas mãos cor de terra. Os olhos do carroceiro brilharam, desconheceu a catarata, pigarreou e depois cuspiu longe o catarro amarelo e seco.
- Rapaz, que bela bolita.
Marcelinho nada disse, preocupado com a camisa suja de poeira.
- Olha rapaz, eu acho que já vi essa bolita em algum lugar. – disse o carroceiro, franzindo a testa, fazendo ar de quem procura no invisível alguma resposta. As pernas de Marcelinho tremeram. Aquele homem lhe causava uma espécie de pânico só de olhar.
- Não é minha, apenas estou guardando para o dono.
- Ah, e quem é o dono?
Os olhos de Marcelinho marejaram. Era sempre assim quando se via diante de uma situação difícil.
- É do seu Armando.
- O dono do Armazém?
- Ele mesmo.
- Mas por que é que o ele pediu para você guardar?
- Não é bem para guardar.
- Para o que é então, rapaz, desembuche logo.
- Ele me pediu para polir, deixar brilhando.
- Eita, diacho de mundo estranho, não sabia que bolita dava brilho.
- Pois essa dá, é só passar flanela todos os dias.
- Bom, eu entendo um pouco de bolitas, tenho até hoje várias em casa. Essa sua, se realmente brilhar, é capaz de ganhar um prêmio. – disse por fim o carroceiro. Depois acendeu um cigarro de palha, subiu na carroça e atiçou o cavalo.
- Eia bicho, vamos bicho...
E lá se foi rumo ao horizonte deixando o Marcelinho com a bolita na mão e o rosto ligeiramente brilhoso.
- Um prêmio...pensava o Marcelinho a cada segundo. Seria justo que eu recebesse o prêmio? A bolita é do seu Armando, mas seria uma bolita comum se eu não a polisse todos os dias. Se tem brilho é mérito meu, pois sim, o prêmio deve ser meu – concluiu afinal.
De passagem, encontrou o filho do prefeito.
- Dia, Marcelinho.
- Dia Inácio.
- O que você traz escondido aí na mão?
Marcelinho sorriu.
- Não sabe?
- Sabe o quê?
- É minha bolita, olhe, ela será premiada.
- Premiada onde?
- Na capital.
- Quando?
- Em dezembro, se não chover.
E ficaram quietos por cinco segundos. Depois, cada qual caminhou para um lado. Marcelinho logo encontrou o bando de meninos do qual fazia parte. Chamou os dois mais velhos, mostrou-lhes a bolita enquanto de seus olhos escorriam gotas de lágrimas.
- O que tem? Perguntou o menino da cabeleira loira, chefe do bando.
- Não sabe?
O outro menino apanhou a bolita:
- Eu sei, era minha essa bolita, mas a vendi para o seu Armando – disse o garoto que usava óculos.
- Sim, do seu Armando, mas estou polindo todos os dias.
- E daí? Questionou o cabeleira loira, já se mostrando enfezado.
- Não sabe?
- Sabe o quê?
- Ela foi premiada.
Os dois arregalaram os olhos. Não era comum alguém ganhar prêmios por aquelas bandas.
O cabeleira loira e o menino de óculos trataram de chamar os outros meninos.
- Olhem, a bolita do Marcelinho foi premiada!
E deu-se um alvoroço, gritos de vivas, palmas e tudo o mais que um premiado merece.
Marcelinho nunca fora tão abraçado na vida. Do canto dos seus olhos, lágrimas incontroláveis despencaram.
No outro lado, na prefeitura do Vale da Esperança, o filho do prefeito tratou de espalhar a notícia. Era época de eleição e o prefeito Valdomiro Sandim logo saiu à cata do Marcelinho. Antes, ordenou que se montasse um palco no centro da cidade e sob fogos e banda da polícia, o Marcelinho foi colocado ao lado do prefeito no grande pedestal. Até o principal jornal da cidade se fez presente. O prefeito falou por mais de meia hora, disse algo sobre a extraordinária bolita, o tanto que ela era importante para a cidade e que devia ser motivo de orgulho de todos. Marcelinho, num ímpeto que não era dele, também resolveu falar, contou sobre a árdua tarefa de polir a bolita, de meia em meia hora, com pano de lã pura, também falou sobre o capricho de guardá-la na cabeceira da cama enquanto dormia e no bolso da calça durante o dia.
Na plateia, Virgínia, a fofoqueira, começou a cutucar as outras pessoas:
- A bolita não é dele. E era muito mais bonita antes de ser polida. – Mesmo quietos alguns concordaram com a fofoqueira, que prosseguiu cuspindo ódio:
- Onde já se viu a capital premiar uma bolita?
De longe, o carroceiro Joaquim voltava da viagem, viu a multidão e achou por bem descansar o cavalo um pouco distante. O bicho urinou por mais de cinco minutos, depois defecou, mas desta vez o cheiro da bosta não atingiu o nariz do carroceiro.
Desconfiado, ele ergueu um dedo para o céu, checou a direção do vento e conformado confessou para si mesmo:
- Desse jeito, não vai chover em dezembro.