De repente, sou um bardo
Meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista.
Acontece que ultimamente tenho sofrido de insônia. Dor terrível essa de não conseguir dormir.
Para remediar, assisti a várias séries, diversos filmes e tudo o que consegui foi um cochilo breve.
Como último recurso, restou a insondável e tortuosa leitura de poemas. Mas registro que os poemas não foram dos grandes autores, que desses sinto intolerância, inveja e considero um disparate alguém que consiga escrever tão bem quanto Drummond, Gullar, Quintana, Clarice entre outros.
Eles fazem pensar e pensar dói.
Então fucei na internet, no Facebook, catei um aqui outro ali, coisas fáceis, rimas pueris, versos para rir e cansar até me fazer dormir.
Mas deu-se o encanto: ao invés do sono vir, ficaram as palavras rimadas assopradas sem parar na minha cabeça e um desespero do fim que nunca vinha se abateu sobre mim.
Qual alternativa, qual remédio? O de sempre quando me sinto desesperado: ligar para o meu amigo escritor, é claro. Ele certamente me compreenderia sem se importar com o adiantado da hora.
- Oi, irmão.
- Porra Vladimir, sabe que horas são?
- Horas? O que são as horas se os segundos me devoram?
- Oi? Como é?
- Ouvir a sua voz, querido amigo, é tudo o que preciso nesse momento indeciso.
- Cara, o que foi que você bebeu dessa vez?
- Amada criatura do meu ser, amo-te e nada mais sei fazer.
- Vladimir, eu estava no terceiro sono, liga depois, estou muito cansado.
- O cansar, mas o que é o cansar? Cansar é pecar, cansar é sofrer, cansar é quase deixar de viver.
- Vlad, você está me assustando.
- Susto, o que é o susto?
- Vai te fuder, Vlad!
- Quando as horas do amanhã começam a surgir no horizonte, me pergunto, será que tem sardinha para todo mundo?
- Ah, Vladimir, eu vou desligar, juro.
- Amo-te querido amado. Amado amante, vivo-te, devoro-te, ser adorado.
- Caramba, por que você não ligou para a Lucilene, ela tem muito mais paciência do que eu.
- Lucilene, lene, ene. Efeméride do amor r que nunca terei. Se sim, eu não sei.
- Putz, é melhor deixarmos a Lucilene em paz. Cara, vai lá fora, respira fundo, veja a lua indo embora...
- A lua, ó fumegante lua, plangente ser antes do sol nascente, fecunda obra do ser fraternal, Ele, o maestro, dono de todos os mistério: Deus.-
- Vlad, tentou misturar Rivotril num copo de vinho? Umas três gotas já servem.
- E tudo que nos ilumina é a luz de cima, nos ampare, ó senhor, na sua luz divina.
- Eu não estou acreditando nesse seu delírio. Você não tem o celular da Janet? Talvez ela te entenda.
- Janet, amo-a severamente, uma força da mente, talvez semente.
- É...Seu caso é grave. Vou te indicar o Elias.
- Elias, mas o que é Elias? Um poeta incompreendido que talvez eu serias.
- Vlad, vou desligar, é sério, três da manhã, eu estou mesmo com sono.
- A madrugada e todos os mistérios nela contidas, agradecemos a Deus, ó pai, a suas graças recebidas.
- Puta que pariu!
- Eis que está vindo um novo alvorecer, vamos de mãos dadas ao pai agradecer.
- Não enche, estou com muito sono.
- Deixo-te abandonar-me, apanharei a minha dor e a minha solidão para mim somente. Mas lembra-te, por amar-te, sigo doente.
- Tá bom, tchau.
- Amo-te amado adorado.
- Conte carneiros e durma bem. Abraços.
E foi no exato momento que meu amigo escritor desligou que senti um alívio, como se todos aqueles versos tivessem finalmente abandonado o meu pensamento.
Restou o silêncio e um leve tremor no rosto. Talvez eu não sinta medo apenas de dentista. Mas disso trato outro dia, agora preciso mesmo dormir...
Onde deixei o meu potinho de Rivotril?